A Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT) condenou a Destilaria Gameleira, localizada em Confresa, também no Mato Grosso, a pagar R$ 500 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador a título de danos morais coletivos pelas más condições de trabalho em que se encontravam 348 de seus empregados. A decisão é de primeira instância e foi tomada em 19 de outubro pelo juiz do trabalho João Humberto Cesário.
A ação contra a Destilaria foi impetrada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), e o julgamento ocorreu à revelia, pois a empresa não compareceu ao tribunal para prestar esclarecimentos. A Gameleira, que hoje pertence à Destilaria Araguaia, ainda pode recorrer.
Em nota pública, divulgada na quinta-feira (9), Eduardo Queiroz Monteiro, diretor da Gameleira, afirmou que a Destilaria Gameleira "cumpre, com absoluto rigor, todos os seus compromissos trabalhistas. A comunidade local e seus trabalhadores sabem disso. Lamenta que interesses menores levem a uma compreensão da empresa que não corresponde à realidade. Já instruiu seus advogados e confia serenamente no pronunciamento da justiça".
Além de pagar a multa, a decisão judicial prevê que a empresa terá que adotar várias medidas para se enquadrar na legislação trabalhista. Entre elas estão a interrupção do aliciamento de trabalhadores, suspensão de descontos ilegais no salário dos empregados e concessão de pelo menos 11 horas de descanso entre cada jornada de trabalho. Caso não tome essas medidas, ela terá que pagar R$ 50 mil por cada item descumprido.
Em sua decisão, o juiz afirma que as situações encontradas na propriedade são "fato denunciador do seu desprezo para com os fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho".
O coordenador nacional dos grupos móveis de fiscalização do MTE, Marcelo Campos, avaliou positivamente a decisão: "essa condenação legitima o trabalho do grupo móvel e fortalece a nossa convicção inicial, no momento da fiscalização, de que os trabalhadores estavam realmente em situação muito degradante".
Reincidência
Em 2005, a empresa foi palco do maior resgate de trabalhadores em condições análogas à de escravidão, quando 1003 pessoas foram retiradas da propriedade. A ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho foi causada, contudo, pelas más condições trabalhistas em que se encontravam os empregados em outras duas fiscalizações realizadas no local: em 2001, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) libertou 272 pessoas da fazenda de cana-de-açúcar e, em 2003, mais 76.
A Gameleira se tornou conhecida nacionalmente após quatro operações de fiscalização encontrarem condições degradantes de trabalho em sua fazenda de cana-de-açúcar. As reincidentes fiscalizações levaram a destilaria a ser inserida na "lista suja" do trabalho escravo, organizada e mantida pelo governo federal.
Em maio deste ano, a propriedade passou por uma mudança, sendo incorporada à recém-criada Destilaria Araguaia. Para reverter a imagem negativa que se associou ao nome "Gameleira" depois dos escândalos, o empresário Eduardo de Queiroz Monteiro, dono do grupo EQM, comprou a parte da fazenda que pertencia a sua família, adquiriu mais terras, ampliou as instalações e trocou o nome da propriedade. Eduardo é irmão de Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Na época, o grupo EQM informou que na Araguaia tudo seria avançado, inclusive o tratamento dispensado aos funcionários. Instalações modernas não só para fabricar álcool, mas também para o conforto dos trabalhadores. Anunciou que cumpriria todos os aspectos da lei, como as regulamentações do trabalho rural da norma NR31. Prometeu que iria garantir para os 240 trabalhadores fixos e 750 temporários alojamentos decentes, alimentação balanceada servida em restaurantes móveis e, o mais importante, carteira assinada e todos os direitos trabalhistas.
Pressão econômica
Grandes distribuidoras de combustível cortaram contratos com a Gameleira, no ano passado, quando tomaram conhecimento que comercializavam com uma empresa que estava na "lista suja".
Após empresas como Ipiranga e Petrobrás assumirem esse comportamento, o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE) fez uma "consulta" com o objetivo de descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado. Segundo ele, essa ação foi realizada a pedido de deputados federais. Na época, a repercussão na imprensa e junto à sociedade civil do lobby do parlamentar agindo em prol da iniciativa privada foi bastante negativa.
A suspensão dos acordos comerciais entre a Gameleira e as distribuidoras também foi provocada pela divulgação de levantamento que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. A pesquisa, solicitada em 2004 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, inclui grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart, Votorantin, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
A pesquisa aponta que a Galemeira comercializava com a Ipiranga, Petrobrás, Shell, Texaco, Total e PDV, fornecendo combustível principalmente para as regiões Norte e Nordeste. Dessas, Ipiranga, Petrobrás, Shell e Texaco assinaram o pacto. No dia 11 de maio de 2005, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base utilizada pela pesquisa sobre a cadeia produtiva. Contudo, signatários mantiveram a interdição de compra, como a Ipiranga. Fontes dessa empresa revelaram que a decisão da companhia seguiu determinações do pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social.
Devido a uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região, a Gameleira retornou à "lista suja" no último dia 09 de outubro.
Libertação recorde
Em junho de 2005, a operação do grupo móvel de fiscalização do MTE, que contou com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, libertou 1003 pessoas escravizadas da fazenda. A ação ocorreu após denúncias que envolviam violência física contra os peões.
"A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única águ
a que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo", afirmou na época Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização.
De acordo com ele, todas as características confirmaram a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram levados de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos "gatos" (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina). Ninguém recebia salário e era obrigado a comprar tudo da cantina da empresa, com preço acima do mercado. Os gastos eram anotados para serem descontados do pagamento final – sempre menor do que o combinado pelo "gato". Devido às péssimas condições de saneamento e higiene, não raro ficava-se doente. Contudo, até o soro recebido nas crises de diarréias era descontado dos peões.
Matérias relacionadas:
Recordista em trabalho escravo volta para a "lista suja"
Recordista em libertações, empresa é reformulada e muda de nome
Destilaria Gameleira paga R$ 1,45 milhão por trabalho escravo
Colaborou Beatriz Camargo