Direito à verdade

Começa o julgamento de Ustra, primeiro acusado de tortura da ditadura militar

Cinco pessoas da família Teles, incluindo duas crianças, movem contra o coronel reformado uma ação cível que pede que a Justiça o declare como torturador do período. Primeira sessão do julgamento ocorreu nesta quarta, em que foram ouvidas cinco testemunhas
Bia Barbosa*
 10/11/2006

“Ele foi o primeiro a me dar um tapa na cara, quando ainda estava no Pátio da Operação Bandeirantes [Oban]. Me jogou no chão com aquele tapa. Me torturou pessoalmente. Também foi ele quem mandou invadir a minha casa, buscar todo mundo que estava lá. Meus filhos e minha irmã. Durante cerca de 10 dias, minhas crianças ficaram na Oban. Me viram sendo torturada na cadeira de dragão, me viram cheia de hematomas, com o rosto desfigurado, dentro da cela. Nessa semana, em que meus filhos estavam por ali, eles falavam que os dois estavam sendo torturados. Disseram: “Nessas alturas, sua Janaína já está dentro de um caixãozinho”. Disseram também que eu ia ser morta. Isso foi o tempo todo. O tempo todo, o terror. Ali era um inferno”.

Assim descreveu Maria Amélia Teles os onze meses que passou presa em São Paulo no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um dos principais centros de repressão aos presos políticos do período da ditadura militar. Maria Amélia foi presa na Vila Mariana, na capital paulista, no dia 28 de dezembro de 1972. Seu marido, César Teles, já estava detido. Os dois coordenavam a gráfica do Partido Comunista do Brasil, ao qual pertenciam. Também davam suporte aos guerrilheiros do Araguaia, e por isso foram presos. No dia seguinte, a polícia invadiu a casa de César e Maria Amélia e deteve sua irmã, Criméia Almeida, e seus filhos, Janaína e Edson, na época com 5 e 4 anos de idade. Das dependências do DOI-Codi, todos foram torturados física e psicologicamente.

Na tarde desta quarta-feira (8), eles reviveram mais uma vez esse passado durante a primeira sessão da audiência de instrução e julgamento de Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército que, de setembro de 1970 a janeiro de 1974, comandou as operações no DOI-Codi. Neste período, houve 502 denúncias de torturas praticadas por homens sob o seu comando e por ele diretamente. Ustra é o primeiro acusado de tortura ocorrida durante a ditadura a ser julgado no país. Desde o final do ano passado, a família Teles move contra ele uma ação cível declaratória, ou seja, pede somente que a Justiça o declare torturador deste período e reconheça que ele causou danos morais e à integridade física dessas cinco pessoas. Neste caso, não há, portanto, responsabilização criminal de Ustra pela prática da tortura ou pelos cerca de 40 assassinatos decorrentes da violência dos interrogatórios ocorridos no DOI-Codi.

“Mas sabemos que ele é responsável pela tortura de praticamente todos os presos políticos da época em que comandou o DOI-Codi. Foram centenas e centenas de pessoas. É responsável também por dezenas de assassinatos e até de desaparecimentos”, afirma Maria Amélia. “Se ele é um torturador declarado pela Justiça, o Estado brasileiro tem a obrigação de tomar dele todas as informações a respeito. Por exemplo, sobre onde estão os mortos e desaparecidos que não foram sepultados ainda. Onde estão os restos mortais? O resultado desta ação específica é moral. Mas o fato dele ser condenado como torturador resulta em outros desdobramentos”, acredita.

Testemunhas da dor
Não foram somente Maria Amélia, César, Criméia, Janaína e Edson que reviveram na tarde desta quarta-feira a dor da tortura sofrida nos anos de chumbo. As cinco testemunhas chamadas pelo advogado da família Teles também tiveram que, diante do juiz Gustavo Santini Teodoro, contar o que aconteceu com elas enquanto estiveram presas no DOI-Codi.

“Fui pessoalmente interrogado por Ustra, muitas vezes nu. Fui ameaçado, espancado e recebi dele choques elétricos. Por mais de uma vez, ouvi, de um dos torturadores, ameaças a Maria Amélia. Eles diziam: ‘essa mulher tem mesmo que morrer’”, contou o historiador Joel Fufino dos Santos, que, preso em 1972, dividiu cela com César Teles. “Também vi o casal voltando muito machucados dos interrogatórios”, disse.

Elia Menezes Rola conheceu Maria Amélia em janeiro de 1973, quando foi presa. Ficou na mesma cela que ela por cerca de 15 dias. “A Amelinha foi muito torturada, vi as lesões. Tinha dias que ela vinha tão machucada do interrogatório que eu não reconhecia o seu rosto”, contou. Elia também foi torturada com socos e xingamentos. A mesma história foi contada por Marly Rodrigues, presa no dia 12 de janeiro de 1973. Ela sofreu poucas torturas físicas, mas disse que foi fortemente torturada psicologicamente pelo coronel Ustra. “No momento da minha prisão, ele me desmoralizou perante minha família, fazendo considerações e comentários sobre minha pessoa e sobre minha posição política, causando traumas que tenho até hoje”, relatou Marly.

Ricardo Maranhão, a última testemunha a ser ouvida, contou que viu Maria Amélia pela primeira vez quando ela estava na sala de tortura, muito machucada. Afirmou que sua irmã, Criméia, que estava grávida, levava "muitas pauladas na cabeça". Segundo o jornalista Ivan Akselrud de Seixas, tanto Maria Amélia como César reclamavam muito da dor em função das torturas que sofriam na chamada “cadeira do dragão” e no “pau-de-arara”. Seixas foi preso pela primeira vez no dia 16 de abril de 1971, quando tinha 16 anos. Ao todo, teve três passagens pelo DOI-Codi, ficando sob o poder o regime militar por seis anos. Nesta primeira ocasião, ele foi preso junto com seu pai. Ambos foram torturados. Seixas acusa do coronel Ustra como responsável pela morte de seu pai. Sua casa foi saqueada e sua mãe e irmãos também foram detidos pela ditadura.

Todas as testemunhas contaram que havia uma espécie de ritual de anunciação das sessões de tortura. Primeiro, se ouvia o bater da porta de ferro da sala onde ocorriam os interrogatórios. Depois, os carcereiros eram chamados e, tilintando as chaves das celas, se dirigiam aos presos para determinar o próximo ou próxima da fila.

“Tinha um carcereiro chamado de “Marechal”, que andava com muitas chaves. Quando ele ia para as celas, todo mundo ficava angustiado para saber quem ia ser torturado”, lembra Marly. Ela contou que todos ali tinham um codinome, e o de Ustra era “Tibiriçá”. “O tom de voz alto e agressivo também era comum na prisão; fazia parte do quadro de intimidação. Isso gerava um contínuo sentimento de terror. Ouvi muitas pessoas gritarem sendo torturadas e outras sendo levadas para a solitária”, descreveu.

Negação
O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra não compareceu à sessão desta quarta-feira porque seu depoimento foi dispensado pelos advogados da família Teles. Nenhuma das partes, portanto, será ouvida durante o julgamento. Segundo Paulo Esteves, advogado de Ustra, ele veio de Brasília para São Paulo mas, ao saber que havia sido dispensado, não compareceu à 23a Vara Cível do F&o
acute;rum João Mendes, onde as testemunhas foram ouvidas.

Para Esteves, no entanto, o coronel não tem do que se defender. Segundo o advogado, Ustra nega que tenha participado das torturas que aconteceram nos porões do DOI-Codi – como o próprio militar afirma em dois livros que escreveu sobre o assunto: "Rompendo o Silêncio", de 1987, e "Verdade Sufocada", lançado no ano passado.

“Quando a acusação tiver feito provas contra ele, aí sim ele terá do que se defender. As pessoas hoje prestaram um depoimento, agora vamos verificar a veracidade do que foi dito”, declarou Esteves. “Não é uma questão se esses atos aconteceram ou não. É uma questão se ele participou ou não desses atos. Para mim, essas testemunhas não têm como provar aquilo que os autores acham que podem provar contra o coronel. Esta prova foi inútil”, avaliou.

As testemunhas da defesa, por morarem fora de São Paulo, serão ouvidas nas respectivas comarcas via carta precatória. O juiz tem 15 dias para distribuir os pedidos. Somente depois do recebimento desses depoimentos será marcada uma nova sessão, para a decisão do julgamento. As sete pessoas que serão ouvidas a pedido da defesa são testemunhas de antecedentes, ou seja, não vão se referir aos casos relatados nesta quarta pelos ex-presos políticos. “Até porque não podem se referir a fatos que não existiram”, rebateu Paulo Esteves.

Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.

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