DE TAIPEI E HONG KONG – Itens desprezados por consumidores brasileiros como medula espinhal, aorta bovina, tendão e omaso – uma parte do estômago do boi – são exportados em volumes expressivos para Hong Kong, que apesar de sua diminuta população, é o comprador número um de miúdos bovinos do Brasil. Entre 2022 e 2023, junto aos pedaços de boi, os importadores desse território levaram para a Ásia produtos do frigorífico abastecido pelo maior desmatador da Amazônia dos últimos anos.
O destino final desses miúdos é um enigma. No passado recente, autoridades locais desbarataram redes de contrabando de carne para a China e fontes admitem que é uma possibilidade que explicaria os volumes desproporcionais de compras de Hong Kong.
A investigação conjunta da Repórter Brasil e do jornal Hong Kong Free Press rastreou a carne que chega à região administrativa de Hong Kong e descobriu que as empresas Harvest Charm, Uni Shining International, Loyalty Union e Galaila International importaram miúdos bovinos do frigorífico 163 Beef, que tem entre seus fornecedores fazendas da família de Bruno Heller, preso em 2023 e apontado pela Polícia Federal como “o maior desmatador” da Amazônia. As fazendas de Heller acumulam multas que somam mais de R$ 27 milhões por desmatamento ilegal.
As importações ocorreram entre 2022 e 2023, mesmo período em que a unidade do frigorífico de Novo Progresso, no Pará, comprou gado reiteradamente da família de Heller. A Repórter Brasil já mostrou que essas mesmas fazendas vendiam gado a frigoríficos fornecedores da rede de supermercados francesa Carrefour.
Enquanto os compradores e governos europeus têm tomado uma série de medidas contra o desmatamento em sua cadeia produtiva e a China continental discute medidas para combater o problema, Hong Kong ainda não possui qualquer exigência sobre a origem do gado e sua rastreabilidade.
Nenhuma das empresas importadoras respondeu às tentativas de contato da reportagem. O frigorífico 163 Beef também não retornou telefonemas e e-mails com pedidos de esclarecimentos. O espaço segue aberto para suas manifestações.
A defesa de Bruno Heller enviou nota dizendo que a investigação em andamento é sigilosa e “todas as circunstâncias abordadas já estão sendo devidamente elucidadas perante as autoridades e os órgãos competentes.” A íntegra pode ser lida aqui.
Endereço de escritório leva a floricultura
Os registros das empresas Harvest Charm, Uni Shining International, Loyalty Union e Galaila International junto ao governo de Hong Kong não trazem informações específicas sobre as atividades exercidas pelas empresas, mas informam seus endereços. A reportagem foi até as sedes e escritórios apontados pelos registros, todos em prédios comerciais construídos nos anos 1980 na região central e portuária de Hong Kong.
No endereço de duas delas, Harvest Charm e Uni Shining International, não existe qualquer indicação de que essas empresas funcionem no local – neste último local, uma placa na porta indica a existência de uma floricultura. No endereço da Loyalty Union e da Galaila International, havia escritórios identificados, mas sem atendimento ao público.
A Galaila é a única das quatro empresas a manter uma página na internet, onde se apresenta como uma revendedora de couro, sem mencionar qualquer negócio ligado aos miúdos bovinos.
As outras três empresas não possuem sites, redes sociais ou marcas próprias. A reportagem enviou cartas registradas e e-mails (quando possível) às quatro empresas perguntando sobre as suas atividades. Três cartas foram entregues, e uma delas foi devolvida ao remetente. Não houve qualquer resposta.
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123 mil toneladas de miúdos para 7 mi habitantes
Com uma população de somente 7,5 milhões de habitantes, Hong Kong é o maior comprador de miúdos bovinos brasileiros, com um volume que chegou a 123 mil toneladas em 2022 – o que daria uma média de 17 toneladas de miúdos por pessoa, se tudo fosse consumido como alimento.
“Os miúdos bovinos brasileiros têm um bom mercado na Ásia, tanto para consumo direto quanto para processamento de alimentos humanos, de animais de estimação e para fabricação de ração para pecuária”, observa Louis Chan, diretor de pesquisas do Hong Kong Trade Development Council, órgão local de incentivo ao comércio internacional.
Na ponta do lápis, o território é, por uma larga margem, o maior comprador de miúdos brasileiros no planeta. Em 2023, respondeu por 69,7% das compras de miúdos e outras partes bovinas, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC).
Vendidos para Hong Kong, os miúdos geram receita maior para os frigoríficos. Se ficassem no Brasil, possivelmente terminaram na chamada “graxaria”, unidade que processa produtos de baixo valor, como sabonetes, explica Thiago Bernardino de Carvalho, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Universidade de São Paulo (USP). “Para o frigorífico, é interessante exportar miúdos porque ajuda a compor a sua receita. Então, quando aparece um mercado como Hong Kong, o frigorífico vai desovar os miúdos para lá”, completa.
Frigoríficos abrem mercado na China
Até 2018, Hong Kong era também o maior importador de carne bovina brasileira em geral. O volume de compras do diminuto território superava aqueles de locais com população dezenas de vezes maiores, como a União Europeia, os Estados Unidos e a China continental. A explicação corrente dentro da indústria de carne para essa liderança era de que o destino final de parte relevante da carne seria o território chinês, onde moram 1,4 bilhão de pessoas.
Leia mais: Maior comprador de carne bovina do Brasil, China tem compromisso ambiental ambíguo
Hong Kong é parte da China desde 1997, mas conta com moeda, autoridades sanitárias e controles de fronteira próprios, em um mecanismo comumente qualificado como “um país, dois sistemas”. Por isso, a contabilidade das exportações para ambos locais é feita de forma separada.
Em 2019, a China tomou o lugar de Hong Kong como maior comprador da carne brasileira. Isso aconteceu depois que o governo chinês passou a habilitar mais frigoríficos brasileiros para venderem diretamente àquele país – contudo, até hoje não há autorização de Pequim para importação de miúdos do Brasil. Atualmente, Hong Kong ainda é o segundo maior comprador de carne bovina in natura brasileira.
Mercado ilegal na fronteira
As estatísticas oficiais mostram que parte dos miúdos brasileiros que chegam a Hong Kong são reexportados para outros territórios da Ásia. De acordo com estatísticas de reexportação do Governo de Hong Kong, 342 milhões de dólares em subprodutos bovinos brasileiros foram reexportados em 2023, sendo que seus principais destinos foram o Vietnã (50,3%), Taiwan (29,9%) e Coreia do Sul (15,4%).
O governo de Hong Kong reconhece também que há comércio ilegal de produtos de origem bovina com a China continental. Durante os últimos três anos foram presas 160 pessoas e apreendidas mais de mil toneladas de carne congelada que eram traficadas à China, segundo nota enviada à reportagem pelo Centro de Segurança Alimentar de Hong Kong. A íntegra pode ser lida aqui.
“Hong Kong não é apenas um país consumidor, mas também um ponto de entrada para a China. Isso precisa ser rastreado adequadamente”, observa Marina Guyot, Gerente de Políticas Públicas do Imaflora, organização que atua por mais transparência no setor da pecuária.
Um eventual contrabando pode estar carregando a pegada de desmatamento de Hong Kong para a China. A situação não deve mudar em um horizonte curto, já que não há perspectivas claras de que empresas e governo de Hong Kong passem a fazer exigências a respeito de como o boi é criado no Brasil.
“A conscientização entre os consumidores de Hong Kong em relação à sustentabilidade da carne está aumentando lentamente, mas não é substancial o suficiente para promover mudanças no comportamento de consumo e na cadeia produtiva,” diz Lei Yu-Ting, que liderou o setor de pesquisas do Greenpeace East Asia durante doze anos.
Yu-Ting explica que as poucas iniciativas que buscam mostrar qual a origem da carne em Hong Kong estão focadas somente na qualidade da carne e em questões de segurança alimentar. “É difícil para os consumidores saberem se a carne que eles consomem está associada ao desmatamento no Brasil e em outros países,” conclui o pesquisador.
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