Repórter Brasil percorreu os 892 quilômetros da Estrada de Ferro Carajás, de Parauapebas (PA) a São Luís (MA). Controlada pela Companhia Vale do Rio Doce, gigante multinacional do setor de mineração, cujo lucro líquido alcançou mais de R$ 6 bilhões no primeiro semestre deste ano, a ferrovia iniciou suas atividades em 1985. No ano seguinte, começou a funcionar o trem de passageiros, com capacidade para o embarque de até 1,5 mil pessoas.
A linha de trilhos, que corta 22 municípios nos dois estados, foi construída para escoar principalmente o ferro proveniente da maior província mineral do mundo, a Serra dos Carajás, recheada ainda de níquel, cobre, manganês, ouro, além de outros metais e pedras preciosas. Os vagões também transportam outros carregamentos valiosos como soja, combustível e fertilizantes até a capital maranhense – de onde são exportados para o mundo inteiro através dos portos de Itaqui e Ponta da Madeira.
O empreendimento bilionário redesenhou parte expressiva da paisagem amazônica, estimulou novas atividades econômicas, como a siderurgia, além de causar uma reviravolta nas relações sociais e na vida da população da região, notadamente na dos povos indígenas. O impacto gerado nas últimas duas décadas pela Estrada de Ferro Carajás, ao longo dos lugares atravessados por ela, é o assunto desta série de reportagens.
Parte II – Trem de maranhense
A história de Osvaldo Santos é no mínimo fascinante. Do ouro retirado de um garimpo em Itaituba (PA), à beira do rio Tapajós, usado para pagar o tratamento que não curou uma doença no sangue de sua mulher, só restaram seis pequenas placas que ele conserva entre os dentes como um rico tártaro metálico. Aos 73 anos, aposentado, tem tempo para deixar a roça aberta com os próprios braços no município de São Félix do Xingu (PA) e visitar parte da família que deixou há uns bons anos em Zé Doca, no interior maranhense. Mas a carteira de identidade, em que se lê o aviso em vermelho de "não alfabetizado", acusa sua verdadeira terra natal: Piauí.
Cruzamento do trem de passageiros com vagões transbordando de minério de ferro |
Homens de feições castigadas pelo sol da lida diária são tipos comuns no trem da Estrada de Ferro Carajás, cujos 892 quilômetros ligam Parauapebas (PA) a São Luís (MA). Criada pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) para escoar, principalmente, a produção de ferro da maior província mineral do mundo, a ferrovia também transporta um expressivo contingente de trabalhadores com baixa qualificação, à procura de serviço pesado. "A ferrovia é uma bomba de sucção de miséria. Muita gente sai do Maranhão só com a passagem de ida, sem qualificação nenhuma para exercer qualquer tarefa especializada", define o jornalista Lúcio Flávio Pinto, que há décadas estuda a história do Projeto Grande Carajás (ver box). Rivelino Nascimento, chefe do trem de passageiros da Vale desde 1998, confirma a análise do jornalista. Nas paradas de Arari e Vitória do Mearim, a menos de 150 quilômetros de São Luís, "quase 70% das pessoas que embarcam são homens, jovens, à procura de emprego, com passagem para Marabá ou Parauapebas", afirma.
As estações dessas duas cidades são os principais canais utilizados por trabalhadores rurais para chegar a outros municípios do sudeste do Pará, como Sapucaia e Xinguara, ou a São Félix do Xingu. Nessa região de fronteira agrícola, onde se verificam os maiores índices de devastação da Amazônia em nome da pecuária, peões pobres se submetem a serviços degradantes, derrubando mata para a formação de pastos em grandes fazendas – que, não raro, são fruto de apropriação ilegal de terras públicas. Há também uma parcela nada desprezível que usa a ferrovia para tentar a vida em garimpos da região. Basta lembrar o mais célebre de todos, Serra Pelada, na cidade de Curionópolis, no perímetro de Carajás.
Na verdade, esse fluxo ocorre há muito tempo, desde quando a linha de trilhos nem sequer estava pronta. Na época de sua construção, no começo da década de 1980, era cena comum ver levas de trabalhadores andando pelo caminho aberto por empreiteiras encarregadas da construção da ferrovia para atingir lugares onde se precisava de homens para tarefas pesadas. Hoje, o "trem de maranhense", como foi apelidado pelos próprios usuários, facilita a vida de quem precisa se deslocar entre o Maranhão e o Pará para conseguir emprego. Porém, não faltam críticas ao serviço oferecido pela CVRD.
Comércio paralelo nas paradas do trem: o "bandeco" é vendido por R$ 2,00 |
As principais queixas dizem respeito às condições de higiene dos vagões e à superlotação. As reclamações também recaem sobre a lanchonete do trem, já que os preços cobrados pelas refeições são inacessíveis para a maioria dos que embarcam na classe econômica, sem direito ao conforto do ar-condicionado e das poltronas de tecido de que dispõem os passageiros da classe executiva. Por essa razão, criou-se uma espécie de comércio paralelo nas paradas, que complementa o orçamento das famílias dos povoados que cresceram no entorno da ferrovia. Nesse mercado, um "bandeco", prato que não foge ao arroz, feijão, farinha e carne, custa R$ 2. O pacote com cinco mexericas sai pela metade desse valor, e o doce de leite é comercializado a R$ 0,50.
"Teoricamente, o transporte de passageiros é um grande benefício. Mas a Vale faz isso porque é obrigada. O problema é que a companhia expandiu tanto a produção de minérios que não tem condição nenhuma de dar atenção ao transporte de passageiros. O poder público tem capacidade de cobrar e punir, mas não faz nada", desabafa Lúcio Flávio Pinto.
Outras reportagens do especial Estrada de Ferro Carajás:
Parte I – Parauapebas: entre o céu e o inferno
Parte III – O efeito colateral do progresso
* Esta reportagem integra o Especial Estrada de Caraj&aacut
e;s e foi publicada em parceria com a revista Revista Problemas Brasileiros