EM AGOSTO de 2022, a Marfrig anunciou que uma nova fábrica de hambúrguer iria incrementar sua produção em 24 mil toneladas na planta de Bataguassu (MS). A empresa já ostentava o título de maior produtora de hambúrguer do mundo, sendo uma das fornecedoras da principal franquia de fast food do planeta, o McDonald’s. “A produção está subindo e tem que bater a meta. É muito puxado”, desabafa Teresa*, funcionária da nova fábrica de hambúrgueres.
O Brasil abateu 42,3 milhões de bois em 2022, um aumento de 5,28% em relação ao período anterior. E essa produção deve aumentar até 2032, mostram projeções da Organização Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD). O Programa de Pesquisa da Repórter Brasil entrevistou empregados de frigoríficos e ouviu relatos sobre como o crescimento do setor está repercutindo nas condições de trabalho. O estudo completo pode ser lido aqui.
“É muita pressão e muito rápido. Eu chorava de dor e me colocavam para trabalhar”, conta Marcela*, que atuava na unidade de abate de bovinos da Marfrig de Bataguassu (recentemente vendida para a Minerva, outra gigante do setor), até ser afastada no início de 2023 com sintomas de depressão.
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O ritmo intenso, aliado ao medo de ser demitido por não bater metas, leva funcionários a ignorarem dores e lesões em meio às jornadas de trabalho. Silvia* e Alice*, ambas trabalhadoras da JBS em São Miguel do Guaporé (RO), dizem que chegaram a trabalhar machucadas: “Quando cortei o dedo, não falei com ninguém. Coloquei duas luvas e voltei a trabalhar”, recorda Silvia. Ao final do turno, quando foi cuidar da ferida, precisou levar pontos para fechá-la.
“Eu trabalhei todos os dias quando tive dengue”, completa Alice.
“A maioria de nós sente dores nos braços. Mas a gente insiste em ir levando até não aguentar mais”, concorda Marcos*, que trabalhou como desossador na JBS em Pimenta Bueno, no mesmo estado. “Se não entrega, não presta, não tem mais valor”, resume.
Por isso, Pedro* não se espantou tanto quando, no começo do seu contrato como trabalhador do frigorífico de Bataguassu, um colega mais velho o aconselhou: “você se acostuma com a dor”.
Além de perder benefícios, como o adicional de assiduidade, caso solicitem atestado médico, há medo entre os trabalhadores de eventuais demissões em casos de adoecimento. “O funcionário acha que, se relatar para a empresa, pode perder o emprego”, confirma Carlos Alberto Lopes de Oliveira, procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho da 14ª Região, em Rondônia. “Por isso, é comum que se tome remédios para dor, o que mascara uma doença do trabalho e que lá na frente pode gerar um problema muito mais grave”, completa.
“O trabalho no frigorífico é terrível; é pressão de tudo que é lado. As pessoas não aguentam mais”, corrobora o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra-Intra), Marcos Cardoso dos Santos.
Procurados, os frigoríficos negaram o problema. A Marfrig disse que os relatos “não são procedentes” e a JBS respondeu que “segue as normas previstas em legislações civis e trabalhistas vigentes”.
A reportagem também entrou em contato com o McDonalds, que afirmou realizar auditorias periódicas em todos os seus fornecedores, e “verifica o cumprimento dos mais altos padrões de compliance, direitos humanos e qualidade em toda sua cadeia de produção”. “Reforça ainda que já solicitou esclarecimentos ao fornecedor sobre as questões levantadas pela reportagem”. As respostas das empresas podem ser acessadas aqui.
Aposentadoria por invalidez
Segundo Roberto Ruiz, médico do trabalho da Universidade Federal de Santa Catarina e consultor de saúde do trabalhador da União Internacional de Trabalhadores da Alimentação (Uita), já há casos de aposentadoria por invalidez provocados por este tipo de situação. “E não são poucos”, observa. “Se o funcionário seguir trabalhando por um tempo com dor, vai chegar um momento que o corpo já não vai responder, não vai ter força nem habilidade nas mãos para seguir trabalhando”, alerta.
Trabalhadores ouvidos pela Repórter Brasil relatam dificuldade em obter ajuda nos departamentos médicos das empresas. “Eu ia no médico [da empresa], tomava injeção e voltava a trabalhar”, complementa Teresa*, a trabalhadora cujo relato abriu esta reportagem. Ela contava com o apoio das colegas para dar conta do serviço: “eu falava para a minha amiga que estava doente, aí ela trabalhava por mim e por ela”. A Marfrig contesta: “é inverídica a informação de que a equipe médica aplica injeções nos colaboradores. A empresa nem sequer conta com esse tipo de recurso em suas instalações”.
Adoecidos, muitos trabalhadores buscam atendimento pela rede pública – mas novamente há temor de notificar órgãos governamentais do problema: “Como vai reclamar [de dor] se o INSS demora três meses [para liberar o recurso]?”, pondera Antônio, funcionário da Marfrig em Ji-Paraná (RO) que lesionou o joelho e precisou pedir apoio ao sindicato para garantir a cesta básica: “Foi uma burocracia louca [para afastar]”.
Também há quem busque ajuda na rede privada de saúde. Mas, neste caso, alguns esbarram nos custos dos tratamentos, impraticáveis para os salários recebidos. “Parecia uma faca cravada nas costas, eu não conseguia andar”, conta Rodrigo*, empregado da Marfrig em Bataguassu que só descobriu que tinha uma hérnia na coluna em uma consulta particular – mas teve que parar a fisioterapia “porque era muito caro e não teve melhora”.
“Segura a faca com dor mesmo, não tem outra saída”, resume Teresa, da Marfrig em Bataguassu.
Apresentada aos relatos, a Marfrig informa que conta com uma equipe profissional especializada que “trata todas as queixas e sintomatologias apresentadas por colaboradores”. A JBS também salienta que suas unidades “contam com equipe de saúde multidisciplinar de prontidão, treinada para avaliar, apoiar e encaminhar os colaboradores que registrem qualquer problema médico”.
*Nomes fictícios para preservar a identidade dos trabalhadores
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