“A GENTE JÁ ESTÁ CERCADO em terra, e agora querem cercar o mar. Para onde a gente vai?”, desabafa o pescador Edilson Menezes. Morador da comunidade de Enxu Queimado, no Rio Grande do Norte, ele conta que viu a paisagem ao redor e seu modo de vida mudarem com a instalação dos primeiros parques eólicos na região há mais de dez anos. Agora, enxerga uma nova ameaça: a chegada das eólicas ao mar potiguar.
No município de Pedra Grande, onde fica Enxu Queimado, 26% do território está ocupado com parques eólicos – uma das maiores concentrações do Rio Grande do Norte, segundo investigação da Repórter Brasil. Devido à potência dos ventos no local, a área marítima também tem sido cobiçada para projetos de eólicas offshore, como são chamadas as torres instaladas no mar. Dos 14 parques desse tipo apresentados no estado para licenciamento ambiental, 7 estão no litoral da comunidade centenária, segundo o Ibama.
A implementação das offshore no Brasil ainda depende da aprovação de um marco regulatório em discussão no Senado. Mas enquanto elas não saem do papel, a comunidade de aproximadamente 2.400 moradores convive com 12 parques eólicos no seu entorno. Juntos, eles somam 124 aerogeradores, vários deles muito próximos das casas dos moradores.
As empresas responsáveis pelos parques cercaram as dunas vizinhas a Enxu Queimado e também os territórios até então de uso coletivo, deixando livre um único acesso por terra à comunidade, como constatou a reportagem ao visitar o local em novembro de 2023. Também aterraram lagoas e desmataram parte da área para instalar as torres que agora tomam a paisagem.
“Antigamente a gente saía suavemente de casa, ia andar pelas dunas sem embaraço de nada. Hoje em dia já tem seu fulano que vem lá de fora, compra tantos e tantos [hectares] de terra, passa cerca, passa cancela, passa cadeado. Aí a comunidade fica sem poder andar”, conta Nazareno Leão de Oliveiras, um dos pescadores da comunidade.
Para os moradores, apesar das promessas de progresso, as empresas só fizeram o mínimo: pavimentaram com paralelepípedos as ruas da comunidade e melhoraram o abastecimento de água das casas.
A presidente da colônia de pescadores de Enxu, Maria Joelma Martins, conta, por exemplo, que os moradores foram impedidos de acessar uma lagoa vizinha à comunidade, que agora faz parte de um parque do Grupo Serveng, em operação desde 2014. Lá eles coletavam ovos de artêmia, pequenos crustáceos usados como isca de camarão. Segundo ela, essa situação mudou apenas em novembro do ano passado, quase dez anos depois, quando a empresa passou a autorizar a entrada de pescadores cadastrados.
Martins diz também que as promessas de geração de empregos não se concretizaram. Foram poucos os moradores que chegaram a trabalhar na construção dos parques eólicos e, quando a obra terminou, a maioria foi demitida – a operação dos parques em si exige uma mão de obra pequena, focada na manutenção dos aerogeradores e na vigilância da área. “Depois de tudo pronto, os que vieram de fora foram embora, e os daqui voltaram para a pesca”, lembra.
Segundo ela, em nenhum momento a comunidade foi consultada para a instalação das eólicas, seja em terra ou no mar. “Nem o governo estadual, nem o nosso governo municipal, nunca convocou ninguém para mostrar o que ia ser feito, e olha que a colônia já procurou, mas somos ignorados.”
Em nota, o Grupo Serveng afirmou cumprir os requisitos legais de implementação e operação de seus empreendimentos, além de empregar “predominantemente” mão de obra e fornecedores locais em suas atividades. “A Serveng esclarece que os seus empreendimentos estão inseridos em propriedades privadas arrendadas, desconhecendo a existência de cercamento em quaisquer áreas que sejam públicas ou protegidas”. Leia a nota completa.
A Copel, operadora de outros três parques eólicos que cercam Enxu Queimado, foi procurada, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Indefinição jurídica e receio dos pescadores
A má experiência com as eólicas em terra faz com que a comunidade se preocupe com a construção de parques eólicos em seu litoral. Mas o Brasil ainda não definiu regras para a operação.
No fim do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou o Marco Legal das eólicas offshore (projeto de lei 5.932/2023), mas o projeto ainda aguarda discussão no Senado e segue sem prazo para votação.
Apesar disso, o Ibama abriu em 2019 um cadastro para registrar os pedidos de interessados em licenciar parques. Os pedidos aceleraram a partir de 2022, quando o governo Bolsonaro assinou um decreto com diretrizes gerais sobre a cessão do espaço marítimo ao setor.
Essas solicitações deverão ser analisadas pelo Ibama somente após a sanção do Marco Legal e a outorga da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), explica Eduardo Wagner, coordenador de Licenciamento Ambiental de Energia Nuclear, Térmica, Eólica e de outras Fontes Alternativas do órgão. Ele afirma que os projetos “com certeza não vão acontecer da forma como foram apresentados”. Atualmente, há um projeto piloto em fase de instalação no Rio Grande do Norte.
No caso de Enxu, sete projetos estão na fila de interessados, com um total de 714 aerogeradores. O projeto mais próximo está previsto a apenas 5 km da costa, enquanto o mais distante está a 20 km. Na Alemanha, por exemplo, os parques eólicos estão, em média, a 66 km da costa.
Também não há um mapeamento das áreas que podem ou não ser exploradas no Brasil, nem previsão das zonas em que a pesca será proibida. Contudo, especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que serão utilizadas as regras vigentes para as plataformas de petróleo, que proíbem a navegação em um raio de 500 metros. Essa é a mesma distância adotada em países europeus para as eólicas offshore.
A proximidade entre a comunidade e os parques e a possível restrição da área de pesca assusta a população de Enxu. “De que vai viver a comunidade?”, questiona Oliveiras.
“Você acha que as empresas vão deixar barquinhos circulando para lá e para cá? A segurança vai ser enorme, e a gente não vai ter como pescar”, complementa Maria Joelma Martins, ao lembrar a relação já conflituosa com as plataformas de petróleo.
Segundo a advogada Vivian Oliveira, especialista em energia, há uma forte pressão de empresas do setor para que a regulamentação aconteça o mais breve possível. “As empresas querem este ano ainda [a conclusão do marco legal]. No mínimo antes da COP aqui no Brasil”, afirma, citando a conferência climática anual da ONU, que será realizada em 2025 em Belém.
A IER, uma das empresas interessadas no mar de Enxu Queimado, afirmou que ainda irá realizar os estudos de impacto ambiental e social necessários para avaliar os efeitos sobre a pesca tradicional e outras atividades. “Estamos comprometidos em realizar um diálogo amplo e aberto com todas as comunidades”, disse em nota.
A Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (Abeeólica), que falou em nome da Total Energie e da Bluefloat, disse que serão realizados estudos, audiências e consultas públicas na região para minimizar os impactos. “Estes instrumentos e mecanismos auxiliam no mapeamento prévio das comunidades e suas atividades econômicas, avaliação de fatores ambientais e outras atividades que podem ser impactadas pela chegada das eólicas offshore”, diz a associação, em nota.
“Qualquer área que venha a ter seu licenciamento analisado irá obrigatoriamente ouvir a população do entorno, os diretamente e indiretamente afetados”, continua a nota.
As demais empresas interessadas na região não responderam. Leia os posicionamentos na íntegra.
Procurada por telefone e e-mail, a Prefeitura de Pedra Grande não se manifestou até a publicação da reportagem.
Disputa pelo mar
Sem um planejamento adequado, as eólicas offshore podem trazer insegurança alimentar e econômica para pescadores artesanais e até expulsá-los do território, avalia Adryane Gorayeb, coordenadora do Observatório da Energia Eólica e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“O que percebemos é que o discurso global de energia limpa não se alinha com a realidade local dessas comunidades”, afirma.
Para evitar esses impactos, o Brasil se comprometeu a realizar até 2030 o seu Planejamento Espacial Marinho (PEM). O PEM deve mapear os usos econômicos, sociais e ecológicos do mar, a fim de evitar conflitos de setores, criar bases jurídicas para investimentos marítimos e implementar uma abordagem baseada no ecossistema para a gestão dos oceanos.
No caso das eólicas offshore, por exemplo, é esse plano que vai definir quais áreas poderão ser exploradas e qual será a distância mínima entre o litoral e os parques.
Enquanto a empresa IER afirmou que pode esperar a conclusão do PEM para a definição das áreas a serem exploradas, as associações que representam o setor não estão a fim de esperar e pressionam pela aprovação do marco regulatório sem a conclusão do planejamento. “Nenhuma atividade precisa parar ou esperar o PEM ficar pronto”, defendem a Abeeólica e o Global Wind Energy Council, em nota conjunta enviada à reportagem.
Elas argumentam que a instalação de parques offshore podem impulsionar geração de empregos, além de transformar o Brasil em uma potência global de energia renovável. Leia a resposta na íntegra.
Prós e contras
Um dos principais fatores de conflito no Brasil e em outros países onde as offshore já operam é o impacto à pesca. Na França, a disputa por espaço chegou ao Parlamento Europeu.
Associações de pescadores denunciaram que os projetos estavam no “coração” de áreas tradicionais de pesca. De acordo com eles, os parques, previstos para serem instalados em média a 13 km da costa francesa, trariam riscos econômicos e ecológicos.
Após os protestos, a área em que os parques seriam instalados foi repensada e as empresas ampliaram os espaços entre os aerogeradores, permitindo o trânsito de embarcações entre eles.
Para minimizar esses conflitos, alguns países têm apostado em regras de compensação econômica. Na França há uma distribuição de recursos do fundo fiscal de energia eólica offshore aos municípios costeiros afetados. Já na Dinamarca, os proprietários dos parques são obrigados a compensar os pescadores pela perda de rendimento e os moradores da costa pela depreciação dos imóveis causada pelas usinas.
Há também uma série de impactos ambientais causados pelas offshore. Segundo um estudo do Ibama, o ruído e a vibração dos aerogeradores podem afastar mamíferos, como baleias, golfinhos e botos, e prejudicar a vida marinha, alterando padrões de migração de espécies sensíveis.
A análise também identificou efeitos benéficos das eólicas, como a formação de recifes artificiais nas fundações das turbinas, o que promove a biodiversidade ao criar novos habitats marinhos.
Pesquisas realizadas no Reino Unido também indicam melhorias na qualidade da água próximo às torres, graças à filtração e captura de carbono realizadas por mariscos, além de um aumento da população de lagostas nas áreas das turbinas.
Para os moradores de Enxu Queimado, falta ao Brasil incluir as pessoas afetadas nesses debates. A comunidade está elaborando seu protocolo de consulta, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que determina a consulta livre e informada às comunidades tradicionais antes de serem tomadas decisões que podem afetar os seus bens e direitos.
“[A convenção] é um instrumento de soberania comunitária para que a comunidade tenha condição de manter o seu modo de vida tradicional, assim como garantir que aquele território continue existindo”, afirma João Paulo Diogo, coordenador do Programa Terra e Território da Assessoria Cirandas, que está auxiliando a comunidade.
A Cirandas também ajudou a comunidade a criar a sua cartografia social do mar, documento que identifica as áreas utilizadas para atividades econômicas, sociais e de reprodução e aparição de espécies.
“O que as empresas colocam [em seus projetos] como água, para a comunidade é vida. É o território onde ela se diverte, onde ela trabalha, onde ela vivencia sua fé. É onde ela promove a proteção do meio ambiente”, afirma.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Thomson Reuters Foundation. O conteúdo é de responsabilidade da Repórter Brasil
Leia também