Lobos-guará se afogam em fazenda apoiada pelo BNDES e governo cobra providências

Animais foram encontrados mortos em canais de irrigação da Fazenda Alto Jaborandi, no oeste da Bahia; fazendeiro obteve recursos de programa federal que financia obras para agricultura irrigada na região
Por Bruna Borges e André Campos | Edição Poliana Dallabrida
 09/10/2024

TRÊS LOBOS-GUARÁ morreram afogados em canais de irrigação da Fazenda Alto Jaborandi, propriedade destinada ao cultivo de grãos no oeste da Bahia. Revestidos com uma lona escorregadia, esses “rios artificiais” não tinham, segundo o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), proteção adequada para evitar a entrada dos animais. 

O órgão estadual multou a fazenda e cobra a adoção de medidas protetivas adequadas. O afogamento de animais selvagens nestes canais tornou-se um problema regional que preocupa ambientalistas e autoridades.

O dono da propriedade é o fazendeiro José Fava Neto, diretor regional da Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja) em Goiás. Os animais foram encontrados entre junho e agosto de 2023.

Em 2020, ele obteve empréstimos do Programa de Financiamento à Agricultura Irrigada (Proirriga) para obras de irrigação. Os financiamentos foram feitos com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e intermediados pelo banco holandês Rabobank, que se diz “o maior banco de investimentos no agronegócio e alimentação do mundo”.

A Fazenda Alto Jaborandi está no entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, considerado um berçário de espécies ameaçadas. Uma delas é o lobo-guará, classificada como vulnerável à extinção

“Essas espécies não ficam só na área protegida. Elas vão se reproduzir e colonizar  áreas adjacentes”, explica Rogério Cunha de Paula, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa de Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

O parque é rodeado por fazendas de soja, algodão, sorgo, milho e tabaco. Por estarem em uma região de escassez hídrica, as propriedades constroem grandes reservatórios e canais de água para irrigar seus cultivos, que podem ter de 15 a 20 km de extensão.

Os canais de irrigação são revestidos com uma lona que não tem aderência (veja fotos abaixo). Imagens registradas na Fazenda Alto Jaborandi mostram que as bordas dos canais estavam arranhadas, o que indica que os animais tentaram fugir antes do afogamento.

Família afogada nos canais de irrigação

Formoso, um lobo-guará de um ano, foi o primeiro a ser encontrado afogado. Seu corpo foi encontrado boiando em um canal da fazenda em 3 de junho de 2023. Três semanas depois, em 26 de junho, foi identificado no local o corpo de sua mãe, a loba Nhorinhá, já em estágio avançado de decomposição. Pouco mais de um mês depois, em 6 de agosto, foi a vez do corpo de Urucuia, outro filhote da Nhorinhá, também ser encontrado na fazenda.

Os três lobos-guará eram monitorados com um colar que enviava sua localização ao Onçafari, uma organização não governamental que atua com a conservação de espécies ameaçadas e com ecoturismo. Foi isso o que permitiu a descoberta dos óbitos.

“Imagine a quantidade de outros animais que morrem nessas estruturas e não temos conhecimento, porque depende do reporte da própria fazenda ou de uma fiscalização mais frequente, que sabemos que não acontece”, afirma Rodrigo Gerhardt, gerente de Campanhas de Vida Silvestre da organização Proteção Animal Mundial.

A Repórter Brasil tentou contato com José Fava Neto para comentar o caso, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue disponível para futuras manifestações.

Perigo para toda fauna da região

Dias após a constatação das mortes, o Onçafari apresentou o caso ao ICMBio e ao Inema, atendendo assim às exigências da licença do projeto de pesquisa e monitoramento dos lobos. Entre agosto e outubro de 2023, os dois órgãos ambientais inspecionaram os canais da Fazenda Alto Jaborandi e de outras três propriedades vizinhas. 

Segundo o ICMBio e o Inema, alguns trechos dos canais não possuíam proteção adequada – como, por exemplo, cercas danificadas ou muito baixas no entorno – e representavam risco para a vida dos animais da região.

“Durante as vistorias nos locais inúmeras carcaças de animais da fauna silvestre local foram encontradas, inclusive com sinais de óbito recentes. Também foram encontradas ossadas queimadas, provavelmente para diminuir o odor e evitar a atração de outros animais e contaminação”, diz nota técnica do Inema, acessada pela Repórter Brasil.

Carcaças também foram identificadas na Fazenda Karitel, vizinha à Fazenda Alto Jaborandi. A propriedade pertence ao grupo Santa Colomba, produtor de grãos, café, algodão e tabaco no oeste baiano. 

Ossadas de animais queimadas ao lado de canal da Fazenda Karitel, do grupo Santa Colomba (Foto: Inema)

Em novembro de 2023, o Inema aplicou multas de R$ 200 mil a ambas as fazendas. José Fava Neto pede a suspensão da multa e afirmou em defesa da autuação apresentada ao órgão ambiental  que, durante a vistoria realizada no dia 8 de agosto de 2023, “em nenhum momento da fiscalização foram encontrados lobos-guará em nossos canais ou em nossos reservatórios”. 

Mesmo assim, o Inema manteve a autuação destacando que o motivo, para além das mortes, era a não adoção de medidas protetivas adequadas no local dos óbitos.

Questionada pela Repórter Brasil, a Santa Colomba afirmou que possui as “licenças ambientais necessárias para a utilização dos canais de transposição para irrigação de suas áreas produtivas” e que “lamenta qualquer perda à fauna da região”. O grupo também declarou que possui equipe de veterinários e biólogos que monitoram e resgatam os animais que circulam em suas propriedades. Confira a manifestação completa aqui

Financiamento para obras de irrigação

Em 2020, Fava Neto obteve dois empréstimos que somam pouco mais de R$4,9 milhões do Proirriga para obras de irrigação. Os financiamentos seguem ativos com data de amortização até 2030.  

Os empréstimos feitos pelo fazendeiro com recursos do BNDES são da modalidade “indireta automática”. Em operações deste tipo, a responsabilidade sobre a análise da regularidade ambiental do cliente é da instituição bancária que faz a intermediação do negócio – neste caso, o Rabobank.

“Muito se fala em mapear toda cadeia, mas esquecemos que tem um banco financiando por trás. Se o banco não estivesse financiando, possivelmente essa atividade não estaria acontecendo”, comenta Júlia Dias, coordenadora do Programa de Consumo Responsável e Sustentável do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). 

O Idec integra uma coalizão que lançou o Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), que analisa as políticas socioambientais das instituições financeiras. “Se o banco está concedendo crédito para uma empresa agropecuária que está violando direitos, entendemos que ele tem responsabilidade objetiva e solidária sobre esse empréstimo e sobre aquela violação”, avalia Dias.

O BNDES afirmou que, até o momento, não foi notificado pelo agente financeiro sobre irregularidades nas operações de crédito identificadas pela reportagem. A instituição disse ainda que, com base nos fatos apresentados pela Repórter Brasil, vai solicitar esclarecimentos ao Rabobank e que “no caso de eventual descumprimento dos normativos e legislação, caberá a aplicação de penalidades à instituição financeira”.

Procurado pela reportagem, o Rabobank afirmou que não comenta casos específicos e que o processo de análise de informações relacionadas a clientes, potenciais clientes ou fornecedores “é robusto e está de acordo com a legislação brasileira”. A instituição não respondeu se analisa o potencial impacto negativo para a fauna dos empreendimentos financiados.

O grupo Santa Colomba também obteve dois financiamentos de R$ 93,2 milhões do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) para obras de irrigação em 2023. O Banco do Nordeste, responsável pela concessão do crédito, declarou que “preza pela transparência e responsabilidade socioambiental em todas as suas operações” e que os financiamentos concedidos pela instituição incluem a análise da conformidade do empreendimento com as normas ambientais.

Confira as manifestações completas dos bancos aqui.

Esta reportagem foi apoiada pelo Fundo de Reportagem sobre Animais e Biodiversidade da Brighter Green.

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