Invasora da Apyterewa vira candidata e leva nome da terra indígena na urna

Dona de posto de gasolina, Lauanda Peixoto Guimarães era uma das líderes da invasão à Terra Indígena Apyterewa, no sul do Pará. Ela foi vereadora em Goiás, onde teve mandato cassado por um esquema de ‘mensalão’
Por Diego Junqueira e Daniel Camargos | Edição Paula Bianchi
 04/10/2024

APÓS TER O MANDATO de vereadora cassado em 2018 por suspeita de participar de um “mensalão”, Lauanda Peixoto Guimarães deixou Alto Horizonte, no interior de Goiás, para uma nova vida no sul do Pará. Ali virou líder da invasão a uma terra indígena e foi presa. Filiou-se ao PL e agora tenta se eleger vereadora em São Félix do Xingu. Com apoio de Jair e Michele Bolsonaro e de expoentes da extrema direita paraense, Lauanda leva para a urna o nome do território invadido: Apyterewa.

A Terra Indígena Apyterewa é a mais desmatada do país, com 476 km² devastados desde 2008, e picos de destruição durante o governo Bolsonaro (2019 a 2022). O motor da derrubada da floresta é a pecuária. O território está inteiramente em São Félix do Xingu, município de 65 mil habitantes com o maior rebanho do país: 2,5 milhões de cabeças de gado. Mais de 60 mil animais eram criados ilegalmente na área indígena até outubro de 2023, quando o governo federal iniciou uma operação de retirada dos invasores

Lauanda foi uma das líderes da resistência. Ela era proprietária de um posto de gasolina clandestino e de uma farmácia também ilegal na Vila Renascer, uma comunidade com cerca de 2.000 moradores não indígenas criada dentro das terras do povo Parakanã. 

Invadir áreas da União, como as terras indígenas, é crime. Mas isso não impediu Lauanda de desobedecer às ordens judiciais para deixar o local. Mais de um mês após o início da operação, a Polícia Federal descobriu que ela estava articulando a derrubada de pontes para dificultar a retirada dos invasores. Por esse motivo, foi presa.

Mas esse não foi o primeiro caso de violência. Em 2020, ela foi denunciada pelo MPF por realizar ataques contra agentes do Ibama e da Funai na Apyterewa. No ano seguinte, foi presa por invadir e explorar a terra indígena, por posse ilegal de arma de fogo e de ouro e por manter em cativeiro um animal silvestre – um macaco filhote da espécie guariba (bugio). 

Lauanda em selfie com Michele Bolsonaro. Ex-primeira-dama gravou vídeo para a campanha da candidata em São Félix do Xingu (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

A Repórter Brasil acompanhou os primeiros dias da operação de desintrusão em 2023, quando constatou que Lauanda e o marido dela, Rogério da Silva D’Afonseca, se colocavam como interlocutores dos moradores da Vila Renascer.

Exaltado, D’Afonseca ameaçou sequestrar o repórter e o fotógrafo com o objetivo de usar os jornalistas como reféns e impedir a retirada dos invasores.”Vamos segurar eles aqui”, gritava. Dissuadido por outros moradores, deu um soco no braço do repórter. Durante o episódio, Lauanda estava ao lado do marido incentivando a violência.

Goiano, como Rogério D’Afonseca é conhecido, foi preso em 2014 acusado de assassinato no interior de Goiás. Depois de sair da cadeia, articulou com a esposa um esquema de extorsão na Câmara Municipal de Alto Horizonte (GO), onde Lauanda foi vereadora por dois mandatos pelo PRB (atual Republicanos).

O casal foi acusado de extorquir o prefeito da cidade em troca de apoio político, numa espécie de “mensalão” municipal que ainda está sob investigação do Ministério Público do Estado de Goiás. Em áudios gravados pelo próprio prefeito e veiculados pelo portal Mais Goiás, ela e o marido pediam R$ 30 mil mensais em troca de uma “governabilidade tranquila” no legislativo municipal. 

O episódio pegou de surpresa os moradores de Alto Horizonte. Segundo o Mais Goiás, Lauanda era vista como uma pessoa íntegra na cidade e até chamada por alguns de “Sérgia Moura”. Após ser cassada, Lauanda Peixoto tentou reverter a decisão no Judiciário, mas teve o recurso negado pelo Tribunal de Justiça de Goiás. 

No Pará, o casal acumula infrações ambientais. Rogério foi multado em R$ 336 mil por desmatamento pelo Ibama em 3 de agosto de 2021. Já Lauanda foi multada em R$ 110 mil pelo Ibama por manter o posto de combustível na Apyterewa.

Apesar do histórico, a Direção Nacional do PL doou R$ 65 mil para a campanha de Lauanda Apyterewa, como aparecerá seu nome na urna. Foi o maior apoio do partido aos candidatos a vereador na cidade. 

A Repórter Brasil procurou Lauanda e a Direção Nacional do PL por telefone e e-mail, mas não recebeu retorno.


Filhote de bugio era mantido em cativeiro por Lauanda Peixoto dentro da terra indígena (Foto: Reprodução)
Filhote de bugio era mantido em cativeiro por Lauanda Peixoto dentro da terra indígena (Foto: Reprodução)

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Campanha promete luta contra esquerda e regularização para invasores

Na campanha, Lauanda mira justamente a população que se beneficiava da invasão à àrea pública. Após a desintrusão, esse grupo se sente injustiçado por ter sido retirado da terra do povo Parakanã. As redes sociais da candidata estão repletas de vídeos percorrendo as comunidades vizinhas ao território indígena, como os distritos de Teilândia, Taboca, Paredão, Nereu e Tancredo Neves, onde ela prega que todos podem ser alvo de uma nova ação do governo federal.  

“A nossa bandeira é pela regularização fundiária de toda a nossa região, tanto nas vilas quanto nas propriedades da zona rural. Chega, esquerda. O agro não pode parar”, diz ela em um vídeo. 

“Me sinto orgulhosa de representar a nossa zona rural, o nosso agro, que tem sido  massacrado. O homem e a mulher do campo, o colono, nós do município de SFX estamos sendo massacrados. Fazemos parte de um plano de vingança [da esquerda] que tem nos destruído”, diz em outra publicação.

Apesar de se declarar pecuarista à Justiça eleitoral e de se apresentar como representante do agro na campanha, Lauanda não tem propriedades agrícolas em seu nome, assim como o marido, conforme verificou a Repórter Brasil. Dentro da Apyterewa, seu principal negócio era o posto de combustível. Em 2021, a operação de busca e apreensão chegou a encontrar notas fiscais que sugeriam que ela fornecia combustível também para garimpos ilegais.

Lauanda Peixoto circula em garupa de moto dentro da Terra Indígena Apyterewa. A ex-vereadora era dona de um posto no local (Foto: Reprodução)
Lauanda Peixoto circula em garupa de moto dentro da Terra Indígena Apyterewa. A ex-vereadora era dona de um posto no local (Foto: Reprodução)

Além dos recursos públicos do PL, a campanha de Lauanda recebeu apoios de líderes do partido, como a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. “Homens e mulheres de bem, mesmo que você não goste de política, seja a força de transformação na sua cidade”, diz Michelle no vídeo em que pede voto a Lauanda.

“Lauanda da Apyterewa é uma mulher que todos em São Félix conhecem, sabe do problema da Apyterewa, o que está passando, a luta de nós parlamentares para tentar evitar o que está sendo feito aí com vocês, e ela é uma grande representante”, disse o deputado federal Delegado Éder Mauro (PL/PA), que concorre à prefeitura de Belém, capital do estado.

Outro invasores de terras indígenas são candidatos em São Félix do Xingu

Da esq. para dir.: Candidato a vereador Antônio Belfort, Pastor Amarildo, candidato a vice-prefeito, e Silvio Terraço Hotel, candidato a prefeito de São Félix do Xingu (Foto: Reprodução/Redes Sociais)
Da esq. para dir.: Candidato a vereador Antônio Belfort, Pastor Amarildo, candidato a vice-prefeito, e Silvio Terraço Hotel, candidato a prefeito de São Félix do Xingu (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Além de Lauanda Peixoto, outra liderança dos moradores da Vila Renascer também saiu candidato a vereador: Antônio Borges Belfort. Ele concorre pelo PL, mas não recebeu recursos públicos na campanha, segundo dados divulgados até a publicação da reportagem.

Belfort era proprietário da Fazenda Sol Nascente, que ficava dentro da Apyterewa até a operação de desintrusão. A área está embargada.

Investigação do Ministério Público Federal (MPF) apontava Belfort como “ocupante de má fé” dentro da terra indígena. 

Entre 2014 e 2021, Belfort transportou 968 bois da fazenda na Apyterewa para propriedades fora da terra indígena, segundo o MPF. A maior parte teve como destino a Fazenda Serra de Pedra, que também pertence a Belfort. 

Entre 2018 e 2019, a Serra de Pedra forneceu dezenas de animais para abate nos frigoríficos Frigol e Marfrig, segundo guias de trânsito animal acessadas pela Repórter Brasil.

Outro político local apontado como invasor de terra indígena que concorre em São Félix do Xingu é Silvio Alves Coelho, o Silvio Terraço Hotel, candidato a prefeito pelo PL. Recebeu R$ 400 mil da Direção Nacional do partido, segundo o que foi declarado até o dia do 1º turno. 

Silvio foi vereador por dois mandatos. Elegeu-se pela primeira vez em 2012 pelo PSB como Silvio Sem-Terra. Foi reeleito em 2016 pelo PDT, mas fracassou em 2020 pelo PSC, quando seu nome na urna era Silvio Sem Terra Terraço Hotel. 

Nessa época, ele já era investigado por órgãos federais como um dos principais protagonistas da invasão à Terra Indígena Trincheira Bacajá, vizinha à Apyterewa e também com altos índices de devastação. Agentes de fiscalização suspeitavam que ele usava o cargo de vereador para dar apoio logístico à invasão.

Em seu plano de governo, ele defende a regularização fundiária para “que os

governos estadual e federal não inviabilizem o município”. E ele tem articulado em prol das pessoas expulsas da terra indígena. 

Durante encontro com Bolsonaro neste ano, publicado em suas redes sociais, Silvio comenta sobre a retirada dos invasores e diz que o município é um dos mais prejudicados no sul do Pará. “O dia que o senhor tiver oportunidade de falar alguma coisa sobre São Félix do Xingu, nós vamos estar lá aguardando”, diz Silvio.

“Vocês não tiveram problemas comigo de reserva indígena, quilombola”, responde Bolsonaro. Silvio concorda: “Não, nós não tivemos problemas. E tanto o pessoal da Apyterewa como da Trincheira Bacajá, aquelas famílias que foram retiradas, até hoje eles estão ali na beira da estrada e o governo não indenizou ninguém.

Silvio Terraço Hotel e Antônio Belfort foram curados pela reportagem por e-mail, mas não responderam até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto a manifestações. 

Histórico de invasão

A TI Apyterewa tinha cerca de 2.000 invasores, concentrados principalmente na Vila Renascer; todas as casas, erguidas próximas a uma base da Funai, foram destruídas (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Operação de desintrusão na TI Apyterewa em outubro de 2023. Imagem mostra a Vila Renascer e a saída de um caminhão de boi do local (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil).

A Terra Indígena Apyterewa, situada entre os municípios de São Félix do Xingu e Altamira, no Pará, é o lar dos indígenas Parakanã, que se autodenominam Awaeté, ou “gente de verdade”. Homologada em 2007, essa área deveria ser de usufruto exclusivo dos indígenas, mas ao longo dos anos foi progressivamente invadida por não indígenas, tornando-se a terra indígena mais desmatada do Brasil.

A invasão começou ainda antes da homologação, na década de 1980, quando a degradação ambiental na região se intensificou. Porém, a partir de 2016, com a fundação da Vila Renascer, a situação agravou-se.

Muitos dos invasores consideram-se legítimos possuidores das terras, dedicadas à pecuária e algumas lavouras. Cerca de 60 mil cabeças de gado foram criadas ilegalmente, abastecendo frigoríficos como JBS e Marfrig, como já mostrou a Repórter Brasil

Após anos de luta dos Parakanã e pressão de órgãos ambientais, o Supremo Tribunal Federal determinou, em 2023, a retirada dos invasores. A operação teve início em outubro de 2023 e foi concluída em fevereiro de 2024, envolvendo diversas forças, incluindo a Força Nacional, Polícia Federal, Ibama e Funai. 

Embora a operação tenha sido concluída e a terra, devolvida aos Parakanã em março de 2024, o clima na região permanece tenso. A ameaça de uma nova invasão persiste, com relatos de incêndios criminosos e de ataques de pistoleiros a indígenas. Os Parakanã reivindicam maior presença de forças de segurança para proteger o território e cobram do BNDES, acionista da JBS, o financiamento da recuperação da floresta devastada.

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