Ação policial no Pará com mortes de sem-terra e denúncia de tortura é investigada

Ministério Público Federal (MPF) abre procedimento e questiona Incra, governo do Pará e MP estadual sobre ação policial no começo de outubro que resultou na morte de dois trabalhadores rurais; Movimentos sociais denunciam violência e pedem investigação independente
Por Daniel Camargos | Edição Carlos Juliano Barros
 24/10/2024

A AÇÃO DA POLÍCIA CIVIL do Pará realizada no começo do mês e que resultou na morte de dois trabalhadores sem-terra em uma fazenda em Marabá, no sudeste do estado, entrou no radar do Ministério Público Federal (MPF).

Na quarta-feira (23), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), ligada ao MPF, instaurou um procedimento para investigar a operação conduzida pela Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (Deca). 

Deflagrada em 11 de outubro para o cumprimento de mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão contra ocupantes da Fazenda Mutamba, a ação ainda prendeu outras quatro pessoas que afirmam terem sido torturadas pelos policiais.

O procurador responsável pelo caso, Nicolao Dino, enviou ofícios ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ao governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), e ao Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). Os três foram procurados pela Repórter Brasil – os posicionamentos serão publicados, caso sejam enviados. 

Nos ofícios, Dino questiona se a Fazenda Mutamba passa por processo de desapropriação para reforma agrária e solicita informações sobre a conduta das polícias civil e militar. O MPF também pede que o Ministério Público estadual apure possíveis abusos.

“Precisamos adotar uma estratégia que nos permita agir em nível nacional para evitar a violência policial em cumprimento de mandados”, afirma o procurador nos documentos. Dino destaca ainda “a necessidade de estabilização da situação fundiária” na região, com longo histórico de conflitos por terra.

À Repórter Brasil, o delegado responsável pela operação, Antônio Mororó, negou as acusações de tortura e afirmou que os policiais reagiram a tiros disparados pelos trabalhadores sem-terra.

Quatro dias depois da ação da polícia, o deputado estadual Carlos Bordalo (PT) apresentou uma moção na Assembleia Legislativa do Pará solicitando uma investigação imparcial sobre o caso. 

O parlamentar pediu que a Secretaria de Segurança Pública, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o Conselho Nacional de Direitos Humanos atuem de forma conjunta para apurar as circunstâncias das mortes. 

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Movimentos sociais dizem que não houve confronto

Movimentos sociais que acompanham o caso afirmam que não houve confronto entre os policiais e os trabalhadores rurais. Além disso, denunciam perseguição e violência por parte dos agentes. 

Segundo relatos, os trabalhadores estavam dormindo quando foram surpreendidos. Os policiais teriam disparado tiros enquanto gritavam “perdeu, perdeu”. 

Os presos alegam terem sido torturados – os depoimentos relatam chutes na barriga e pancadas na cabeça. A advogada de um dos detidos solicitou que exames de raio-x e receitas de medicamentos, que comprovariam as agressões, sejam anexados ao processo.

Conduzida pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), a operação tinha como objetivo cumprir três mandados de prisão preventiva e 18 de busca e apreensão na área ocupada por famílias sem-terra. 

A polícia alega que a ação foi motivada por denúncias de que um grupo armado estaria cobrando taxas dos sem-terra e cometendo crimes como porte ilegal de armas, extração ilegal de madeira e incêndios criminosos. 

Em entrevista à Repórter Brasil, o delegado Antônio Mororó classificou as acusações dos movimentos sociais de “levianas” e negou que os presos tenham sido torturados.

Ele afirmou que os policiais reagiram em legítima defesa aos tiros disparados pelos trabalhadores rurais e que diversos depoimentos colhidos sustentam a hipótese de que uma organização criminosa atuava no acampamento.

Polícia alega que houve troca de tiros

Em nota, a Polícia Civil do Pará informou que investiga o envolvimento de um grupo nos crimes de “organização criminosa majorada, porte ilegal de arma de fogo, dano qualificado, furto qualificado, extração ilegal de madeira, incêndio e queimadas de área de preservação e desobediência a ordem judicial”. A corporação alega que “dois homens morreram após troca de tiros” e que foram apreendidas “armas de fogo, munições e celulares”.

Os movimentos sociais contestam a versão da polícia e pedem uma investigação independente. Eles argumentam que as únicas armas apreendidas foram espingardas de cartucho, usadas para caça, e que nenhum policial ficou ferido durante a ação. 

O caso foi discutido em reunião do Fórum de Direitos e Combate à Violência no Campo, que reúne representantes da sociedade civil, movimentos sociais, governo federal e MPF. O grupo debateu a necessidade de prevenção da violência em conflitos agrários e de um canal de diálogo com o Ministérios Público Estadual para evitar abusos policiais.

Histórico de conflitos

A Fazenda Mutamba, ocupada por três grupos de trabalhadores rurais sem-terra, tem um histórico de trabalho escravo e suspeitas de grilagem de terras. Em 2002, 25 trabalhadores foram resgatados da propriedade em condições análogas à escravidão. A família Mutran, proprietária da fazenda, também foi alvo de denúncias de trabalho escravo em outras propriedades. 

A região sudeste do Pará, palco de massacres históricos de trabalhadores rurais, tem pelo menos 200 ocupações em fazendas e propriedades improdutivas ou situadas em terras da União. Há ainda 516 projetos de assentamentos, totalizando quase 5 milhões de hectares em disputa – uma área maior que países como Holanda e Suíça –, segundo dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade ligada à Igreja Católica.

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