O DELEGADO Antônio Mororó Júnior foi removido da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (Deca) de Marabá, no sudeste do Pará. A transferência acontece um mês após Mororó comandar uma operação policial na Fazenda Mutamba que resultou na morte de dois trabalhadores rurais sem terra e denúncias de tortura por outros presos, como noticiado pela Repórter Brasil.
Deflagrada em 11 de outubro, a operação tinha como objetivo o cumprimento de mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão contra ocupantes da fazenda. De acordo com a Polícia Civil do Pará, os agentes teriam reagido a tiros disparados pelos trabalhadores, resultando nas mortes de Adão Rodrigues de Souza e Édson Silva e Silva.
Na ocasião, quatro trabalhadores também foram presos. A polícia afirmou que a ação foi motivada por denúncias contra um grupo armado que estaria cobrando taxas dos sem-terra e cometendo crimes como porte ilegal de armas, extração ilegal de madeira e incêndios criminosos. No fim de outubro, o Ministério Público do Pará passou a investigar a ação da polícia.
Movimentos sociais e a Defensoria Pública do Estado do Pará contestam a versão da polícia, apontando para indícios de execuções sumárias e tortura.
Em nota, vários movimentos sociais afirmam que os trabalhadores estavam dormindo quando foram surpreendidos pelos policiais, que teriam disparado tiros enquanto gritavam “perdeu, perdeu”. A CPT (Comissão Pastoral da Terra), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a SDDH (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos) estão entre os signatários.
Segundo relatos colhidos pelos movimentos sociais, os policiais teriam levado os trabalhadores presos para perto dos corpos dos colegas mortos e os agredido durante horas.
Os movimentos sociais denunciaram a atuação do delegado Mororó, afirmando que ele possui uma relação próxima com latifundiários da região e age com truculência contra os trabalhadores rurais.
“O delegado Mororó não esconde para ninguém suas relações viscerais com os latifundiários da região. Qualquer chamado desse grupo ele está pronto a atender. Qualquer tentativa de novo acampamento ele chega junto com os fazendeiros para dissolver, inclusive em locais fora das áreas de fazendas particulares”, afirmaram os movimentos na nota divulgada após a operação, em outubro. Ainda segundo os movimentos sociais, o delegado costuma ser lento na apuração de assassinatos de trabalhadores rurais, demonstrando parcialidade em suas ações.
Em entrevista concedida à Repórter Brasil na época, o delegado Mororó classificou as acusações dos movimentos sociais como levianas. “Aqui não tem assassino, não”, afirmou.
Mororó negou as acusações de tortura e afirmou que os policiais reagiram aos tiros. Segundo ele, os depoimentos colhidos sustentam a hipótese de uma organização criminosa no acampamento.
“Tenho vários minutos de vídeo desses caras ostensivamente armados, usando balaclavas e patrulhando”, detalhou. Segundo o delegado, esse grupo cobrava taxas de R$ 1.400 dos sem-terra. “Um grupo extremamente armado, que estava constrangendo outras pessoas, outros posseiros”, detalha. “O objetivo da operação é defender o hipossuficiente (população mais vulnerável)”, complementa.
Contudo, após a operação, os policiais não encontraram o forte armamento descrito por Mororó. Sete espingardas velhas foram apreendidas e nenhum policial saiu ferido.
A Repórter Brasil tentou contato novamente com o delegado após ele ser removido da Deca, mas não recebeu resposta. A remoção foi publicada em 13 de novembro e assinada pelo diretor de Polícia do Interior, Hennison José Jacob Azevedo. Mororó foi transferido para a 21ª Seccional Urbana de Marabá.
Procurada, a Polícia Civil do Pará disse que as investigações sobre as denúncias seguem em andamento e que o novo titular da Deca de Marabá será o delegado Vannir Fernandes, que atuava ao lado de Mororó na mesma delegacia.
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Evidências de tortura
A Defensoria Pública relatou à Justiça depoimentos de famílias que mencionam a truculência policial, incluindo um áudio de um acampado escondido com medo de ser executado.
A advogada de um dos presos durante a operação solicitou a inclusão no processo de exames de raio-x e receitas médicas que comprovariam as agressões sofridas por seu cliente. Em petição, a advogada descreve: “Lesões pelo corpo do requerido também podem ser visualizadas, como tiro de raspão na nádega direita, hematomas nas costelas e próximo ao peito”.
O Ministério Público Federal, em sua manifestação, solicita que a Justiça Federal apure a denúncia de tortura. O procurador responsável pelo caso, Nicolao Dino, solicitou à Polícia Federal a realização de perícias e exames residuográficos para determinar se houve resistência armada por parte das vítimas.
A Deca é uma unidade da Polícia Civil do Pará que investiga crimes relacionados a disputas de terras, ameaças e homicídios, especialmente em regiões com histórico de violência no campo, como o Sudeste e o Sul do Pará.
A região foi palco de massacres históricos, como o de Eldorado dos Carajás em 1996, quando 19 membros do MST foram mortos pela polícia. Em 2017, ocorreu o massacre de Pau D’Arco, em que dez trabalhadores sem terra foram mortos em uma operação policial.
Atualmente, há na região 200 ocupações em fazendas e propriedades improdutivas ou situadas em terras da União, além de 516 projetos de assentamentos, totalizando quase 5 milhões de hectares em disputa, segundo dados da CPT.
Não é a primeira vez que os movimentos sociais apontam excessos na atuação do comandante da Deca em Marabá. Entre 2021 e 2022, os movimentos sociais denunciaram a atuação do delegado Ivan Pinto Silva, acusado de promover pelo menos sete despejos ilegais de trabalhadores rurais na região, como mostrou a Repórter Brasil.
Incra quer comprar ou desapropriar fazenda
Atualmente, a Fazenda Mutamba é ocupada por três grupos de trabalhadores rurais sem terra, que não possuem vínculo com os movimentos de luta pela terra mais conhecidos, como o MST, a Fetagri ou a Fetraf.
Em maio, o ministro Cristiano Zanin, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu a ordem de reintegração de posse do Complexo Mutamba. Ele determinou que a desocupação siga o regime de transição, com etapas como comissões de conflitos fundiários, inspeções judiciais e audiências de mediação antes da remoção.
A fazenda pertence à família Mutran, que possui histórico de conflitos e denúncias de trabalho escravo. Em 2002, 25 trabalhadores foram resgatados da propriedade em condições análogas à escravidão. A família também foi alvo de denúncias de trabalho escravo em outras propriedades, como as fazendas Cabaceiras e Peruano.
A empresa Jorge Mutran Exportação e Importação, ligada à família, foi condenada em 2004 a pagar R$ 1,3 milhão por dano moral coletivo ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, a maior indenização já paga no Brasil, por um caso de trabalho escravo até aquele momento. A fazenda Cabaceiras foi destinada a 340 famílias e hoje abriga o assentamento 26 de Março, do MST.
Procurado pela Repórter Brasil, o Incra afirmou que analisa duas possibilidades para a aquisição da fazenda Mutamba e que demonstrou interesse em adquiri-la, enviando um ofício ao espólio de Aziz Mutran Neto para verificar a possibilidade de negociação.
Outra possibilidade aventada pelo Incra é desapropriar a fazenda, com base na lei 4.132/1962 e no decreto 11.995/2024. Para isso, o órgão está consultando a Procuradoria Federal Especializada para verificar a viabilidade jurídica dessa ação.
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