Queimadas na Amazônia: ‘a fumaça vem do agronegócio’, diz Alessandra Munduruku

Em entrevista exclusiva à Repórter Brasil, líder indígena aponta agronegócio como responsável por seca e queimadas que assolam o Pará e critica a falta de ação dos governos estadual e federal
Por Murilo Pajolla
 03/12/2024

DE ITAITUBA (PA) – Na aldeia onde se tornou uma ativista, Alessandra Korap Munduruku não consegue enxergar a outra margem do rio Tapajós. Na reserva indígena Praia do Índio, em Itaituba (PA), o curso d’água está completamente encoberto por uma espessa fumaça de queimadas. Foi lá onde a vencedora do Prêmio Goldman de 2023, o “Nobel do ambientalismo”, organizou sua primeira manifestação, por ônibus escolares para crianças.

Em entrevista à Repórter Brasil no último sábado (30), Alessandra diz que o agronegócio é responsável pela seca que deixa a região coberta de fumaça há 30 dias. “A gente já está doente com mercúrio, com comida industrializada, e agora vamos adoecer nossos pulmões por conta das queimadas”, declarou.

Nas últimas semanas, focos de incêndio vêm sendo registrados no oeste e sul do Pará, próximo a cidades como Santarém e Itaituba, provocando queimadas e alastrando a fumaça. O Pará registrou 9.555 focos de incêndio em novembro, alta de 16% em relação aos 8.187 focos detectados no mesmo mês em 2023, quando o país já sentia os efeitos do El Niño. Já em comparação a novembro de 2022, a alta é de 112%, quando ocorreram 4.507 registros, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

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Para Alessandra, os governos federal e estadual estão fazendo pouco para conter a fumaça, um ano antes da COP30 (Conferência do Clima das Nações Unidas) de Belém (PA). O problema tem origem na seca que, segundo ela, foi agravada por atividades do agronegócio e está mais severa do que nunca, prejudicando a pesca e o acesso à água potável.  

“Muitas vezes o governo federal e estadual fazem discursos muito bonitos para fora [do país]. Mas essa fumaça está acontecendo aqui, mesmo com a tecnologia de satélite para monitorar onde está o fogo”, lembrou.

A ativista, que se tornou uma liderança contra a construção da Ferrogrão, critica ainda o financiamento de bancos europeus que sustentam a expansão da soja, da pecuária e da mineração na Amazônia. 

Imagem aérea da reserva Praia do Índio, em Itaituba, mostra fumaça das queimadas sobre o rio Tapajós (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Imagem aérea mostra a fumaça tomando conta da região de Itaituba, às margens do rio Tapajós, no final de novembro de 2024 (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Leia os principais trechos da entrevista:

Repórter Brasil – Como a fumaça que se espalhou pelo rio Tapajós têm afetado o povo Munduruku?

Alessandra Munduruku – Na Amazônia a gente respira um ar puro, quando a gente compara com São Paulo, que tem aquele cheiro forte de rio contaminado. Mas hoje na Amazônia eu me assusto com esse cheiro de fumaça. A gente sabe que essa fumaça vem muitas vezes do agronegócio, do pasto, da soja, da grilagem de terra. Os pariwat [não indígenas] falam que tem que derrubar [a floresta] para ocupar. [Mas] a floresta no chão não vale nada.

Então você relaciona essa quantidade de fumaça sobre o Tapajós com o avanço do agronegócio na região?

Sim. Dez anos atrás a gente tinha um ar tão puro. Eu tenho um exemplo mesmo da minha casa, da minha aldeia. Antes eu tinha um lugar para pescar, caçar… Um lugar para tirar palha para fazer nossas casas, semente para fazer nossa roupa e raiz para nos curar. Hoje, a cidade tomou conta. Hoje a gente não conhece o espaço onde a gente vivia em paz. A partir do momento em que a gente sai da nossa aldeia, a gente vê um impacto muito grande, que é o desmatamento para plantar soja ou para colocar pasto. Você anda nas BRs [rodovias federais], o que mais tem é desmatamento. E não é o suficiente a terra que eles têm. O agronegócio quer muito mais terra, porque eles criam leis para tomar o nosso território. 

Antigamente, em novembro, a floresta ficava úmida. Tinha um sereno gostoso à noite. A gente sempre falava que Deus ligava o ar condicionado. E hoje tá seco, né? Você vai no mato de manhã cedo, e ele está seco, não está mais molhado, por conta do desmatamento. O que a gente sente é que as árvores estão perdendo a força. Indígenas, ribeirinhos, até mesmo quem mora na cidade, nas grandes capitais, todos têm que se preocupar. A gente já está doente com mercúrio, com comida industrializada, e agora vamos adoecer nossos pulmões por conta das queimadas. A seca está muito severa. Neste ano a seca foi pior do que no ano passado, e no ano que vem pode ser pior ainda. 

Nós, da Amazônia, não estamos acostumados a viver na seca. Os igarapés secaram, os poços secaram, os peixes estão morrendo, o rio está diminuindo mais. Isso é perigoso, porque a gente tem parentes que moram três, quatro dias para chegar na cidade. E agora vai demorar uma ou duas semanas. Quem mora na cidade pode comprar água, carne… Se não tiver a floresta em pé, se não tiver o rio, o povo vai passar fome. Já está passando fome. Então, o governo não está preparado. 

Os brancos falam de emergência climática, mas os países tentam resolver o problema dando dinheiro. Mas esses mesmos países têm os bancos que estão financiando [o desmatamento]. São os mesmos países que compram soja, carne e minério. Eles querem mineração nas terras indígenas, querem comprar mais soja para sustentar porcos, galinhas… E a nossa vida parece que não vale nada. Isso é bem preocupante, porque a culpa dessas queimadas e dessa seca tem um nome: desenvolvimento. É o desenvolvimento da morte. Quando o agronegócio quer uma ferrovia, como o próprio presidente [Lula] quer a Ferrogrão, eles falam que [o empreendimento] é sustentável. Não existe Ferrogrão sustentável. Quando você desmata milhares de hectares para plantar soja, e o rio seca, não tem como a balsa passar. A soja transportada para Europa ou China vai ficar travada. E quem vai ficar com o impacto somos nós.

Tudo isso está impactando o planeta, e isso tem a ver com os países desenvolvidos, e os bancos deles que alimentam o agronegócio. O agronegócio mata assim, ele sufoca… Sufoca até mesmo o seu pulmão como se fosse um cigarro.

Quando a gente chega no exterior, a primeira coisa que os outros países falam é: “A gente não tem nada a ver com o desmatamento que está acontecendo na Amazônia.” Quando falam isso, estão tirando a sua responsabilidade, pois estão ajudando a nos matar quando compram soja, minério, carne. Então, eles também ajudam a desmatar e a matar nós que estamos dentro da floresta.

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Fazenda de criação de gado na região de Itaituba, próximo às margens do rio Tapajós (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Há medidas emergenciais que poderiam ser tomadas para melhorar a qualidade do ar?

Primeiramente, fazer as demarcações de todas as terras [indígenas], e tirar todos os invasores. E ajudar o próprio Ibama a apagar os fogos. Não é só queimar as dragas [de garimpo], mas também sustentar aqueles que querem apagar o fogo, fazer uma formação com eles. Nós mesmos podemos ajudar a apagar os incêndios. 

Muitas vezes o governo federal e estadual fazem discursos muito bonitos para fora [do país]. E, na realidade, aqui essa fumaça está acontecendo, mesmo com a tecnologia de satélite para monitorar onde está o fogo. Por que não organizam um avião, pessoas do Prevfogo [Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais], do Ibama, do ICMBio, para apagar? Muitas vezes essas organizações são muito precárias. Eles vão só com coragem e muitas vezes não têm material bom para apagar o fogo. Às vezes tentam salvar ou pedir ajuda à comunidade. E as pessoas queimando o pé, queimando a mão para tentar apagar o fogo com balde de água. Esse trabalho deveria ser feito pelo próprio Estado, o próprio governo federal. Hoje estão falando muito de mercado de carbono. Mas vão vender o quê? Cinzas, a floresta queimada, as árvores, os animais mortos, tudo morto? 

Acho que o papel do governo tem que melhorar, porque não adianta falar que vai dar dinheiro para os povos indígenas [por meio do mercado de carbono], como fala o próprio Estado do Pará. Sendo que ele não faz o que é papel do Estado, que é parar o desmatamento, que é não dar licença para construir grandes portos, para plantação de soja, para fazer mineração.

Às portas da COP30, o governo do Pará aposta que o estado vai ser palco de acordos internacionais que vão, de fato, combater as mudanças climáticas…

Olha, eu acho que muitos países que vão financiar [a preservação ambiental] não sabem o que está acontecendo na Amazônia, não sabem que os povos indígenas estão morrendo com a fumaça, estão morrendo com fome, com pouco peixe, a floresta queimando. Você planta e a roça fica morta. Tem pessoas que estão escavando buraco para buscar água para beber.

O governo paraense tem comunicado essa realidade com transparência?

O governo do estado faz um discurso bonito. Há uns três anos, quando a gente estava falando que as mulheres Munduruku estavam com leite materno envenenado com mercúrio do garimpo, o que o governador fez? Criou o Dia do Garimpeiro, dia 11 de dezembro, em comemoração. Isso é afrontar a gente que está pedindo socorro. Nossos peixes estão contaminados com mercúrio. 

Alessandra Korap Munduruku é uma das principais vozes contra o  projeto de construução da Ferrogrão: "É o desenvolvimento da morte", ela diz (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Alessandra Korap Munduruku é uma das principais vozes contra o projeto de construução da Ferrogrão: “É o desenvolvimento da morte”, ela diz (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

E o governo Lula?

O governo federal tem duas caras: uma que ele tenta mostrar para o mundo todo. Na primeira vez que veio a caravela do Pedro Álvares Cabral [em 1500], todo mundo ficava feliz ganhando espelho. “Olha como sou bonito aqui no espelho, sou o povo da floresta”. E aí começou o massacre da nossa língua, da nossa  cultura, um massacre do território… E hoje nós somos poucos povos indígenas. A Amazônia não é só mostrar uma fantasia. Vamos mostrar a realidade de escolas caindo [aos pedaços], de professores que muitas vezes não ganham bem. A gente tem que conseguir combustível e alimentação aos professores para conseguirem dar aula. Isso é papel do Estado, mas infelizmente não fazem. As pessoas doentes em filas e filas de hospitais, para conseguirem uma ficha [de atendimento]. E muitas vezes não conseguem, morrem na porta dos hospitais. Estamos vendo nossos parentes sendo massacrados, mortos, lideranças sendo mortas. Isso também é dever do Estado, o de proteger. Não quero só mostrar que nós temos um rosto bonito, uma pintura bonita, um cocar bonito… Não, a gente quer a realidade. A gente quer direito, a gente quer terra, a gente quer respeito.

Você está aqui na aldeia onde começou a sua militância, a Praia do Índio, em Itaituba, para um celebração da Terra Indígena Sawré Muybu, um dos passos iniciais do longo processo demarcatório. A reivindicação desse território começou com uma autodemarcação. Qual a importância desse território?

É uma luta muito grande que não acabou. Subimos um passo acima, um degrauzinho. Temos muitos degraus para subir. Porque a terra só é sua quando você está com o registro na mão. Até isso acontecer, você corre o risco de perder por conta da PEC 48 [do Marco Temporal]. O território Sawré tem 178 mil hectares. Há uns dez anos o governo federal queria construir a usina hidrelétrica de Belo Monte. Meu povo ocupou lá em 2013. Depois disso, o governo federal construiu a usina, colocou Polícia Federal, colocou pesquisadores. Então, os pesquisadores já estavam entrando dentro do território fazendo suas pesquisas. E aí o povo se organizou e falou: “Vocês não vão fazer usina hidrelétrica aqui”. O povo criou o protocolo de consulta. Consulta não é para falar com uma liderança, com uma associação, é com o povo. Se tem 15 mil Munduruku, vamos falar com 15 mil, incluindo crianças, mulheres, pajés, professores, enfermeiros, caciques. Não ia impactar só nós, mas os ribeirinhos também. Então a gente pensou em cada detalhe sobre como queríamos que fosse a consulta. O governo federal falava que nós não queríamos consulta, não queríamos conversa, mas nós queríamos sim, mas do jeito que estava no protocolo.

Em 2014, o povo fez a primeira autodemarcação do território. Foram para o mato, levaram placa, pesquisadores de confiança, arqueólogos, e foram mapeando. Quando terminaram de mapear, levaram esse documento para Brasília para mostrar que o território era nosso. Se o governo não ia fazer demarcação, nós já tínhamos feito a autodemarcação. E aí, em 2016, foi assinado o RCID (Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação) da terra indígena. E só agora o próximo passo da demarcação foi feito. Agora, a gente vai esperar a Funai fazer a demarcação física, botar as placas, colocar os marcos e entregar para a gente o que foi demarcado. Depois vai para a Casa Civil, para a homologação do presidente Lula.

Qual é o próximo passo da luta do povo Munduruku?

A gente tem várias lutas. O povo Munduruku ainda luta pela Terra Indígena Sawré Ba’pim. Ainda falta a demarcação de outras terras, mais de 500 terras indígenas. Porque a gente, como indígena, não pode pensar só em nós, temos que pensar no coletivo, nos outros parentes também que estão sofrendo. Como os Guarani Kaiowá. A gente tem que fortalecer esses povos que estão sendo massacrados, diretamente, até mesmo com a polícia de choque, entrando nas aldeias.

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