CERCA DE 300 INDÍGENAS de 20 povos diferentes ocupam há seis dias a sede da Secretaria de Educação do Estado do Pará (Seduc), em Belém. Eles exigem a revogação da Lei 10.820/2024, aprovada em dezembro, que altera a carreira do magistério no estado e abre caminho para a troca do ensino presencial por educação a distância (EAD) em escolas de áreas remotas, como comunidades quilombolas e terras indígenas.
Os manifestantes também pedem a exoneração do titular da pasta, Rossieli Soares da Silva, ex-ministro da Educação no governo Michel Temer.
Em resposta à ocupação da Seduc, tropas da Polícia Militar cercaram o local desde a terça-feira (14), início da mobilização. Segundo os indígenas, policiais teriam usado spray de pimenta contra os manifestantes, cortado energia e bloqueado a entrada de suprimentos no edifício ocupado. O acesso da imprensa ao prédio só foi liberado na sexta-feira (18), após decisão judicial.
“Estamos em manifestação pacífica, mas o clima é de tensão desde o primeiro dia”, disse Auricélia Arapiuns, liderança do baixo-Tapajós.
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Dentre as principais alterações previstas pela nova lei está o ‘sumiço’ do Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), sequer mencionado no texto. O Somei integra o Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) que, desde 1982, é a principal política pública estadual de inclusão de estudantes no ensino médio e nos anos finais do fundamental em comunidades onde não há oferta regular de ensino.
A nova lei também prevê que o Some, que atende quilombolas, ribeirinhos e camponeses, terá nova regulamentação específica, a ser definida pelo governador Helder Barbalho (MDB).
Fora da capital, o protesto também ganhou força com a interdição da BR-163, em Belterra, e da BR-222, em Bom Jesus do Tocantins, no interior do estado.
Na avaliação dos manifestantes e professores, tanto a regulamentação em aberto do Some quanto a ausência do Somei na nova lei pavimentam o caminho para a substituição das aulas presenciais por vídeos exibidos via televisão nas salas de aula para estudantes em áreas remotas, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
Segundo Alessandra Munduruku, uma das lideranças do protesto, muitas escolas em aldeias não têm energia elétrica, estruturas adequadas ou materiais didáticos. Em várias localidades, os próprios moradores constroem barracões que funcionam como salas de aula, sem condições básicas para professores e alunos, quiçá para aulas no formato EAD.
“O governo do estado não está falando com as lideranças, com quem está na base. Não estão consultando o que de fato está acontecendo. Porque no papel é uma coisa, na realidade é outra. Muitas vezes o professor não tem nem caneta para assinar um documento, para fazer o trabalho dele”, afirma.
As dificuldades enfrentadas pelos professores também são agravadas pelas distâncias entre comunidades e escolas. Em muitas aldeias, diz Alessandra, os professores precisam gastar centenas de reais do próprio salário com combustível e mantimentos. Em outros casos, alunos precisam se mudar para conseguir seguir estudando.
“Os alunos estudam em condições extremamente precárias, e agora querem substituir os professores por aulas gravadas?”, questiona.
Poró Borari, liderança do baixo-Tapajós, lembra que a falta de diálogo com as comunidades afetadas pelas mudanças na Educação Indígena pela nova lei viola a OIT 169, que prevê consulta livre, prévia e informada sobre decisões que afetam a vida de comunidades tradicionais. “Não queremos nada de extraordinário, apenas o básico: professores, materiais didáticos, infraestruturas seguras”, afirmou Poró Borari.
A Repórter Brasil procurou a Secretaria de Educação do Estado do Pará e solicitou dados e entrevista com a Coordenadoria de Educação Escolar Indígena (Ceind), mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.
Mais precariedade, menos professores
Segundo professores ouvidos pela reportagem, apesar de a nova lei não acabar formalmente com a educação presencial em aldeias indígenas e outras áreas remotas, ela reduz os salários dos professores que trabalham nesses locais, mexendo em especial na gratificação paga aos profissionais vinculados ao Somei.
“São mudanças que precarizam ainda mais o trabalho e o ganho do professor, e que consequentemente vão acabar afastando e reduzindo o número de profissionais em campo, pavimentando o ensino EAD como modalidade única para estudantes indígenas, quilombolas, camponeses e ribeirinhos”, disse um professor vinculado ao Somei que preferiu não se identificar.
Ainda em novembro de 2024, o Sintepp (Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Pará) alertou em nota pública que o governo do estado já havia determinado que as diretorias escolares parassem de ofertar matrícula no 1º ano do Some, porta de entrada do ensino médio, o que “na prática significaria a substituição dos professores por TV’s no ensino médio como um todo em três anos”.
“Causa-nos grande preocupação que o governador Helder, que posa de defensor da Amazônia e do clima nos eventos internacionais, aplique esse golpe contra os direitos humanos das populações tradicionais, às vésperas de Belém sediar o maior evento climático do mundo – a COP 30 – que ocorrerá em novembro de 2025″, frisou o Sintepp em nota, pontuando que o Some tem garantido professores/as em cerca de 500 turmas que atendem às comunidades mais distantes.
Para Antônio Lopes, professor vinculado ao Somei, o impacto prático da nova legislação será devastador. “Sem professores, o ensino em comunidades remotas entrará em colapso”, afirma.
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