STF julga validade de lei paulista de combate ao trabalho escravo

Legislação de 2013 que prevê a cassação da inscrição estadual de empresas condenadas em segunda instância pela exploração de mão de obra análoga à de escrava é considerada pelas Nações Unidas uma referência no combate a esse crime
Por Leonardo Sakamoto
 11/03/2025

A LEI PAULISTA DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO, sancionada em 2013 pelo então governador de São Paulo e atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, pode ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento pautado para quinta-feira (13). 

A legislação, que prevê a cassação da inscrição estadual de empresas condenadas em segunda instância na Justiça pela exploração de mão de obra análoga à de escrava, é considerada pelas Nações Unidas uma referência no combate a esse crime.

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5465 questionando a lei 14.946/2013. 

Proposta pelo então deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSD) e regulamentada por Alckmin no dia 13 de maio de 2013, no aniversário de 125 anos da Lei Áurea, a legislação afirma que as empresas e pessoas responsabilizadas por exploração de trabalho escravo ficam impedidas de exercer o mesmo ramo de atividade econômica, ou de abrir nova firma no setor, durante um período de dez anos. 

A CNC diz que todos devem combater o trabalho escravo, mas argumenta que a lei prevê a responsabilização de estabelecimentos comerciais em razão de atos criminosos praticados não por eles próprios, mas por terceiros. 

A ADI cita ainda que a legislação paulista invade a competência da União por delegar à Secretaria Estadual de Fazenda o poder de apurar condições de trabalho, impedindo a individualização de penas.

A Assembleia Legislativa de São Paulo, ao justificar a aprovação da lei, afirma que não compete à Secretaria de Fazenda de São Paulo determinar o que é ou que não é escravidão, mas usar informação pública do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Poder Judiciário para tomar decisões a respeito da manutenção do cadastro do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) . Já o governo de São Paulo sustenta que o Estado não invadiu competência da União por se tratar de um caso de direito tributário, não penal ou do trabalho.

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Zanin acompanha Nunes Marques; Moraes diverge

Antes de ser destacado para a análise presencial pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, o julgamento teve três votos no plenário virtual. Relator do caso, o ministro Kassio Nunes Marques julgou o pedido parcialmente procedente. Manteve a lei, mas demandou mudanças.

Nunes Marques exigiu “comprovação, em processo administrativo sob as garantias do contraditório e da ampla defesa, que o preposto do estabelecimento comercial saiba ou tenha como suspeitar da participação de trabalho escravo na cadeia de produção das mercadorias adquiridas” e demandou comprovação “de que o sócio a ser punido tenha participado, comissiva ou omissivamente, dos atos aquisitivos de mercadorias de origem espúria”. O voto foi acompanhado pelo ministro Cristiano Zanin.

Já o ministro Alexandre de Moraes abriu divergência, posicionando-se favorável à ação, o que invalidaria a lei. Moraes argumentou que a lei, “ao criar mecanismo fiscalizatório das atividades produtivas, incide diretamente sobre a competência legislativa privativa da União de legislar sobre direito do trabalho, além de ter um objetivo claro de executar a inspeção do trabalho”.

Instada pelo STF a se manifestar, a Procuradoria-Geral da República considerou inconstitucional apenas o trecho da lei que pune os sócios do empreendimento flagrado com trabalho escravo e os proíbe de exercer o mesmo ramo de atividade por dez anos em São Paulo. Em sentido contrário, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu que o estado invadiu a competência da União.

Na casa onde vivem com as quatro filhas pequenas, casal boliviano improvisou uma oficina de costura e vivem de trabalhos informais (Foto: Yan Boechat / Repórter Brasil)
Casos de trabalho escravo em oficinas de costura são recorrentes em São Paulo (Foto: Yan Boechat / Repórter Brasil)

‘São Paulo deve ter fábrica, nem senzalas’

A legislação paulista inspirou debates semelhantes no Maranhão, Tocantins e Mato Grosso do Sul. O objetivo era criar mecanismos de combate a uma das piores formas de exploração do ser humano, mas também melhorar a qualidade e a competitividade dos produtos paulistas vendidos dentro e fora do país.

Na época de sua aprovação, sanção e regulamentação, a lei provocou o descontentamento de empresários de setores envolvidos com resgates e denúncias de trabalho escravo em São Paulo. Apesar das pressões, na época, Alckmin decidiu manter a lei. O então governador, questionado sobre o tema, afirmou que “São Paulo deve ter fábricas, não senzalas”. 

O processo de cassação da inscrição pode começar a partir de qualquer condenação judicial colegiada. Ou seja, não basta uma operação de fiscalização do governo federal resgatar os trabalhadores e nem uma decisão judicial de primeira  instância: é necessária a confirmação em segunda instância, tomada por um grupo de desembargadores.

A regulamentação da lei também prevê que, “excepcionalmente, em casos específicos autorizados por lei”, o procedimento de cassação poderá ser iniciado a partir de “decisão administrativa sancionatória, contra a qual não caiba mais recurso, proferida por autoridade competente para fiscalizar e apurar o ilícito, em procedimento no qual tenham sido observados os princípios do contraditório e da ampla defesa”. 

A Secretaria da Fazenda paulista deve iniciar um Procedimento Administrativo de Cassação a partir da comunicação pela Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) da decisão judicial colegiada.

A lei pune empresas que se beneficiem da exploração direta ou indireta deste tipo de mão de obra. Segundo Carlos Bezerra Jr, autor da lei e atual vereador na capital paulista, ela não pune, por exemplo, uma barraquinha de cachorro quente que apenas distribui mercadorias sem relação de responsabilidade com sua fabricação. Mas tem como focos as empresas consideradas diretamente ou indiretamente responsáveis pela exploracão do trabalhador. 

Como exemplo, ele cita o caso hipotético de uma rede de lojas que encomenda uma coleção de roupas a uma confecção que, por sua vez, terceiriza a produção a uma oficina de costura flagrada por exploração de escravidão contemporânea. No caso de responsabilização de todos, eles devem ser enquadrados na previsão da lei.

Na avaliação de entidades que atuam no enfrentamento ao trabalho escravo, a maior força da lei não está no efetivo fechamento de empresas, mas na possibilidade real de essa possibilidade acontecer. Em outras palavras, a legislação atuaria como um fator de dissuasão e de incentivo à aplicação de políticas de monitoramento sobre cadeias produtivas.

Até hoje, nenhuma empresa foi condenada nos termos previstos pela Lei Paulista. O Ministério Público do Trabalho já solicitou, contudo, a aplicação das sanções a empresas do vestuário têxtil.

O que é trabalho escravo contemporâneo?

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

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