A criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no último dia 15 de março, para investigar contratos suspeitos entre Organizações Não Governamentais (ONGs) e o poder público suscitou as seguintes questões: por que acusações de desvio de dinheiro envolvendo entidades da sociedade civil aparecem com freqüência no noticiário? O que poderia ser feito para combater as irregularidades?
De acordo com Eduardo Pannunzio, advogado do Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), que reúne as maiores corporações que investem na área social no país, as ONGs lidam com uma legislação esquizofrênica para o setor. Se por um lado existem instrumentos bastante avançados, por outro ainda existem brechas que podem representar um verdadeiro convite à corrupção. É o caso dos chamados convênios.
"Eles são pouco transparentes e permitem pouca publicidade. Há uma doutrina pacífica na legislação brasileira que para convênio não é preciso fazer licitação ou qualquer tipo de seleção pública. Quem faz convênio, em geral, tem proximidade com o gestor público", explica Pannunzio. Além disso, a prestação de contas se resume a um balanço contábil apresentado ao final das atividades. Isso quer dizer que basta reunir um monte de notas fiscais comprovando os gastos. "Se o projeto aconteceu, se o público-alvo foi atingido, se os resultados foram alcançados, a administração pública pouco se preocupa", critica.
Em 1999, foi promulgação a lei que criava a figura da Organização Social Civil de Interesse Público (Oscip). Com esse título, concedido pelo Ministério da Justiça (MJ) a entidades que comprovem atividades para o bem social, a organização pode ter em seus quadros dirigentes remunerados, o que não vale para ONGs comuns. A lei também representou uma alternativa concreta aos convênios com a criação do chamado "termo de parceria".
Além de simplificar a burocracia para o estabelecimento da relação entre uma ONG e o Estado, ele também permite um acompanhamento mais criterioso dos serviços prestados pela Oscip contratada. Isso porque ela é obrigada a fazer relatos periódicos de suas ações a uma comissão avaliadora, além de detalhar o orçamento necessário para a realização do seu trabalho. Além disso, para sair do papel, o termo de parceria também necessita da aprovação de um conselho especializado no debate de políticas públicas.
Mesmo com todas essas vantagens, o número de termos de parceria atualmente em vigor não chega a uma dezena, embora haja cerca de quatro mil entidades qualificadas como Oscip em todo o país. Uma das explicações para essa discrepância é justamente a força do hábito dos convênios arraigada na máquina pública. "Além disso, é um instrumento muito conveniente para o estado, que pode escolher com quem se relacionar", observa o advogado do Gife. Segundo José Eduardo Romão, diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça, ampliar o uso dos termos de parceria pode ser uma boa saída para contornar as limitações impostas pelos convênios.
O governo também vem tomando outras medidas para garantir o bom uso dos recursos públicos por parte das ONGs. Até abril, todas as Oscips e instituições que possuam o título de utilidade pública, como centros de saúde comunitários e de assistência social, deverão fazer parte do Cadastro Nacional de Entidades (CNE), em que tornarão pública a prestação de contas de suas atividades. A lista já está disponível na página do MJ na internet. "Isso vai viabilizar a fiscalização do TCU e da Receita Federal, além da própria sociedade civil", diz Romão. Quem não corresponder a essa exigência será descredenciado pelo MJ, o que inviabilizará o recebimento de emendas parlamentares, por exemplo.
Existe ainda outra ferramenta, assimilada da iniciativa privada, para dar mais transparência ao trabalho das ONGs: o balanço social. O Ibase é um dos pioneiros na divulgação, e há três anos publica no seu site e em outros veículos de comunicação uma declaração de todas as suas fontes financeiras e o que foi feito com o dinheiro. "Não basta ficar só defendendo causas, é preciso mostrar a cara. Acho que as entidades sem fins lucrativos deveriam ser obrigadas a publicar seu balanço social em uma forma determinada", defende Sucupira.
Independência
Dentre os desafios enfrentados por aqueles que trabalham em uma ONG, captar recursos para viabilizar suas atividades é um dos maiores, senão o maior. Na opinião de Paulo Haus Martins, advogado da Rede de Informação para o Terceiro Setor (Rits), mudanças na legislação tributária feitas pelo governo FHC engessaram uma das fontes de financiamento mais significativas para as entidades do terceiro setor: a doação de pessoas físicas. "No Brasil, são elas quem doam, basta ver as Igrejas. Porém, entramos num período de desincentivo a essa prática. Por isso, grande parte das ONGs são na realidade ODGs, Organizações Dependentes de Governo. Precisam loucamente de recursos que recebem do Estado por convênios", afirma.
Atualmente, somente pessoas jurídicas que declaram seu IR com base em lucro real – instrumento usado pelas grandes corporações, que correspondem a menos de 3% do total de empresas no país – têm o direito de deduzir do seu imposto as contribuições repassadas a Oscips e instituições com certificado de utilidade pública federal.
Para Martins, uma base expressiva de pessoas físicas como doadoras também pode garantir autonomia às ONGs. "É por isso que o Greenpeace enfrenta governos e empresas no mundo inteiro", justifica. Entretanto, é claro que nem todas as instituições têm o apelo e a estrutura de um Greenpeace para atrair simpatizantes planeta afora. Por essa razão, diversificar as fontes de financiamento é a chave para driblar os problemas financeiros. E aí também entra o dinheiro do Estado.
"O problema não está na origem do recurso, mas o que se faz com ele. Criou-se uma mentalidade de que as ONGs não podem utilizar fundos públicos. Mas quantas atividades de luta contra analfabetismo e serviços de saúde são feitos por boas entidades no pais todo, através de convênios? Se não fossem elas, estaríamos numa situação bem pior", rebate João Sucupira, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundado em no começo da década de 80 pelo sociólogo Herbet de Souza, o Betinho.
É difícil acreditar que o crescimento do número de ONGs no Brasil n&atil
de;o seja saudável. Afinal, quanto mais organizada, mais democrática é uma sociedade. Qualquer discussão com o intuito de regular esse setor deve primar pela transparência no uso dos recursos destinados a amenizar as ilimitadas mazelas brasileiras. Porém, o discurso não deve ficar apenas no campo da repressão. Há entidades sérias – a maioria, diga-se de passagem – que necessita de estímulo e de liberdade para atuar.
Clique nos links abaixo para ler as outras partes da reportagem:
Parte I – ONGs: o desafio de garantir transparência sem restringir liberdade de atuação
Parte II – Da filantropia, passando por movimentos sociais, ao investimento de empresas
* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Revista Problemas Brasileiros