A PETROLÍFERA SAUDITA ARAMCO comprou sebo bovino de um frigorífico brasileiro ligado a uma fazenda flagrada com trabalho escravo, confirmado pelas autoridades brasileiras. A exportação partiu de uma unidade da Minerva Foods — uma das maiores exportadoras de carne do Brasil — e teve como destino a Aramco Americas, subsidiária da empresa nos Estados Unidos. A gordura animal, usada na produção de biodiesel, foi enviada em 2023 e 2024, segundo registros alfandegários obtidos pela Repórter Brasil.
Em julho de 2023, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) resgatou 13 pessoas de trabalho análogo à escravidão na Fazenda Lagoa do Leite, em Trombas (GO). Segundo a fiscalização, os trabalhadores dormiam em barracas de camping dentro de um galpão que também servia como depósito de agrotóxicos. Não havia banheiros e os empregados estavam sem registro formal e sem equipamentos de proteção para trabalhar. O trabalho deles era construir a casa onde o empregador moraria, aponta o relatório da operação de resgate. O fazendeiro foi incluído na Lista Suja do trabalho escravo em abril de 2025.
Cerca de oito meses após o resgate e antes da inclusão na Lista Suja, em fevereiro de 2024, a mesma fazenda forneceu gado para abate à unidade da Minerva em Palmeiras de Goiás (GO), de acordo com documentos de trânsito de bovinos acessados pela reportagem. Esta é a mesma unidade do frigorífico identificada exportando sebo à Aramco.
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A Aramco ficou em primeiro lugar no ranking da Statista de 2024 das maiores petroleiras do mundo por volume de produção. Sua subsidiária Aramco Americas dedica-se principalmente ao desenvolvimento de novas tecnologias e possui três centros de pesquisa nos Estados Unidos. Em dezembro de 2024, a empresa anunciou um acordo com a francesa TotalEnergies para estudar a viabilidade de uma fábrica de biocombustível para aviação na Arábia Saudita. O estudo inclui o uso de gorduras animais como insumo, mesmo material exportado do Brasil à Aramco.
A Repórter Brasil procurou a Aramco por e-mail, mas a companhia não retornou até a publicação da reportagem. O espaço segue disponível para futuras manifestações.
Procurada, a Minerva Foods informou que a fazenda não possuía passivos ambientais ou sociais no momento da relação comercial. Declarou bloquear imediatamente fornecedores após a inclusão deles na Lista Suja e realizar monitoramento de 100% dos seus fornecedores diretos, com auditorias externas em seus protocolos socioambientais.
O proprietário da Fazenda Lagoa do Leite, Daniel Mateus Marques Santos, foi procurado por telefone e e-mail para comentar as informações apresentadas na reportagem, mas não respondeu até a publicação. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
‘Empresa verde’ americana também tem elo com trabalho escravo
A DGD (Diamond Green Diesel), líder na produção de diesel de fontes renováveis nos Estados Unidos, também comprou sebo bovino da Minerva, de acordo com registros alfandegários.
Em julho de 2022, sete homens e uma mulher foram resgatados de condições análogas à escravidão na Fazenda Alto Guaporé, em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), de acordo com fiscalização do MTE. Os trabalhadores dormiam em barracas de camping sob uma figueira, sem acesso à água potável e usavam um buraco no chão como banheiro, aponta o relatório de inspeção. A propriedade foi incluída na Lista Suja do trabalho escravo em outubro de 2024.
Antes da inserção da fazenda na lista, em abril de 2024, a Alto Guaporé vendeu animais para outra propriedade, a Fazenda Santa Lúcia, mostram documentos de trânsito bovino. Esta segunda fazenda vendeu gado para abate à unidade da Minerva em Mirassol D’Oeste (MT) entre maio e setembro daquele ano, de acordo com registro de trânsito animal. Segundo documentos alfandegários analisados pela Repórter Brasil, essa planta da Minerva exportou sebo bovino à DGD em julho de 2024.

“É estranho que uma indústria que se apresenta como ‘verde’ tenha problemas com trabalho forçado em sua cadeia de fornecimento”, comentou Richa Mittal, vice-presidente e diretora de inovação da FLA (Fair Labor Association), uma organização internacional que promove os direitos humanos no trabalho e a melhora nas condições de trabalho em cadeias produtivas globais.
No Brasil, durante as operações contra trabalho escravo, autos de infração são lavrados e iniciam-se processos administrativos contra o empregador flagrado com a prática, mas a inclusão de seu nome na lista não é imediata. Os empregadores têm direito à defesa em primeira e segunda instâncias. Após esse procedimento, quando confirmada a validade da autuação, o empregador então é inserido na Lista Suja e permanece por dois anos. Atualizado semestralmente, o cadastro é usado por empresas e bancos para evitarem relações comerciais com empregadores que violaram direitos trabalhistas.
Mas combater o trabalho escravo apenas bloqueando fornecedores após sua entrada na Lista Suja é uma medida insuficiente, segundo especialistas. Para a diretora da Fair Labor, muitas empresas costumam ter uma postura só reativa e respondem apenas quando há denúncias públicas. Ela recomenda a implementação de medidas preventivas nessas companhias, como auditorias e monitoramento contínuo dos fornecedores. “Pouquíssimas empresas realmente têm visibilidade da situação em nível de fazenda. Elas não sabem quais são as condições de trabalho nas fazendas”, comentou Mittal.
Questionado pela reportagem, o pecuarista Tomas Andrzejewski, dono da Fazenda Alto Guaporé, afirmou ter cumprido um TAC e estar tentando agendar nova audiência com o MTE para solicitar a retirada de seu nome da lista. Sobre a venda de gado, ele confirmou que ocorreu em abril de 2024, antes da inclusão na lista, e que foi a única e última feita.
Procurado por telefone e e-mail, o dono da fazenda Santa Lúcia não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço está disponível para futuras manifestações.
A Minerva reiterou que não realiza relação comercial com empregadores ou produtores que constem na Lista Suja e que o bloqueio é aplicado imediatamente a partir do momento em que o nome é incluído na lista. Também afirmou que até que a inclusão dos empregados flagrados com trabalho escravo ocorra “são realizadas avaliações das atividades comerciais para que atendam integralmente” aos critérios de compliance e responsabilidade socioambiental da companhia. Quanto aos fornecedores indiretos, a companhia afirmou utilizar ferramentas tecnológicas específicas e atuar na requalificação de propriedades envolvidas em irregularidades. A manifestação completa pode ser lida aqui.
Mais uma fazenda na Lista Suja aparece na rede de fornecedores
Outro caso semelhante envolve a Fazenda Santo Antônio, também chamada de Angical, que foi fiscalizada pelo MTE em 2022 e onde quatro trabalhadores foram resgatados de trabalho análogo ao de escravo. De acordo com a fiscalização, os trabalhadores tinham dívidas com o empregador e estavam alojados em barracas improvisadas. Também não havia banheiro, cozinha ou água encanada. “Tratava-se de um local sem nenhuma condição de habitabilidade”, diz trecho do relatório da inspeção. O proprietário, Antônio de Pádua Ferreira de Barros, entrou para a Lista Suja em abril de 2023.

Após integrar a lista, em abril de 2024, a Fazenda Santo Antônio (Angical) vendeu bois a outra propriedade rural, a Agropecuária Campo Belo. Em setembro de 2024, a Campo Belo forneceu gado para abate ao frigorífico Boi Brasil. As compras foram identificadas em documentos de trânsito animal. Segundo registros de operação logística obtidos pela Repórter Brasil, o Boi Brasil foi fornecedor de resíduos da Araguaia Indústria de Óleos e Proteínas entre fevereiro e março de 2023. A Araguaia é uma unidade do grupo Fasa, que exportou sebo à DGD em 2023 e 2024.
A DGD é uma joint venture entre a refinadora norte-americana Valero Energy e a multinacional Darling Ingredients. Em 2022, a Darling adquiriu o grupo brasileiro Fasa, que processa resíduos da indústria da carne e tem unidades na Amazônia, como a Araguaia Indústria de Óleos e Proteínas.
Nos Estados Unidos, a gordura animal é transformada em diesel renovável. Em seu site, a DGD afirma que o combustível produzido em seu parque industrial reduz emissões de gases do efeito estufa em até 80% na comparação com o diesel de origem fóssil. Registros alfandegários acessados pela Repórter Brasil mostram que as diversas empresas do grupo Fasa são fornecedoras de sebo da DGD.
O frigorífico Boi Brasil, o grupo Fasa e a DGD foram procurados por email e telefone para comentar as informações apresentadas nesta reportagem, mas as empresas não responderam até sua publicação. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
O dono da Fazenda Santo Antônio (Angical) também foi procurado por telefone, por e-mail e pelo contato de sua advogada para comentar o flagrante em sua propriedade e medidas de regularização às normas trabalhistas, mas não respondeu. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
Responsabilidade corporativa e do governo
Há outro mecanismo que busca evitar que frigoríficos comprem de fazendas flagradas com trabalho escravo, o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne. É um acordo firmado entre frigoríficos e o MPF que estabelece que as companhias signatárias não comprem rebanho de propriedades que tenham irregularidades constatadas, como integrar a Lista Suja.
No entanto, a rastreabilidade de fornecedores indiretos no Brasil continua insuficiente, segundo o relatório “Bullsh*t: Forced Labor in Brazil’s Beef and Tallow Supply Chains” (“Bullsh*t: Trabalho forçado nas cadeias de abastecimento de carne bovina e sebo no Brasil”), da organização Corporate Accountability Lab (CAL). O relatório apresenta evidências de trabalho forçado nas cadeias de carne bovina e sebo, com ligações diretas ao mercado dos Estados Unidos. Considerando que os EUA são o maior comprador de sebo brasileiro e o segundo maior comprador de carne bovina brasileira, o relatório destaca que “esse não é apenas um problema do Brasil. É uma praga global que afeta consumidores, pecuaristas e produtores de biocombustíveis dos EUA”.
“Uma das formas pelas quais as empresas evitam a responsabilização pelo trabalho forçado em suas cadeias de suprimento é por meio da ‘lavagem de gado’”, afirma o relatório. “Empregadores cujas fazendas foram autuadas por práticas ilegais, como trabalho forçado ou desmatamento ilegal, transferem deliberadamente seu gado para ‘fazendas limpas’, sem violações conhecidas”, o que “oculta a origem do gado, permitindo que os compradores aleguem que estão adquirindo de fornecedores em conformidade legal”.
O relatório recomenda que os frigoríficos comprem apenas de fazendas registradas no SISBOV (Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos) para melhorar a rastreabilidade. A organização também insta o governo brasileiro a ampliar a transparência, divulgando informações sobre o monitoramento das cadeias de suprimento e riscos de trabalho forçado, incluindo Guias de Trânsito Animal (GTAs) e dados históricos da Lista Suja, com detalhes sobre quando e por que empregadores foram removidos da lista.
Antes da publicação, a CAL apresentou três petições à Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP), pedindo que a agência bloqueie a importação de carne bovina e seus derivados produzidos com trabalho forçado no Brasil. “De acordo com a Seção 307 do Ato Tarifário de 1930, é ilegal importar produtos feitos com trabalho forçado. Apresentamos à CBP evidências suficientes de carne e subprodutos bovinos entrando ilegalmente nos Estados Unidos e prejudicando o mercado de carne produzida de forma ética. É hora de as empresas brasileiras enfrentarem esse problema antes de continuarem a lucrar com os mercados dos EUA”, afirmou Alev Erhan, advogada da organização.
Para a diretora da Fair Labor, o crescimento acelerado do mercado de biocombustíveis torna urgente a definição de parâmetros mínimos de responsabilidade social e de rastreabilidade na cadeia para evitar a disseminação do trabalho escravo. A diretora da associação acrescenta que a maior responsabilidade é das corporações que criam demanda por commodities, como o sebo bovino. “A indústria dos biocombustíveis pode adotar as melhores práticas de todos os outros setores que já fizeram esse trabalho no passado, seja a indústria alimentícia, têxtil, automobilística, ou qualquer outra”, avaliou.
Segundo Mittal, empresas devem agir tanto no que está sob seu controle direto – como exigir transparência contratual de seus fornecedores e realizar avaliações independentes – quanto no apoio a ações coletivas e articulações setoriais que possam transformar as condições estruturais da cadeia produtiva. A diretora do Fair Labor ressalta que os governos também têm papel central. Ela observa que o Brasil, se quiser manter a exportação de biocombustíveis para mercados com legislação rigorosa como União Europeia, Canadá e Austrália, deve estabelecer políticas específicas para o setor.
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