QUANDO aceitaram o trabalho na colheita de café no Sítio Mata Verde, em Vila Pavão, no Noroeste do Espírito Santo, José Ademilson e Jurandir esperavam um emprego digno e pagamento justo. Logo na primeira semana de trabalho, em abril de 2023, eles afirmam que a promessa deu lugar ao medo. Diante de ameaças e condições degradantes, decidiram fugir da propriedade. “Eu estava correndo perigo”, diz José. “A qualquer hora poderia acontecer alguma coisa comigo”.
Na manhã seguinte à fuga da dupla, no dia 2 de maio, auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) chegaram à propriedade e identificaram dez trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. Assim como José Ademilson e Jurandir, outros 16 já haviam saído da fazenda por não suportarem as condições de trabalho impostas, segundo registrado no relatório de fiscalização, acessado pela Repórter Brasil.
Para o MTE, Venâncio Jacob, dono do Sítio Mata Verde, submeteu o grupo a condições degradantes de trabalho e moradia e restringiu sua locomoção em razão de dívidas ilegais impostas aos trabalhadores – dois dos quatro elementos que caracterizam o emprego de mão de obra análoga à escravidão, segundo a legislação brasileira.
Desde abril de 2024, Venâncio Jacob integra o Cadastro de Empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão, a chamada Lista Suja do Trabalho Escravo.
Produção entregue a gigante do setor
O Sítio Mata Verde produz o café do tipo conilon, variedade usada especialmente na produção de cafés solúveis. O Espírito Santo é o maior produtor de café conilon do país, responsável por 67% da produção nacional em 2024, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Cobab).
Segundo relato do próprio cafeicultor aos auditores fiscais, a produção do Sítio Mata Verde era entregue à Cooabriel (Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de São Gabriel), a maior cooperativa de café conilon do país. Por telefone, Venâncio Jacob também disse à Repórter Brasil e à organização suíça Public Eye, parceira nesta investigação, que sua propriedade detinha o selo de certificação do programa 4C, sigla para Código Comum para a Comunidade Cafeeira. A 4C é um dos principais programas de certificação do setor cafeeiro no mundo.
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A Cooabriel é fornecedora de café conilon para a multinacional suíça Nestlé, que compra o café certificado 4C da cooperativa por meio do seu programa “Cultivado com Respeito”. O café adquirido por meio desse programa é usado pela Nestlé nos produtos da marca Nescafé.
Procurada, a Cooabriel informou à Repórter Brasil que, após o flagrante, suspendeu Venâncio Jacob de realizar operações comerciais com a cooperativa e o excluiu do seu grupo de produtores com certificação 4C.
A 4C confirmou que o produtor foi formalmente retirado do programa após o caso e disse que “a certificação não implica o monitoramento em tempo real de todas as fazendas, nem pode garantir que todas as violações sejam detectadas imediatamente”. O programa de certificação também apontou que “embora o Sistema 4C reduza significativamente o risco, não pode eliminá-lo totalmente”.
A Nestlé declarou que atualmente compra café certificado 4C de 500 fazendas que entregam sua produção para a Cooabriel e que não adquire o grão do Sítio Mata Verde. A multinacional não comentou sobre fornecimentos anteriores. Leia na íntegra aqui o posicionamento completo das companhias.
À Repórter Brasil, Venâncio Jacob negou ter escravizado trabalhadores e disse desconfiar que os safristas foram até a sua propriedade com a intenção de simular uma situação de trabalho escravo para ter ganhos financeiros. “Tenho fortes indícios, mas não tenho provas, de que eles [trabalhadores] já vieram com a ideia de ganhar a indenização. Sei que estão fazendo isso com outros produtores. É um desrespeito com quem produz neste país”, afirmou. Sobre a acusação de ter ameaçado trabalhadores que queriam fugir da fazenda, Venâncio Jacob respondeu que “não procede, é mentira”.
Em junho de 2023, José Ademilson e Jurandir entraram com ações na Justiça do Trabalho contra Jacob, alegando danos morais e psicológicos ao terem sido submetidos a condições análogas à escravidão. As ações terminaram em acordos judiciais e indenizações de R$ 7 mil para cada um – inicialmente, o pedido era de R$ 66 mil por pessoa.
Dívidas e condições degradantes
Os trabalhadores contratados para a colheita de café no Sítio Mata Verde eram provenientes de municípios dos estados de Alagoas e Sergipe. No total, 28 pessoas começaram as atividades entre 24 e 29 de abril, segundo informações prestadas por Venâncio Jacob aos auditores fiscais e que constam no relatório de fiscalização, acessado pela reportagem.
Jurandir e José Ademilson foram entrevistados pela Repórter Brasil em Aracaju, capital do Sergipe, em fevereiro deste ano. José explicou que, poucos dias após chegarem no Sítio Mata Verde, registrou uma denúncia no Disque 100, serviço do governo federal que recebe denúncias de violações aos direitos humanos. Na véspera da operação de fiscalização do MTE, os dois já haviam deixado a fazenda, e não foram oficialmente resgatados.
Segundo relato dos auditores fiscais e dos trabalhadores ouvidos pela Repórter Brasil, o produtor Venâncio Jacob cobrava R$ 350 pelo transporte dos trabalhadores dos seus municípios de origem até o Sítio Mata Verde. Os safristas sofriam um desconto semanal de R$ 50 para pagar a dívida contraída com o empregador. Para não precisarem pagar pela passagem de volta, tinham a obrigação de permanecer na propriedade até o final da safra. “Você já chegava devendo, e não podia sair antes de pagar tudo”, afirma José.
Os trabalhadores afirmam que o custo de equipamentos de trabalho, como botas, luvas, peneiras e até garrafas térmicas, também foram descontados de seus salários – situação confirmada pelos auditores fiscais. Itens obrigatórios para o trabalho na colheita de café devem ser fornecidos gratuitamente pelo empregador, segundo a legislação brasileira.
Alojamentos sem portas, camas ou chuveiros
O relatório de fiscalização aponta que, no momento do flagrante, o grupo resgatado estava alojado em duas casas. Em um dos alojamentos, não havia portas, o que não garantia privacidade. Também não havia camas, obrigando os trabalhadores a dormirem em colchões no chão.
Nos dois banheiros usados pelos dez trabalhadores, não havia chuveiro ou pia, ressaltam os auditores fiscais. “Em ambos, havia canos por onde saía diretamente água fria para os empregados se banharem”, diz trecho do relatório de fiscalização. Sem mesas e cadeiras, o grupo comia no chão ou sentado em colchões, de acordo com o documento.
O relatório de fiscalização também indica a falta de água potável no local. A caixa d’água do alojamento fechava apenas parcialmente, “havendo acúmulo de lodo em seu interior e sendo acessível a roedores, pássaros e insetos”, segundo trecho do documento. “Todo mundo lá adoeceu, todo mundo”, conta Jurandir. “Começaram a pegar gripe, doença de pele, micose. Dor de barriga, sempre tinha dor de barriga”, complementa José.
Jurandir e José Ademilson também contam que a comida era descontada da remuneração e vendida a preços abusivos. “A alimentação era comprada pelo fazendeiro. Tudo o que ele comprava, ele botava na conta da gente, para a gente pagar”, aponta José. “Só que era ovo, salame e salsicha. Raramente vinha uma carne”. Uma mortadela pequena, segundo ele, custava até R$ 50; quatro frangos, R$ 300.
‘Até hoje fico traumatizado’
Segundo os relatos dos dois trabalhadores, o dono do Sítio Mata teria afirmado que já havia fornecido o básico para que pudessem viver e que, como ainda estavam endividados, só poderiam sair da fazenda com sua autorização. Caso tentassem fugir, o patrão, de acordo com os trabalhadores, ameaçou que os encontraria onde estivessem. Eles também relataram a presença de armas na propriedade, afirmando ter visto o gerente da fazenda portando uma pistola enquanto vigiava o trabalho.
Com ajuda de colegas e dinheiro emprestado de familiares, a dupla relata ter fugido da propriedade poucas horas antes da chegada da fiscalização. As marcas da experiência seguem presentes. “Até hoje eu me sinto traumatizado”, afirma Jurandir. “Só de falar em café eu fico traumatizado porque eu me lembro logo de tudo que eu passei lá”.
“O fazendeiro que faz o trabalho escravo deveria ser preso. Como é que ele faz pessoas de escravas e não vai preso? Aquele dinheiro que ele pagou de indenização não é nada. Em uma colheita ele tira dez, vinte, até mil vezes mais”, desabafa José.
À Repórter Brasil, Venâncio Jacob negou que qualquer dos seus funcionários andassem armados. Os depoimentos dados pelos trabalhadores resgatados no Sítio Mata e incluídos no relatório de fiscalização não mencionam a presença de pessoas armadas ou episódios de ameaça.
Trabalhadores se sentiram desassistidos
Segundo José, a operação que resgatou dez trabalhadores do Sítio Mata Verde foi realizada após a sua denúncia ao Disque 100. Ele e Jurandir já estavam fora da propriedade e não foram oficialmente resgatados.
O colhedor de café afirma que um integrante da força-tarefa que realizou a operação explicou que ele não poderia receber assistência porque não estava na fazenda no momento do flagrante, deixando de receber verbas e auxílios pagos às demais vítimas. “Mas eu estava lá! Eu que fiz a denúncia!”.
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