Longa herança:
Quilombolas se recusam a pagar
o foro a fazendeiros

21.12.2017
Texto: Solange Azevedo, de Serrano do Maranhão
Imagens:
Fernando Martinho

No Maranhão, quilombolas ainda são subjugados por fazendeiros que cobram uma taxa pelo uso da terra. Mas muitos estão quebrando esse ciclo

Capatazes chegam com chicotes em punho para cobrar o foro: uma espécie de imposto pago pelos quilombolas aos fazendeiros para poder viver nas terras e plantar. Sem muita conversa, recolhem a maior e melhor parte da produção da lavoura, fruto de meses de trabalho. Mandioca, milho, arroz, maxixe, abóbora. Quando julgam que a colheita não foi suficientemente farta, exigem dinheiro e confiscam tudo o que encontram. Carregam até pratos, panelas e cavalos. Botam fogo em casa de farinha para retaliar. Ameaçam de expulsão e morte quem se atreve a resistir. Deixam famílias inteiras para trás passando fome.

Embora pareçam saídos de um livro de história do século XIX, os relatos são de fatos recentes, e acontecem ainda hoje em quilombos do Maranhão – comunidades formadas pelos descendentes de quem viveu a escravidão naquela época. Em comunidades da Baixada Maranhense, é comum fazendeiros que se dizem donos das terras, muitas vezes sem ter nenhum documento de comprovação, obrigarem os moradores a repartir o que cultivam. É um sistema que se repete há décadas e, durante longo tempo, foi seguido sem questionamentos pelos quilombolas. Mas, à medida que eles foram tomando consciência de seus direitos, passaram a resistir e os conflitos se acirraram.

“Houve um fenômeno esquisito no estado, as fazendas eram vendidas com as pessoas dentro, como se fossem coisas”, pontua Sandra Araújo dos Santos, advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Os negros não entendiam dessas questões de documentação, então iam sendo submetidos ao que os novos donos queriam, como ao pagamento de taxas absurdas”. Para muitas famílias, como as 150 que vivem no território onde está localizado o Quilombo do Charco, em São Vicente Ferrer, abrir mão do que produzem pode significar não ter o que colocar na própria mesa.

Os quilombolas tiram
seu sustento da terra e
do rio. Eles se queixam
da falta de políticas
públicas que ajudem as
comunidades a
preservar o modo de
vida coletivo

A comunidade que rompeu com o foro

Foi essa a história do Quilombo Nazaré, em Serrano do Maranhão, onde os moradores conseguiram romper com o sistema do foro poucos anos atrás. “O que a gente não pode fazer é se entregar”, salienta a professora Joana Batista Santos, de 60 anos. Ana, como é conhecida, nasceu e foi criada em Soledade, comunidade a 9 quilômetros dali. Ela se mudou para Nazaré em 2000, para dar aula na única escola do povoado, e viu que a situação de exploração não era diferente de outros quilombos do estado. Mas, àquela altura, o marido dela, José Romão Reis Reges, hoje com 60 anos, já estava envolvido com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cururupu, de onde se tornou presidente. E o fim do foro era uma das bandeiras da entidade. “Para receber, o fazendeiro tinha que mostrar o recibo de propriedade da terra”, alega Reges.

A resistência à taxa imposta por fazendeiros aumentou quando os quilombolas começaram a despertar para os seus direitos. A presença de Clemir Batista e Inaldo Serejo, da CPT, a partir de 2005, foi essencial nesse processo tanto em Nazaré quanto em outras comunidades nas redondezas. Eles “plantaram uma sementinha”, reconhece Gil Quilombola, de 37 anos, o filho mais velho de dona Ana e seu Reges, uma das lideranças da região. “Detectaram que Serrano era uma área com muitos conflitos fundiários. Começaram a falar de quilombos, quilombolas, direitos e deveres. A gente se assanhou”, brinca Gil. Nesse momento, surgiu na Baixada o Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), que passou a fazer reivindicações e se estendeu por todo o estado. Seus integrantes já chegaram a acampar no Incra e a fazer greve de fome, em busca de visibilidade para sua luta e reconhecimento legal de seus territórios.

“Flaviano não aceitou que a exploração continuasse. Foi assassinado porque libertou a nossa comunidade da escravidão”, salienta Zilmar Mendes, da comunidade do Charco

Nazaré está encravado a mais de 100 quilômetros da capital, São Luís. Uma viagem de cerca de 6 horas que envolve travessia de balsa, percurso em estrada de asfalto e de areia fofa. É uma das onze comunidades quilombolas do território batizado de Mariano dos Campos, área cuja extensão equivale à metade do Plano Piloto de Brasília e é reivindicada pelos quilombolas em um processo que corre no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2011. A demanda por regularização fundiária é grande na região. Pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 94% da população de Serrano é quilombola. É a maior proporção do país.

Quando dona Ana
chegou a Nazaré, em
2000, havia 5 ou 6
famílias. Hoje são mais
de 30. A associação de
moradores presidida por
ela levou melhorias para
o quilombo

O empresário Wellington Dias, que já se candidatou a vereador e a prefeito pelo Partido Verde na cidade vizinha, Cururupu, é um dos que afirmam ter comprado propriedades lá. Disse à Repórter Brasil ter adquirido a primeira em 1982 do espólio do médico Cesário Coimbra. “É muito fácil não estudar, não trabalhar, não fazer nada e querer se apropriar de terras alheias”, critica. Contrariando a autoidentificação da comunidade, o reconhecimento da Fundação Cultural Palmares e do próprio Governo do Estado de que a área é quilombola, tanto que há políticas públicas específicas para as comunidades, Dias alega que Nazaré nunca foi um quilombo. “Isso é uma farsa”, reclama. A reação dele mostra a dificuldade da comunidade em fazer valer o artigo 68 da Constituição, que prevê a concessão definitiva de propriedade. Direito que está ameaçado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, ajuizada pelo DEM no Supremo Tribunal Federal.

A demora do governo federal na regularização definitiva das terras, a maioria já certificada como quilombola pela Fundação Cultural Palmares, mantém os ânimos exaltados. “Antes negro deitava no chão pra fazer ponte pra branco passar por cima. Hoje não deita mais porque negro já é sabido”, frisa José Mário Silva Pinto, de 54 anos. Ele conta que chegou a encontrar perto de sua casa um fojo, vala profunda coberta por folhas usada por capitães-do-mato como armadilha para capturar pessoas escravizadas que haviam fugido ou mantê-las presas. “No inverno ficava tudo cheio de água. Tem fojo onde jogavam os negros e eles não saíam mais porque tinha ponta de ferro”, lembra.

“Antes negro deitava no chão pra fazer ponte pra branco passar por cima. Hoje não deita mais porque negro já é sabido”, diz José Mário Silva Pinto, do Quilombo Nazaré

Pinto leva a vida como a maior parte dos habitantes de Nazaré, em casa de taipa, e tira seu sustento da terra e do rio. Seu orgulho de ser quilombola emergiu quando a CPT ajudou o povoado a exorcizar discursos como o de que as religiões de matriz africana são “coisas do demônio” e de que “negro não presta”. “Não desprezo a minha comunidade”, afirma ele. “Não tenho intenção de sair daqui”. No Quilombo, divindades católicas convivem com orixás, caboclos e encantados. Tambores de mina e crioula ecoam nos festejos do povoado. “O toque do tambor palpita no peito como se fosse o próprio coração, e os quilombolas vão se encorajando pela força de seus ancestrais e da espiritualidade”, diz Sandra, da CPT.

A primeira quilombola

Contam os mais antigos que o português Ramiro Pinto chegou à Baixada Maranhense na primeira metade do século XIX. Teria seguido a rota de pássaros e aberto uma estrada na mata imaginando que encontraria um rio e que poderia fixar residência nas redondezas. Nhô Ramiro, como era chamado, conseguiu o que buscava. Colonizou uma boa porção de terras por lá e manteve o costume da época: perpetuou seu sobrenome tanto nos herdeiros de sangue quanto nas pessoas que escravizou – um sinal de que seriam todos de sua propriedade.

Parte do que se sabe hoje sobre a história da região foi relatada por uma neta de Nhô Ramiro, Galberta, filha de um homem branco e de uma mulher negra escravizada. Ela teria vivido lúcida até os 115 anos. “Minha vó Galberta ainda era criança quando a princesa Isabel gritou a liberdade”, lembra Pedrolina Pinto Castelhano, de 62 anos, se referindo à Lei Áurea. “A família se espalhou quando acabou a escravidão. Muitos negros já tinham fugido das fazendas naquele tempo, mas ela ficou. Cresceu no Quilombo Nazaré”.

Embora mantenha um
modo de vida
tradicional, muita coisa
mudou no quilombo
Nazaré, comunidade
que conseguiu se livrar
do sistema do foro

Galberta costumava reunir os netos em bancos de madeira ou sentados no chão sobre folhas de piaçaba para contar o que sabia. Formava uma grande roda de crianças. Todas com pratinhos de comida redondos de barro produzidos por ela própria. Falava dos sacrifícios de viver numa sociedade opressora. Repetia que os senhores de escravos das fazendas de lá se saudavam todas as manhãs chacoalhando lenços brancos. “A mata não era alta como agora, era tudo limpinho”, recorda Pedrolina. “Os negros sofriam demais. Minha vó não fugiu porque era doente, nasceu corcunda. Fazia tudo que mandavam”.

Muita coisa mudou desde então, em especial quando os quilombolas foram descobrindo seus direitos. Entre a instalação de um poço artesiano e o rompimento com o sistema do foro, um local marcou o processo de transformação da comunidade: a escola, que se tornou o centro de resistência do Quilombo Nazaré. Saiba sobre esse processo no próximo capítulo.

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