Novas gerações:
Ameaça do trabalho infantil
e análogo ao escravo
21.12.2017
Texto: Solange Azevedo, de Serrano do Maranhão
Imagens: Fernando Martinho
Velhas ameaças rondam o quilombo, com crianças recrutadas para a mineração e adolescentes indo para as grandes cidades trabalhar como empregadas domésticas
A história se repete. “Não gosto nem de me lembrar. Eu não podia falar nada que me batiam. Fui muito maltratada”, conta Laudicélia Lisboa Rodrigues, de 32 anos. Ela saiu de casa aos 7 para morar com parentes e se tornou empregada doméstica de uma família em São Luís, capital maranhense, onde ficou até completar 16. “Lavava, limpava, passava pano, fazia comida e cuidava de duas crianças. Não ganhava nadinha, era trabalho escravo.” Além de se lamentar ao lembrar do passado, Laudicélia sofre ao observar o ciclo se repetir no presente. Seu filho do meio, de 12 anos, já está na lida. “Não foi por meu mandado. Eu sei que trabalho infantil é crime”, diz.
O menino foi recrutado em 2016 por mineradores de areia, uma das atividades que rouba a infância no Quilombo Nazaré, na zona rural do município de Serrano do Maranhão. Para muitos dos que vivem ali, a abolição em 1888 não significou o fim da exploração. O trabalho escravo contemporâneo e o trabalho infantil são ameaças cotidianas.
Franzino, o filho de Laudicélia relata que recebe 15 reais cada vez que ajuda a encher um caminhão. “Compro comida e levo pra casa: salsicha, ovo, farinha”, afirma. Ele garante que o patrão não se importa por ele não ter força suficiente para produzir tanto quanto os adultos. “Ele deixa colocar só um pouquinho de areia na pá”, acrescenta. O menino está no 7º ano do Centro de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Nazaré, mas costuma faltar ou chegar atrasado por causa do serviço. Diz que se entristece quando isso acontece porque sente que está “perdendo alguma coisa”. Se pudesse, “ficaria só na escola” – e não sob o sol num trabalho pesado até para os mais velhos.
“Ele deixa colocar só um pouquinho de areia na pá”, diz o menino de 12 anos sobre como o empregador adapta o trabalho pesado à força das crianças
“Eu gosto mesmo é de brincar, jogar bola, banhar no rio, andar de carro e moto, respeitar, comer e estudar”, enumera. É para o dono da Oliveira Construção, Raimundo Oliveira, de 50 anos, morador da cidade vizinha de Cururupu, que o garoto labuta. “Do jeito que tá o Brasil, pra gente fazer tudo legalizado é muito difícil”, reclama o comerciante. Ele reconhece que seus trabalhadores não têm carteira assinada, mas não admite que usa mão de obra infantil.
Quando a equipe da Repórter Brasil estava no quilombo, um areeiro conhecido como Magno partiu para cima de Fernando Martinho, autor das imagens que compõem esta cobertura. Ele não gostou de ter sido flagrado na ilegalidade, com o caminhão carregado. Mandou o motorista parar e foi tirar satisfação. Gil Quilombola, de 37 anos, articulador-geral do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), que estava sendo entrevistado naquele momento, interveio para defender Martinho.
Franzino, o filho de Laudicélia relata que recebe 15 reais cada vez que ajuda a encher um caminhão. “Compro comida e levo pra casa: salsicha, ovo, farinha”, afirma. Ele garante que o patrão não se importa por ele não ter força suficiente para produzir tanto quanto os adultos. “Ele deixa colocar só um pouquinho de areia na pá”, acrescenta. O menino está no 7º ano do Centro de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Nazaré, mas costuma faltar ou chegar atrasado por causa do serviço. Diz que se entristece quando isso acontece porque sente que está “perdendo alguma coisa”. Se pudesse, “ficaria só na escola” – e não sob o sol num trabalho pesado até para os mais velhos.
Invasão de búfalos
A mineração evidencia uma vulnerabilidade da comunidade: a falta de acesso à geração de renda. Enquanto lideranças locais alertam que a retirada de areia avança sobre a vegetação, abrindo buracos imensos no solo, há quilombolas que trabalham para os minerações porque não enxergam alternativas de renda. “Como a roça dá de ano em ano, a gente vai encher caminhão e se sente feliz porque recebe o dinheirinho na hora”, frisa Luiz Domingos Reis, de 36 anos. “Mas a extração é ilegal”, rebate Francisco de Assis, promotor de Justiça que atua no município. “Não importa se a pessoa é ou não a dona das terras. É preciso ter licença ambiental”.
“Não importa se a pessoa é ou não a dona das terras. É preciso ter licença ambiental”, diz Francisco de Assis, promotor de Justiça, sobre a extração de areia no Quilombo Nazaré
O empresário Wellington Dias representa, segundo os quilombolas, a principal ameaça. Além da devastação provocada pela retirada de areia, ele é um dos fazendeiros que criam búfalos na região. José Ribamar, de 50 anos, que trabalha para Dias, relata que só em Nazaré cuida de cerca de 50 búfalos. Fora as 100 cabeças de gado branco. O problema é que os búfalos vão pastar e passam boa parte do dia – e muitas vezes da noite – dentro do Rio das Almas, contaminando a água com fezes e urina. Quilombolas que vivem nas redondezas dependem justamente desse rio para pescar e beber água. “Os peixes ficam com um gosto ruim e com um tipo de germe”, relata a professora Rosemary Pinto, de 43 anos, do Quilombo Santa Rosa.
“Uma lei estadual proíbe a criação de búfalos soltos no campo natural. Eles têm que ficar presos em um cercado”, reforça o promotor Assis. A polêmica é antiga na região. Tanto que, em represália à destruição causada pelo manejo incorreto do animal, os quilombolas de comunidades da baixada ocidental maranhense já se juntaram duas vezes e mataram uma porção de búfalos. “A revolta foi grande. A nossa causa estava praticamente perdida. Mas teve uma audiência pública e a gente pescou um peixe no campo, cozinhou e levou para o juiz. Ele não teve coragem de comer”, lembra Rosemary. “Foi aí que a gente ganhou e retiraram os búfalos. Só que uns 4 ou 5 anos depois voltaram a colocar”.
Os búfalos costumam
ficar soltos e passar boa
parte do dia, e muitas
vezes da noite, dentro
do rio. As fezes e a urina
dos animais
contaminam a água e os
peixes
A batalha do Moquibom é pela titulação de uma área equivalente à metade do Plano Piloto de Brasília. O território, batizado de Mariano dos Campos, compreende 11 comunidades no município de Serrano. Lá, assim como em povoados de outras regiões do estado, os moradores não admitem cercas. Arames colocados em Nazaré a mando de Wellington Dias foram cortados na calada da noite. O mesmo aconteceu em Bacabal do Paraíso, também em Serrano, em cercas instaladas pelo ex-prefeito Leocádio Olímpio Rodrigues. “Ele disse que tinha comprado umas terras lá e que ia fazer um cercado dividindo a comunidade ao meio”, recorda Gil. “Cortar foi uma forma que encontraram de resistir e não aparecerem, por medo de represálias”.
A luta dos Reges pela identidade do povo está relacionada à defesa do território e pelo direito das pessoas continuarem vivendo ali sem ser exploradas. Uma aluna do Centro de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Nazaré, de 14 anos, contou à Repórter Brasil que foi mandada para São Luís quando tinha 12. “Não pagavam nada e eu não conseguia nem ligar pra minha mãe”, sublinha. Depois de passar mais de 6 meses limpando a residência e lavando as roupas à mão, a menina conseguiu voltar para casa. “Se me convidassem de novo eu não ia. É no quilombo que eu me sinto bem”, diz.
Líderes quilombolas
acusam areeiros de
escravizar as crianças
do quilombo. Meninos
faltam à escola para
trabalhar enchendo
caminhões de areia
“É preciso compreender que a cultura quilombola não é do acúmulo”, lembra o padre Clemir Batista, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “É outra lógica de viver e de pensar sobre a vida”. Mas o apelo externo é imenso. Enquanto a falta de uma escola de ensino médio acaba expulsando boa parte dos estudantes para fora do quilombo, para viver nas periferias das cidades vizinhas, os meninos que estão lá são expostos ao assédio de areeiros e as meninas a propostas “de uma vida melhor” se aceitarem trabalhar como domésticas. Mesmo os adultos, que têm dificuldades para tirar o sustento da lavoura, ficam vulneráveis. “Eles vão se fortalecendo juntos porque sabem que não têm outra coisa a fazer, a não ser lutar”, diz Sandra Araújo dos Santos, advogada da CPT. “É um processo de resistência e de libertação que ainda demanda muita luta”.