Álcool responsável

Recordista em trabalho escravo volta para a “lista suja”

Liminar que suspendia nome da Destilaria Gameleira da "lista suja" é derrubada no Tribunal Regional do Trabalho; propriedade é recordista em número de trabalhadores libertados de condições análogas à escravidão
Por Iberê Thenório
 09/10/2006

O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª região cassou a liminar que suspendia a Destilaria Gameleira, pertencente ao grupo EQM, da "lista suja" do trabalho escravo. A partir desta segunda-feira (9), a propriedade volta a figurar no cadastro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que traz pessoas e empresas flagradas ao explorar trabalhadores em condições análogas à de escravo.

Atualizada semestralmente, a lista conta atualmente com 178 nomes, incluindo os que foram retirados provisoriamente por decisão judicial. Segundo as regras do MTE, o nome do infrator é colocado na lista após o final do processo administrativo criado pelos autos da fiscalização. A exclusão, por sua vez, depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se durante esse período não houver reincidência do crime e forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado.

Com base nesta lista, órgãos públicos e privados vêm desenvolvendo ações que contribuem no combate ao trabalho escravo. Os relacionados estão impedidos de receber financiamento de agência públicas (como o Banco do Brasil, o Banco da Amazônia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e de algumas instituições privadas, têm seus títulos de propriedade de terra investigados (há irregularidades detectadas em pelos metade das fazendas) e perdem os clientes que são signatários do pacto da iniciativa privada contra a escravidão. Ao todo, mais de 90 empresas e associações estão se negando a comprar produtos com origem em fazendas da "lista suja".

Em acórdão publicado em 15 de setembro, o desembargador do TRT da 10a Região (que abrange o Distrito Federal e o Tocantins) José Ribamar Júnior, redator do processo que cassou a liminar, reafirma a legitimidade da lista. "O ato de inclusão do nome do empregador na lista em cogitação não encerra ato punitivo, tendo o cadastro natureza meramente informativa, não se evidenciando, pois, ilegalidade no ato praticado pela autoridade pública".

Localizada no município de Confresa (MT), no Nordeste do Mato Grosso, a Gameleira foi palco da maior libertação de escravos da história recente do país, quando, em junho de 2005, o grupo móvel do MTE flagrou 1003 pessoas em condições análogas à escravidão. A fazenda já havia sido flagrada outras três vezes por fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego. Em uma dessas ações, 318 pessoas foram libertadas. 

Em maio deste ano, a Gameleira passou por uma mudança, sendo incorporada à recém-criada Destilaria Araguaia. Para reverter a imagem negativa que se associou ao nome "Gameleira" depois dos escândalos, o empresário Eduardo de Queiroz Monteiro, dono do grupo EQM, comprou a parte da fazenda que pertencia a sua família, adquiriu mais terras, ampliou as instalações e trocou o nome da propriedade. Eduardo é irmão de Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Na época, o grupo EQM informou que na Araguaia tudo seria avançado, inclusive o tratamento dispensado aos funcionários. Instalações modernas não só para fabricar álcool, mas também para o conforto dos trabalhadores. Anunciou que cumpriria todos os aspectos da lei, como as regulamentações do trabalho rural da norma NR31. Prometeu que iria garantir para os 240 trabalhadores fixos e 750 temporários alojamentos decentes, alimentação balanceada servida em restaurantes móveis e, o mais importante, carteira assinada e todos os direitos trabalhistas.

Pressão econômica
Grandes distribuidoras de combustível cortaram contratos com a Gameleira, no ano passado, quando tomaram conhecimento que comercializavam com uma empresa que estava na "lista suja".

Após empresas como Ipiranga e Petrobrás assumirem esse comportamento, o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE) fez uma "consulta" com o objetivo de descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado. Segundo ele, essa ação foi realizada a pedido de deputados federais. Na época, a repercussão na imprensa e junto à sociedade civil do lobby do parlamentar agindo em prol da iniciativa privada foi bastante negativa.

A suspensão dos acordos comerciais entre a Gameleira e as distribuidoras também foi provocada pela divulgação de levantamento que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. A pesquisa, solicitada em 2004 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, inclui grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart, Votorantin, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

A pesquisa aponta que a Galemeira comercializava com a Ipiranga, Petrobrás, Shell, Texaco, Total e PDV, fornecendo combustível principalmente para as regiões Norte e Nordeste. Dessas, Ipiranga, Petrobrás, Shell e Texaco assinaram o pacto. No dia 11 de maio de 2005, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base utilizada pela pesquisa sobre a cadeia produtiva. Contudo, signatários mantiveram a interdição de compra, como a Ipiranga. Fontes dessa empresa revelaram que a decisão da companhia seguiu determinações do pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social.

Libertação recorde
Em junho de 2005, a operação do grupo móvel de fiscalização do MTE, que contou com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, libertou 1003 pessoas escravizadas da fazenda. A ação ocorreu após denúncias que envolviam violência física contra os peões.

"A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única água que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo", afirmou na época Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização.

De acordo com ele, todas as características confirmaram a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram leva
dos de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos "gatos" (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina). Ninguém recebia salário e era obrigado a comprar tudo da cantina da empresa, com preço acima do mercado. Os gastos eram anotados para serem descontados do pagamento final – sempre menor do que o combinado pelo "gato". Devido às péssimas condições de saneamento e higiene, não raro ficava-se doente. Contudo, até o soro recebido nas crises de diarréias era descontado dos peões.

Vale lembrar que a Gameleira encontra-se na "lista suja" por outra libertação. O processo administrativo originado pela megaoperação de 2005 ainda não terminou e pode fazer com que a Gameleira entre novamente na relação.

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