O fato de a Polícia Federal (PF) notificar estrangeiros escravizados a deixar o país em alguns casos é alvo de repúdio e críticas dos deputados federais que participaram da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), encerrada na última sexta-feira (15), sobre o trabalho escravo contemporâneo. Em dois episódios recentes, trabalhadores paraguaios libertados em regiões fronteiriças foram obrigados a deixar o Brasil, depois de intimados pela PF.
No começo de fevereiro, no Paraná, 13 vítimas tiveram de sair do território brasileiro após ameaça de deportação. No início de março, 34 imigrantes resgatados da escravidão em uma fazenda com plantio de mandioca no Mato Grosso do Sul foram forçados a voltar ao Paraguai depois de serem coagidos por agentes federais. Entre os trabalhadores, estavam sete adolescentes.
De acordo com a avaliação dos parlamentares que participaram da CPI ouvidos pela Repórter Brasil, em ambos os casos a PF agiu “na total ilegalidade”, de modo “incoerente”, “equivocado”, “inadequado”, e sob uma percepção de conjuntura “descontextualizada”. O deputado federal Cláudio Puty (PT-PA), responsável pela presidência da Comissão, sublinha que a conduta dos agentes policiais em regiões fronteiriças não está sendo coerente com os métodos da Polícia Federal em outras regiões brasileiras. “Não há um procedimento padrão da Polícia Federal. Isso nos impele a exigir um procedimento comum, no caso de trabalhadores imigrantes escravizados”, observa.
A normatização dos procedimentos é uma exigência até da bancada ruralista |
Em São Paulo, onde os parlamentares integrantes da CPI do Trabalho Escravo tiveram a chance de acompanhar uma fiscalização na qual oito trabalhadores vindos da Bolívia foram libertados de uma costuraria da marca Talita Kume, os policiais federais têm agido no sentido de anistiar e regularizar a situação dos estrangeiros no Brasil, em que pese outras dificuldades colocadas aos imigrantes.
“A normatização dos procedimentos [na abordagem ao trabalho escravo] é uma exigência até da bancada ruralista. Existe um consenso sobre essa questão”, completa. Para o deputado, é “equivocado” o modo como a PF vem tratando do tema, uma vez que a tarefa de regularizar a situação trabalhista de imigrantes cabe tanto ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) quanto ao Ministério Público do Trabalho (MPT).
“Na abordagem ao trabalho escravo os policiais imaginam que a questão é difusa. Por isso acham que devem punir tanto trabalhadores quanto empregadores, quando na verdade a única responsabilidade é a do empregador”, acrescenta o relator da CPI, Walter Feldman (PSDB-SP).
Trabalhadores escravizados não devem receber uma segunda punição |
Legislação
“É inadequada [a conduta de notificar estrangeiros escravizados a deixar o Brasil], tendo em vista que hoje há uma postura — ainda não transformada em lei, mas através de decisões infralegislativas — de que os trabalhadores escravizados não devem receber uma segunda punição”, considera o deputado federal de São Paulo, com base em acordos internacionais e instruções normativas ratificadas pelo governo brasileiro sobre a questão imigratória [saiba mais no box abaixo].
Não há, por outro lado, norma específica alguma dentro do sistema legislativo brasileiro que preveja o acolhimento a trabalhadores imigrantes submetidos à escravidão no país. Por esse motivo, Feldman avalia que o relatório formulado pela CPI, que contém recomendações ao governo brasileiro, possa servir para a elaboração de uma legislação específica sobre a questão migratória. Segundo ele, em breve a Câmara dos Deputados deve propor um projeto de lei para tratar do tema.
No entender do parlamentar tucano, as notificações e dificuldades criadas pela PF a imigrantes que almejam regularizar a situação no Brasil são decorrentes de uma mentalidade enraizada dentro da instituição, que privilegia muito mais questões de segurança nacional do que de acolhimento e respeito aos direitos humanos. “É uma cultura institucional ainda muito frequente no interior da Polícia Federal. Falta tanto uma formação explícita aos agentes federais — por isso precisamos de lei para tratar desse assunto — quanto uma mudança dessa cultura”, explica.
Esclarecimentos
Segundo Cláudio Puty (PT-PA), representantes da PF serão chamados à Câmara para prestar esclarecimentos sobre a conduta do órgão nesses casos. Tal iniciativa é defendidas também por Ivan Valente (Psol-SP), outro integrante da CPI do trabalho escravo. Para o parlamentar de São Paulo, a Polícia Federal opera “na total ilegalidade” quando coage os estrangeiros libertados da escravidão a deixar o Brasil. “Vamos levar essa denúncia à Câmara, como um desvio de conduta da corporação. Trata-se de trabalhadores. Pode acontecer de, nas áreas de fronteira, a PF ter uma atuação mais truculenta, mas, uma vez identificados que os estrangeiros são trabalhadores, eles devem ser tratados como tal”, diz Valente.
Isso é uma violação de direitos. Essas pessoas são vulneráveis |
“O procedimento correto é punir o criminoso e não a vítima do crime. Esse ato não está de acordo nem com as normas do Ministério da Justiça nem com a orientação atual da chefia da Polícia Federal. O procedimento é inadequado e está descontextualizado”, cobra o deputado Amaury Teixeira (PT-BA), também membro da CPI do Trabalho Escravo. “Esse tipo de mentalidade não pode prevalecer. Buscamos uma convivência solidária e pacífica com os países e as populações vizinhas”, declara à Repórter Brasil.
Agência de imigração
De acordo com entidades que acolhem imigrantes, não é raro, entretanto, que ações da PF tendam a criminalizar estrangeiros que vêm ao Brasil em busca de emprego. Em duas ocasiões — na visita da relatora da ONU sobre as formas contemporâneas de escravidão ao país e em reunião com representantes das três esferas de governo — o coordenador do Centro de Apoio ao Imigrante (Cami) em São Paulo, Roque Patussi, apontou para a necessidade de uma agência específica para tratar da migração ao Brasil e que possa também oferecer abrigo aos trabalhadores estrangeiros.
O procedimento correto é punir o criminoso e não a vítima do crime |
O deputado Walter Feldman concorda com a proposta. “Com a abertura das fronteiras com o Mercosul e a ratificação de tratados internacionais, a ideia de uma agência para tratar dessa questão vem muito a calhar”, diz. No seu entendimento, a imigração sempre foi uma “questão fundamental de desenvolvimento”. “E não seríamos o que somos hoje se não fosse a imigração. Isso sempre foi muito importante para o Brasil”, completa.
“Alterar a mentalidade da instituição” seria uma das tarefas que a agência específica sobre imigração poderia executar em conjunto com a Polícia Federal, de acordo com Amaury Teixeira. “Poderíamos pensar em outro órgão. Mas nas regiões de fronteira não vamos resolver o problema sem o policiamento que coíba os tráficos de armas e drogas”, lembra.
Para Cláudio Puty, independentemente da criação da uma nova agência, uma medida mais imediata seria uma maior integração da PF com outras entidades. “Por exemplo, se poderia formar escritórios dentro dos consulados de países nos quais são aliciados imigrantes ao trabalho escravo”, defende.
Brasil ratificou alguns acordos sobre imigração Entre alguns dos acordos internacionais que tratam da questão imigratória, o Brasil é signatário do Protocolo de Palermo. Promulgado em 2004 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o acordo prevê medidas de enfrentamento dos Estados Partes ao tráfico de pessoas — que compreende o aliciamento de pessoas “para fins de exploração”, tais como “a exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”. Cabe ainda aos países que assinaram a convenção garantir “assistência” e “proteção” às vítimas, deixando livre a escolha de permanecerem no território a que foram levadas ou retornarem ao local de origem. Outro mecanismo institucional que aborda o tema do trânsito de estrangeiros é a instrução normativa nº 93 do Conselho Nacional de Imigração. A norma orienta a concessão de visto de permanência no Brasil a estrangeiros que estejam em situação de vulnerabilidade ou sejam vítimas do tráfico de pessoas. Além disso, o Estado brasileiro é aderente, desde dezembro de 2009, do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL. O tratado permite o livre trânsito entre cidadãos dos países-membros do Mercado Comum do Sul (Mercosul) — a saber: Argentina, Brasil, Bolívia (em processo de adesão), Paraguai (suspenso do bloco desde que o ex-presidente Fernando Lugo foi deposto), Uruguai e Venezuela. Dos participantes do Mercosul, no entanto, o Brasil é o único membro que ainda não é signatário da Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU) — e cuja assinatura a relatora para as formas contemporâneas de escravidão recomendou ao governo brasileiro, em passagem pelo país em novembro de 2012. |