Indústria têxtil

Tragédia em Bangladesh simboliza despotismo do lucro

Estima-se que haja mais de cinco mil empresas oficiais de confecção no país, que ganham mercado principalmente por conta dos baixos custos de mão de obra
Por Maurício Hashizume
 10/05/2013

Motivos de sobra fazem do desmoronamento do Rana Plaza, edifício de oito andares que abrigava um complexo de fábricas têxteis em Bangladesh, uma das maiores tragédias industriais da história e um dos mais dramáticos e simbólicos atentados recentes contra o direito de trabalhadoras e trabalhadores. Passadas mais de duas semanas desde que a construção erguida nos arredores de Daca (Savar) ruiu, em 24 de abril, a aterradora marca de mil vítimas fatais confirmadas (muitas delas ainda não identificadas) já foi ultrapassada, conforme informações oficiais. Feriram-se mais de 2,5 mil pessoas, e há ainda quem estava trabalhando no local, em sua grande maioria mulheres, mas permanece “desaparecida“ – o que pode resultar na ampliação da soma de vidas subitamente interrompidas.

Multidão protesta contra desastre que matou mais de mil pessoas em Bangladesh (Foto: Taslima Akhter)
Multidão protesta contra desastre que matou mais de mil pessoas em Bangladesh (Foto: Taslima Akhter)

Desta vez, por mais que se queira desviar o olhar para a miríade de falhas e negligências cometidas pelas partes envolvidas, o horror está profundamente associado à busca incessante e desenfreada por lucro, motor central do sistema capitalista. É ampla a cadeia alimentada por vantagens político-econômicas: das poderosas grifes internacionais do mundo da moda – que vêm sendo cobradas publicamente por serem as grandes beneficiárias do esquema em curso – aos “empreendedores” e políticos de Bangladesh, das auditorias contratadas e dos sistemas intersetoriais de monitoramento de cadeias produtivas aos consumidores finais.

Cálculos feitos pelo Sindicato Global IndustriALL revelam que um incremento de apenas US$ 0,02 (dois centavos de dólar) por cada camiseta produzida em Bangladesh poderia dobrar o salário de quem a costura. Atualmente, o salário mínimo nas confecções é de 3 mil taka (US$ 38); os representantes de trabalhadoras e trabalhadores pedem aumento imediato para 5 mil taka (US$ 63) e um compromisso de aumentos anuais gradativos até 2015. De acordo com eles, a adoção de um adicional de US$ 0,10 (dez centavos de dólar) para cada peça produzida poderia transformar os padrões de segurança de toda indústria de vestuário do país.

Protestos
Desde o dia do “massacre”, o pátio de uma escola local se converteu em depósito de corpos retirados dos escombros, muitos irreconhecíveis. Enquanto examinam e aguardam por notícias, parentes das vítimas cobrem os rostos tentando minimizar o terrível odor exalado pela decomposição. Folhas de papel com fotos e dados sobre quem sumiu são exibidas. As ruas da capital e do entorno têm sido tomadas por seguidos protestos, que coincidem com uma onda de tensão popular turbinada por conflitos de ordem político-religiosa (lideradas pelo grupo Hefazat-e-Islam) que se espalham pelo país. Essas manifestações populares, que envolvem demandas de grupos islâmicos, já resultaram em pelo menos mais três dezenas de mortos. Abundam denúncias contra intervenções repressivas e autoritárias da parte do governo, acusado de perseguir oposicionistas e desafetos, incluindo lideranças sindicais.

Em atos públicos e por meio de greves, multidões exigem indenizações e reparações, cobram a punição dos responsáveis e sublinham a urgência do pagamento de salários mais justos (que o salário mínimo praticado, o qual mereceu censura e classificação de “trabalho escravo” por parte do papa Francisco, novo expoente maior da Igreja Católica) e da melhoria de condições de trabalho. O setor, que movimenta US$ 20 bilhões por ano, mantém cerca de 3,2 milhões de pessoas empregadas e responde por cerca de 80% das exportações do país. Atualmente, só a China exporta mais têxteis que Bangladesh.

“Vilão número um”

<leftmargin=”10″> À frente do parque industrial a ponto de lhe cravar o sobrenome, Mohammed Sohel Rana foi tachado instantaneamente como “vilão número um” do desabamento. Segundo relatos, ele teria negligenciado os iminentes riscos e, juntamente com os donos das confecções, contribuído para pressionar trabalhadoras e trabalhadores a continuarem suas tarefas mesmo diante do aparecimento de rachaduras na edificação no dia anterior ao desastre. Capturado já na fronteira com a Índia, foi exibido como troféu pelas autoridades. Ao lado do pai (Abdul), dos donos das fábricas (incluindo o espanhol David Mayor, diretor-geral da Phantom-Tac) e de engenheiros municipais, deve responder pelo desastre em inquérito criminal.

Manchou-se ainda a imagem do partido governista Liga Awami, que tinha em Mohammed Rana um de seus filiados e militantes. Relações estreitas com o poder teriam facilitado não apenas a expulsão de moradores do entorno da área em que veio a se construir o Rana Plaza, mas também a obtenção de autorizações para construir e até ampliar o prédio. Moradores testemunham que o terreno onde se ergueu o complexo era um brejo; fontes locais chegam a associar Mohammed a atividades ilegais como o tráfico de drogas.

Para exportação
Outros focos dos manifestantes foram a Associação de Fabricantes e Exportadores de Roupa de Bangladesh (BGMEA) e a Associação de Fabricantes e Exportadores de Malhas de Bangladesh (BKMEA), entidades patronais que congregam a elite local da produção das chamadas “roupas prontas para usar” (ready-made garments, em inglês, ou apenas RMG).

Estima-se que haja mais de cinco mil empresas oficiais de confecção no país, que ganham mercado principalmente por conta dos baixos custos de mão de obra. A média de salário paga ao contingente de mais de quatro milhões de pessoas que trabalham no setor (80% mulheres, 10 horas por dia e seis dias por semana) é metade do que se pratica na China. A vizinha Índia tem um custo laboral três vezes maior e ainda paga tributo para exportar à União Europeia (destino de 60% das peças de Bangladesh).

Apenas cinco meses antes, um incêndio nas instalações da fábrica Tazreen, no mesmo distrito, ceifou a vida de 112 que produziam peças para  Walmart, Disney e Sears

Apenas cinco meses antes da hecatombe em Savar, um incêndio nas instalações da fábrica Tazreen, no mesmo distrito, ceifou a vida de 112 operárias e operários (que produziam peças para a rede varejista Walmart, Disney e Sears). Outro alastramento de fogo em janeiro deste ano implicou na morte de sete que trabalhavam na Smart Export, que produzia para a espanhola Inditex (dona da Zara) e para a alemã KIK. Em dezembro de 2010, 29 faleceram em outro incêndio na fábrica da That’s It Sportswear; no local, foram encontrados vestígios de uma marca da norte-americana GAP. Em fevereiro do mesmo ano, 21 faleceram em outro incêndio na Garib & Garib, fábrica que abastecia a sueca H&M.

Desde 2005, quando 64 não sobreviveram ao desmoronamento do prédio da Spectrum-Sweater, igualmente em Savar e também envolvendo produção para a Inditex, articulações internacionais da sociedade civil têm intensificado esforços com vistas à melhoria das condições do setor têxtil em Bangladesh. Relatório do Fórum Internacional de Direitos Trabalhistas (ILRF) reúne uma série de “calamidades” ocorridas no setor. Ironicamente, uma das mais recentes vítimas foi um ex-dirigente da BGMEA, que não conseguiu escapar com vida de um novo incêndio que determinou o falecimento de oito pessoas, ocorrido na última quarta-feira (8).

Responsabilidade
As trágicas consequências do esfacelamento do Rana Plaza deflagraram instantaneamente, portanto, a busca de responsabilidades para além das fronteiras asiáticas. A Campanha Roupas Limpas (Clean Clothes Campaign) se apressou em classificar o colapso do Rana Plaza como “evitável” e condenou marcas e grifes de moda que compram do país por “falharem mais uma vez na prevenção dessa maciça perda de vidas”. Corporações têxteis que comercializam produtos feitos em Bangladesh devem, segundo a campanha, “assumir uma posição de liderança, garantir que passos emergenciais sejam dados e pagar, sem demora, compensações [estimadas preliminarmente em pelo menos US$ 30 milhões] para as vítimas e suas famílias”.

Com sede na Holanda, a Campanha entrou em contato com marcas e grifes internacionais cujos nomes aparecem ligados a pelo menos uma das cinco fábricas (Phantom Tac, Phantom Apparels, Ether Tex, New Wave Style e New Wave Bottoms) que funcionavam no Rana Plaza. Alguns grupos confirmaram ter feito encomendas recentes ou em curso quando da queda do prédio e sinalizaram com possíveis reparações: Bonmarché (Reino Unido), El Corte Inglés (Espanha), Primark (Reino Unido/Irlanda), Joe Fresh – linha de roupas da Loblaw’s, maior rede de supermercados do Canadá –, Matalan (Reino Unido), Premier Clothing (Reino Unido) e Mango (Espanha), que admitiu somente ter ordenado a produção de amostras. Contrariando indícios, Benetton (Itália), Cato Fashions (EUA), Children’s Place (EUA), C&A (Holanda), Walmart (EUA) e Carrefour (França) refutaram ligações com as respectivas confecções ou se recusaram a se pronunciar.

Redes e organizações que atuam pela defesa dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores clamam para que corporações do setor assinem e adotem urgentemente o Acordo contra Incêndios e pela Segurança nas Construções em Bangladesh. Desenvolvido com a participação de entidades sindicais de dentro e fora do país, o acordo prevê inspeções independentes de unidades de produção acompanhadas por representantes dos trabalhadores, relatórios públicos e treinamentos, além de manutenções e reformas obrigatórias. Estabelece até normas relacionadas ao pagamento de preços adequados.

Mobilização
Circula pela internet um conjunto de petições que buscam aumentar a pressão sobre as grandes marcas e grifes que produzem em Bangladesh. Praticamente todas exigem que as grandes corporações do setor têxtil de países ricos assumam o compromisso defendido não só pela Campanha Roupas Limpas, mas também por outras iniciativas como o ILRF, Trabalho por Trás da Etiqueta (Labour Behind the Label) e Guerra contra a Carência (War on Want).

Nesta sexta-feira (10), a Campanha Roupas Limpas divulgou um informe anunciando a superação da meta de 1 milhão de assinaturas que convocam as grandes marcas da indústria da moda a aderir ao Acordo contra Incêndios e pela Segurança nas Construções. Somente no site Avaaz, que faz parte do esforço conjunto, mais de 860 mil já firmaram e confirmaram o apoio à causa. Mais de 81 mil também o fizeram no espaço disponibilizado pela rede Change. Em encontro ocorrido na Alemanha, representantes sindicais e patronais acordaram em estabelecer o dia 15 de maio como prazo final para que as corporações assumam publicamente a iniciativa.

A implementação do referido acordo também fez parte das conclusões apresentadas pela missão de alto nível da Organização Internacional do Trabalho (OIT) enviada ao país após a tragédia do desabamento do Rana Plaza. Após visita realizada no início de maio, a missão da OIT e os parceiros tripartites (governo, empregadores e empregados) anunciaram um pacote com reformas laborais (para assegurar a associação sindical e a negociação colectiva) a ser enviado ao Parlamento do país dentro dos próximos meses, uma força-tarefa de avaliação das condições das fábricas de vestuário em funcionamento até o final deste ano, um programa de treinamento para reintegrar feridos em recentes desastres, e a contratação de 200 auditores fiscais do trabalho (com fortalecimento institucional e financeiro do órgão responsável) nos próximos seis meses.

Apenas 18 inspetores e assistentes têm a incumbência de monitorar cerca de 100 mil unidades de produção  

Como denuncia o historiador e jornalista indiano Vijay Prashad, apenas 18 inspetores e assistentes têm a incumbência de monitorar cerca de 100 mil unidades de produção – grande parte delas bem menores e ainda menos formais do que o Rana Plaza. “Quando uma infração é detectada, as multas são tão baixas que não estimulam reformas”, comenta. E as promessas governamentais apresentadas na companhia da OIT contrastam com os papéis cumpridos até o momento pela Célula de Gestão de Crise e pela Polícia Industrial. Ambas as instâncias governamentais, conforme o analista, têm se dedicado mais à espionagem das lideranças das fábricas do que a verificar violações da legislação trabalhista. Um dos organizadores do Centro de Solidariedade dos Trabalhadores de Bangladesh (Center for Worker Solidarity) foi capturado por capangas e encontrado morto, em abril do ano passado, com marcas de tortura.

O colapso do Rana Plaza – que desabou logo no início do dia, depois que os corpulentos geradores de energia situados nos andares superiores do prédio começaram a chacoalhar – também colocou em xeque, uma vez mais, os sistemas corporativos de auditoria social. Duas das cinco fábricas tinham sido auditadas pela Iniciativa de Conformidade Social Empresarial – Business Social Compliance Initiative (BSCI), que aglutina diversas corporações transnacionais, e muitas outras marcas e grifes mantinham esquemas de auditoria em curso – amparados pelos onipresentes Códigos de Conduta – envolvendo as fornecedoras.

Responsabilidade social
No primeiro comunicado divulgado na sequência do ocorrido, a BSCI confirmou que a New Waves Style e a Phantom Apparels tinham sido auditadas de acordo com o Código de Conduta e que havia iniciado uma investigação para saber se companhias que fazem parte da iniciativa mantinham relações comerciais com as duas confecções. Mesmo assim, já se adiantou: “as razões para o colapso das fábricas parecem estar relacionadas com a pobre infraestrutura do edifício Rana Plaza”, sem deixar de se solidarizar com as vítimas e seus familiares e de sublinhar o apoio aos governantes e parceiros no sentido da aplicação da Política Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional, concluída no final de março de 2013. No segundo comunicado, uma semana depois do ocorrido, a BSCI confirmou que uma empresa participante da iniciativa vinha mantendo relações comerciais com uma das duas fábricas auditadas. “No entanto, as auditorias não incluem a construção do prédio ou a sua integridade”, emenda a entidade.

Segundo fonte experimentada consultada pela Repórter Brasil – que acompanha de perto as movimentações na área da responsabilidade social empresarial global há anos –, os sistemas de auditoria social têm despertado crescentes desconfianças. “A auditoria social não é uma profissão. Qualquer um pode querer fazê-lo. A metodologia se resume a uma análise de ausências e carências de itens que são checados, sem levar em conta causas mais profundas”, diz. “Quem paga pelas auditorias? Será que a equipe de auditoria considera os curtos prazos impostos pelos compradores e as frequentes mudanças nos pedidos como possíveis causas mais profundas permanentes? Será que a equipe de auditoria avalia se o preço pago pelas marcas e grifes são suficientes para cobrir todos os custos do trabalho (salários, hora-extra, seguro social etc.)?”, indaga a informada fonte. Auditorias sem aviso prévio não são suficientes, complementa, enquanto a metodologia se limitar ao preenchimento de checklists (sem análises de fundo) e as empresas compradoras não alinharem, de fato, os critérios comerciais com os princípios éticos.

Segundo a mesma fonte, a impressão que se tem é que as auditorias “apenas agradam o cliente [companhia contratante]”, mas também que o público (governos, instituições multilaterais e outros segmentos da sociedade civil), em geral, são “muito facilmente impressionáveis”. Ou seja, no entendimento da fonte consultada, a atenção dada ao tema do largo uso das auditorias sociais tem sido bastante limitada – apesar de relatórios incisivos como o lançado pela Federação Americana do Trabalho-Congresso das Organizações Industriais (AFL-CIO, sigla em inglês) justamente um dia antes do desastre do Rana Plaza. “A meu ver, estamos diante de uma silenciosa privatização da inspeção do trabalho.”

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