Violência no campo

Acusados por Chacina de Unaí vão a júri popular

Julgamento do caso do assassinato de quatro servidores do Ministério do Trabalho começou nesta terça, quase dez anos depois do crime, ocorrido em janeiro de 2004
Por Stefano Wrobleski
 26/08/2013

O primeiro julgamento da Chacina de Unaí teve início nesta terça-feira (27) em Belo Horizonte (MG), quase dez anos depois do crime. Rogério Alan Rocha Rios, William Gomes de Miranda e Erinaldo de Vasconcelos Silva são os julgados nessa primeira etapa, acusados de terem sido os pistoleiros que executaram quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no município de Unaí, no noroeste de Minas Gerais, em janeiro de 2004. Eles respondem por homicídio qualificado, crime com pena de 12 a 30 anos de prisão por vítima. Além de homicídio, Erinaldo também responde por receptação, delito pelo qual pode ficar entre um e quatro anos na prisão e pagar multa. A ação é movida pelo Ministério Público Federal (MPF). As vítimas foram os auditores Nelson José da Silva, João Batista Lages e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira.

Placa que indica a entrada da Fazenda Bocaina, do fazendeiro Norberto Mânica,  onde ocorreu a Chacina de Unaí (Foto: José Cruz/ABr)
Placa que indica a entrada da Fazenda Bocaina, do fazendeiro Norberto Mânica, onde ocorreu a Chacina de Unaí (Foto: José Cruz/ABr)

Além dos três jagunços, outras seis pessoas são acusadas de envolvimento na chacina. O inquérito policial aponta como mandantes dos assassinatos os irmãos Norberto e Antério Mânica, fazendeiros produtores de feijão na região. Os empresários Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro teriam intermediado a relação dos Mânica com Francisco Élder Pinheiro, que as investigações concluíram ter sido o contratante dos executores. Já Humberto Ribeiro dos Santos foi incluído nas investigações porque teria ocultado provas ao remover uma folha do registro de hóspedes do hotel onde os pistoleiros ficaram, na qual Rogério havia colocado seu nome verdadeiro.

Uma série de recursos, principalmente com relação a discussões de competência e pedidos de habeas corpus, atrasaram o início do julgamento dos nove acusados. Em 2010, a lentidão levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a acrescentar o caso a uma lista com inicialmente cem processos de grande repercussão nacional que deveriam ser acompanhados pelo órgão com o objetivo de agilizar o andamento.

Uma das quatro cruzes fincadas ao lado de uma estrada de terra na Fazenda Bocaína, onde a chacina ocorreu, em memória aos funcionários do MTE (Foto: José Cruz/ABr)
Uma das quatro cruzes fincadas em 2008 próximo ao local do crime em memória pelos cinco anos de assassinato dos funcionários do MTE (Foto: José Cruz/ABr)

O processo referente à Chacina de Unaí teve início em 2004, quando os casos ocorridos no município eram tratados em Belo Horizonte. Ainda que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já tivesse decidido que a criação de novas Varas de Justiça com jurisdição sobre o mesmo local não poderia justificar a mudança de local de um processo, os réus pediram diversas vezes que o julgamento ocorresse em Patos de Minas – onde uma subseção judiciária respondeu pelos processos de Unaí iniciados entre 2005 e 2010 –, mas nunca tiveram seus recursos aceitos. No início deste ano, depois de ficar com o processo em mãos por um ano e oito meses, a juíza Raquel Vasconcelos Alves de Lima, da 9ª Vara Federal de Belo Horizonte, chegou a aceitar um pedido dos réus para que o julgamento acontecesse na Subseção Judiciária da Justiça Federal de Unaí, que foi criada em 2010 e passou a responder pelas ações iniciadas no município desde então. A decisão foi cassada quase três meses depois pelo STJ. Na época, Antério Mânica chegou a dizer ao jornal O Globo que preferia ser julgado em Unaí porque lá as pessoas o conheceriam “de verdade”. Apesar das acusações de ter sido mandante do crime e mesmo preso, ele foi eleito prefeito do município em 2004, com 72% dos votos. Na eleição seguinte, em 2008, foi reeleito com 59%.

A demora no julgamento levou Norberto e Antério Mânica a ter alguns de seus supostos crimes prescritos. Eles respondiam pela acusação de “frustrar, mediante violência, direito assegurado pela legislação trabalhista”. A prescrição também livrou Norberto do crime de “opor-se à execução de ato legal mediante violência ou ameaça a funcionário”, já que sua fazenda, onde os funcionários do MTE foram assassinados, era alvo de fiscalização dos auditores. Outro réu que teve crime prescrito foi Humberto, que não poderá mais ser julgado por favorecimento pessoal. Ele e os apontados de terem sido os pistoleiros da ação – Erinaldo, Rogério e William – são acusados de formação de quadrilha. Erinaldo responde ainda por receptação, por supostamente ter se beneficiado de objeto fruto de roubo de uma das vítimas. Com exceção de Humberto, todos os réus respondem por homicídio triplamente qualificado.

Só os três acusados pela Polícia Federal de terem sido os pistoleiros da chacina, que começaram a ser julgados nesta terça-feira, continuam presos até hoje. Francisco teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e morreu na prisão aos 77 anos sem ter sido julgado. Norberto, Hugo, José e Humberto irão a júri popular em 17 de setembro. Ainda não há data definida para o julgamento do ex-prefeito de Unaí Antério Mânica.

A Chacina de Unaí de acordo com as investigações
Um dos fiscais assassinados em 28 de janeiro de 2004, Nelson José da Silva já era bastante conhecido em Unaí. Seu trabalho incomodava os fazendeiros da região e ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em multas resultantes de diversas fiscalizações nas terras da família Mânica, conhecida como “reis do feijão” e dona da Fazenda Bocaína, onde a Chacina de Unaí ocorreu. Um ano antes do crime, Nelson relatara ao MTE ter sofrido ameaça de Norberto Mânica: durante uma operação, Norberto teria insinuado interesse em matar o auditor, para que cessassem as fiscalizações. Devido às ameaças, o então delegado do trabalho de Minas Gerais, Carlos Calazans, ofereceu a transferência de Nelson para outro município. Ele recusou: “Se você me tirar daqui, vão dizer que você me tirou por pressão [dos fazendeiros]”.

Infográfico com as relações entre os acusados da Chacina de Unaí (Por Stefano Wrobleski)Dos quatro funcionários do MTE assassinados, Nelson era o único que morava em Unaí. Os outros dois fiscais, João Batista Lages e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira haviam saído de Belo Horizonte para acompanhá-lo em uma ação de fiscalização. No dia 28 de janeiro de 2004, eles partiram às sete horas da manhã do hotel em que estavam, em Unaí, em direção à Fazenda Bocaína. Uma denúncia apontava que os empregados da fazenda dos Mânica não tinham registro em carteira e recebiam salários inferiores ao mínimo. De acordo com a denúncia, os patrões também não estariam cumprindo leis de segurança e higiene e estariam submetendo seus funcionários a alimentação precária.

Assim que a equipe saiu do hotel, José ligou para Erinaldo, informando-o. Logo depois, outra ligação: o primeiro alertaria ao segundo de que os funcionários do MTE estavam próximos de Erinaldo e Rogério. William seguiria as vítimas depois, em outro carro. Ele, contudo, não chegou a tempo por conta de um pneu furado.

Erinaldo e Rogério fariam, então, o caminho das vítimas, que se perderam, dando a chance de os jagunços as encontrarem em um local à frente delas, já numa estrada de terra que dá acesso à Fazenda Bocaína. Ainda sem mostrar armas, os pistoleiros pediam informações a Ailton, que parara o carro. Em seguida, anunciaram um assalto, recolheram celulares e o relógio do fiscal Eratóstenes e atiraram nos quatro. Mas, como admite Rogério em depoimento, aquilo não era um assalto: “Era só pra acalmar, né?”.

Com duas balas alojadas na cabeça, Ailton ainda conseguiu fugir e dirigir por sete quilômetros com as outras três vítimas, já desacordadas, no carro. Ele foi socorrido e levado ao hospital, onde chegou a contar o que lhe acontecera antes de morrer, horas depois. Enquanto isso, Erinaldo ligava para informar José que o serviço estava feito.

Antes de o crime acontecer, os executores entraram em contato com Francisco, que os havia contratado, para informar que Nelson estava acompanhado de mais três pessoas. Sua morte já havia sido “orçada” em R$ 25 mil e o contato com Francisco resultaria na autorização do assassinato dos quatro funcionários do MTE, mediante aumento no valor oferecido. O dinheiro viria do “patrão” de Francisco, Hugo, que era amigo de Norberto e devia a ele R$ 180 mil. Depois do crime, Francisco chamaria Erinaldo para que ele distribuísse o dinheiro aos demais. O próprio Francisco ficou com R$ 16 mil, enquanto Erinaldo recebeu R$ 17 mil, Rogério, R$ 9 mil, e William, R$ 5 mil. Outros R$ 3 mil foram para Humberto, que ficara responsável por arrancar a folha de registro do hotel em que os pistoleiros ficaram, na qual Rogério havia escrito o seu nome verdadeiro.

Já Antério Mânica foi considerado mandante porque fez ligações à Subdelegacia Regional do Trabalho em Paracatu (a cem quilômetros de Unaí) e à Polícia Civil indagando sobre a chacina logo em seguida ao crime. Além disso, em depoimento, William fez referência a um homem que ocupava um carro com as mesmas características do veículo da mulher de Antério.

Confira na linha do tempo abaixo todos os desdobramentos do caso

Unaí se destaca por produção de feijão e elevada incidência de câncer

Com uma população de 80 mil habitantes, Unaí é o maior produtor de feijão do país, de acordo com levantamento feito em 2007 pelo IBGE. O município também se destaca pela produção de milho e sorgo, alcançando, respectivamente, a 19ª e a 12ª maior produção do país. Um quinto dos 8,4 mil quilômetros quadrados do município estão destinados ao plantio desses e de outros cereais, leguminosas e oleaginosas. Além disso, Unaí também alcançou a sexta maior produção de leite do país em 2011, de acordo com outro estudo do IBGE.

Os números contrastam com outro dado, levantado por um relatório de 2011 da Subcomissão Especial Sobre Uso de Agrotóxicos e Suas Consequências à Saúde, que foi criada pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. De acordo com o texto, Unaí tem cerca de 1.260 casos de câncer por ano para cada 100 mil habitantes, quando a média mundial não ultrapassa os 400. Os dados servem como exemplo para a conclusão de que existe um aumento “da incidência de uma série de doenças crônicas nas regiões de intensa produção agrícola”, decorrentes do uso elevado de agrotóxicos no campo.

Em 2012, o frei Gilvander Moreira, da Comissão Pastoral da Terra, chegou a ser ameaçado de prisão depois de divulgar vídeo no YouTube com depoimento da diretora de uma escola que, em mais de uma ocasião, teve de jogar fora o feijão comprado de Unaí pelo excesso de agrotóxicos presente no alimento, o que levou as cozinheiras a se sentirem mal com o cheiro. O vídeo citava nominalmente a empresa produtora, que pede indenização por danos morais. Com o barulho em torno do caso, o depoimento ganhou visibilidade e foi repostado por outros usuários no site.

(Matéria atualizada em 27 de agosto às 18 horas)

Leia também
2004: Artigo – Polícia destrincha o crime dos fiscais de Unaí, mas ainda falta o mandante
2007: “Quero ser julgado logo”, sustenta Antério Mânica
2007: Auditores cobram justiça pela morte dos colegas em Unaí
2008: Justiça nega recursos de réus da “Chacina de Unaí”
2010: Acusados da Chacina de Unaí ainda não foram julgados
2013: STJ determina que julgamento da Chacina de Unaí seja em Belo Horizonte

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