Trabalho

Proposta do governo pode fragilizar fiscalização e aumentar corrupção, dizem entidades

Projeto de lei do Ministério do Trabalho que cria o Sistema Único do Trabalho abre a empregadores e trabalhadores poder de decisão sobre políticas de inspeção no país
Por Stefano Wrobleski
 24/09/2014

O Sistema Único do Trabalho (SUT) deve tornar as condições dos auditores fiscais do trabalho mais precárias, fragilizar as políticas públicas de emprego e facilitar a corrupção nas verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). É o que afirmam cinco entidades que atuam com questões trabalhistas e judiciárias em manifesto divulgado nesta quarta-feira, 24.

A minuta do projeto, em gestação no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que o enviará ao Congresso em forma de lei, prevê a criação de uma série de instâncias de decisão nas esferas federal, estaduais e municipais. Pela proposta, o funcionamento descentralizado teria moldes semelhantes aos do atual Sistema Único de Saúde (SUS). As instâncias hierárquicas seriam compostas por conselhos paritários, nos quais governo e entidades representativas dos trabalhadores e empregadores teriam o mesmo peso de voz e voto. A última palavra, ainda segundo o projeto, caberia ao Conselho Nacional do Trabalho (CNT), organizado da mesma maneira que as demais instâncias.

Proposta produzida pelo MTE que deve reformular funcionamento da pasta  é duramente criticada por entidades (Foto: Divulgação)
Proposta produzida pelo MTE, que deve reformular funcionamento da pasta, é duramente criticada por entidades (Foto: Divulgação)

O problema, segundo as organizações que assinam o manifesto, é que decisões em torno das políticas de fiscalização trabalhista também seriam tomadas por esses conselhos. “O foco da fiscalização são as empresas que descumprem a legislação. Então, é quase antiético você colocar representantes das empresas dentro de um conselho cuja atribuição principal é definir as políticas de fiscalização”, defende o procurador do trabalho Ilan Fonseca. “É muito incoerente.”

Atualmente, as políticas de fiscalização do trabalho são definidas pelo MTE em conjunto com o Ministério do Planejamento por técnicos e coordenadores de cada área. São diretrizes como as áreas que serão priorizadas a cada ano pelas equipes de fiscais do governo em cada estado. Os planos contam com a participação de representantes dos trabalhadores e empregadores através de conselhos, que são somente consultivos. “Quando você colocar representantes patronais para definir as políticas de fiscalização, por certo haverá uma grande dificuldade para fazer cumprir a legislação trabalhista”, diz Ilan.

É quase antiético você colocar representantes das empresas dentro de um conselho cuja atribuição principal é definir as políticas de fiscalização. É muito incoerente

Corrupção
As entidades apontam também um possível aumento do risco de desvio de verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) com o modelo proposto pelo MTE.

Os recursos do FAT são usados, por exemplo, para pagamentos de seguro-desemprego, abono salarial e despesas com programas de geração de emprego e renda. Essas ações, que em 2015 consumirão R$ 82,4 bilhões do orçamento da União, são executadas pelo Sistema Nacional de Emprego (Sine), que também auxilia empregadores e trabalhadores a disponibilizarem ou encontrarem postos de trabalho.

Atualmente, a destinação dos valores é definida pelo Conselho Deliberativo do FAT (Codefat), um organismo do MTE composto pelo governo e por representantes de trabalhadores e empregadores com votos de mesmo peso. Já no projeto que está sendo elaborado pelo MTE, o FAT passaria a se chamar Fundo Nacional do Trabalho (FNT) e seus recursos seriam distribuídos pela União aos estados e municípios, que criariam fundos próprios para receber e administrar os valores recebidos.

De acordo com o manifesto, a forma de destinação dos recursos prevista pelo projeto do SUT “amplia as possibilidades de desvio de recursos e de práticas de improbidade administrativa, em face às transferências de recursos no modelo de ‘fundo a fundo’, com a criação de fundos do trabalho próprios em cada município, e de milhares de conselhos municipais do trabalho que dificultarão sobremaneira a fiscalização das destinações a serem realizadas”. O projeto ainda libera, por até doze meses enquanto os fundos estaduais e municipais estiverem sendo criados, o repasse de recursos “sem a necessidade de convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere, mediante depósito em conta corrente específica”, conforme minuta obtida pela reportagem.

Renato Bignami, auditor do trabalho em São Paulo e coordenador do grupo de prevenção ao trabalho escravo no estado, considera que o atual modelo já é falho: “O MTE faz repasses bilionários aos estados para fazer o Sine funcionar, e ele não funciona”. O auditor considera que falta controle no uso de verbas do sistema financiado pelo FAT, que atualmente não pode ser fiscalizado por auditores do trabalho.

O MTE faz repasses bilionários aos estados para fazer o Sine funcionar, e ele não funciona

Renato avalia que, com um Sine melhor estruturado, a prevenção a casos de desrespeito aos direitos trabalhistas e ao trabalho em condições análogas às de escravos seria mais eficiente. “Melhor estruturado, o Sine teria completo controle sobre as quantidades de vagas de emprego existentes e poderia realizar estudos ainda mais avançados sobre empregabilidade e outras necessidades. Seria possível, ainda, apresentar as propostas reais de contrato aos trabalhadores e se antecipar ao aliciador”, diz.

O professor de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Luiz Souto Maior considera que, com o SUT, pode haver um enfraquecimento do Sine. “As coisas são jogadas para a negociação coletiva [no âmbito das comissões tripartites], fora da perspectiva institucional. Há também um afastamento da Justiça do Trabalho para a resolução de conflitos trabalhistas”, afirma.

Infrações à OIT
O manifesto divulgado hoje também considera que a proposta do SUT em discussão no MTE infringe duas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ratificadas pelo governo brasileiro. Quando ratifica uma convenção, o país deve adotar as medidas necessárias para sua aplicação. Caso não adote ou descumpra as definições do acordo, o país pode sofrer sanções e constrangimento internacional perante a entidade.

Renato explica que a Convenção 81, que dispõe sobre a inspeção trabalhista, “trata textualmente da obrigatoriedade de uma autoridade central para o comando da fiscalização do trabalho, e não de uma autoridade tripartite”. Ele considera que “o tripartismo é essencial à inspeção, mas precisa ser somente consultivo”.

Segundo o manifesto, se entrasse em vigor hoje, o projeto do SUT também colocaria o país contra a Convenção 88 – outro compromisso firmado com a OIT – que trata da organização de um sistema público e gratuito de emprego, o que, no Brasil, se materializa no Sine. O auditor também é cético quanto ao funcionamento dos conselhos: “Nos estados e municípios em que as representações patronais e dos trabalhadores não são fortes, quem participaria desses conselhos?”.

Terceirização
A proposta também é questionada por Jorge, que vê, no texto atual, o risco de uma “terceirização sem limites”: “Um dos dispositivos trata da regularização e fiscalização da intermediação privada da mão de obra, o que pressupõe a possibilidade da terceirização da mão de obra. É pior do que a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST)”. A súmula 331 do TST é, hoje, o principal mecanismo legal para regular a terceirização, proibindo que aconteça para funcionários que realizem a mesma atividade-fim da empresa.

A avaliação do professor da USP é de que o projeto “arrisca demais”: “Ele coloca em grave risco os direitos e a organização da classe trabalhadora sob um falso pressuposto de que a classe trabalhadora está em pé de igualdade com os empregadores”.

Entidades, como o sindicato dos auditores do trabalho, se mobilizam em campanha contra o projeto
Entidades, como o sindicato dos auditores do trabalho, se mobilizam em campanha contra o projeto

‘Juízo de valor’
Em nota, o Ministério do Trabalho e Emprego não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil sobre os riscos, no projeto, de fragilização da inspeção do trabalho, a possibilidade de desvios dos recursos do FAT ou sobre os meios empregados para fiscalizar o Sistema Único do Trabalho. No posicionamento, o MTE informa que “será formado um Grupo de Trabalho tripartite e paritário, composto pelas centrais sindicais, confederações de empregadores e governo, com o objetivo de avaliar as sugestões apresentadas e elaborar Minuta de Projeto que possa ir à consulta pública. Portanto, não cabe emitir juízo de valor sobre algo que ainda será analisado”. Depois de ser colocado em consulta pública, o texto deve ser encaminhado para votação pelo Congresso Nacional.

A pasta informou ainda que a inspeção do trabalho tem atuação “assegurada na Constituição Brasileira, e não se pretende acatar nenhuma sugestão, nessa ou em qualquer outra área, que possa resultar em mudança da Carta Magna”. A declaração surge depois de uma nota escrita pela Secretaria de Inspeção do Trabalho – divisão do MTE responsável pela fiscalização trabalhista no país – ter sido entregue ao gabinete do ministro informando das violações à Constituição e à Convenção 81 da OIT que serão cometidas caso a atual redação da proposta seja mantida.

A nota, obtida pela Repórter Brasil, diz ainda que, se for mantido na sua redação atual, o texto “poderá resultar em questionamentos quanto à sua validade e complicações desnecessárias para a inspeção do trabalho”. A secretaria pede, ainda, o retorno do projeto à sua redação original. “Claramente, no que se refere à Inspeção do Trabalho houve alteração do texto definido de comum acordo pelos secretários de Inspeção do Trabalho e de Políticas Públicas de Emprego em reunião”, diz.

Legislação aberta
A minuta do projeto de lei que cria o SUT pode ser baixada aqui. O texto trata de sua estruturação deliberativa e da inspeção do trabalho nos artigos 4, 11 e nos incisos 1 e 2 do 13º artigo. Já o financiamento do sistema e forma de funcionamento do FNT pode ser conferido no artigo 31 e entre os artigos 33 e 40. A intermediação privada da mão de obra é tratada brevemente no 15º inciso do artigo 19. A Constituição Federal trata da fiscalização trabalhista em seu artigo 22, inciso 24.

Confira a íntegra do manifesto aqui. O texto foi assinado pelas entidades Associação Latino-Americana de Advogados Trabalhistas (Alal), Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho (ALJT), Associação Luso-Brasileira de Juristas do Trabalho (Jutra), Confederação Iberoamericana de Inspetores do Trabalho (Ciit) e Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).

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