A Convenção 169 da OIT e o direito à consulta prévia, livre e informada

É hora de prestar atenção às visões concorrentes de “desenvolvimento” e “progresso”. Elas existem, são muitas e não podem ser mais banidas dos debates.
Deborah Duprat
 23/08/2016

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) disciplina uma nova relação do Estado nacional com o seu “povo”, circunstância facilmente identificada se confrontada com o texto normativo que lhe é anterior e que é por ela expressamente revogado: a Convenção 107 da mesma OIT. Enquanto esse último documento consignava como propósito a assimilação de minorias étnicas à sociedade nacional, o presente, já em seu preâmbulo, evidencia a ruptura com o modelo anterior, ao reconhecer a esses povos o direito “a assumir o controle de suas próprias instituição e formas de vida”, mantendo e fortalecendo “suas identidades, línguas e religiões dentro do âmbito dos Estados onde moram”.

De mais a mais, a Convenção 169, ao reformular todo o ideário da Convenção 107, teve que reforçar a liberdade expressiva desses povos. Por isso, no processo transformador por ela engendrado, a consulta prévia é um elemento central, e não periférico.

Três questões fundamentais rondam a consulta: os seus destinatários, como deve ser realizada e os seus efeitos.

A Convenção 169 tem como público os povos tribais e indígenas, mas o critério fundamental para determinar esses grupos é a consciência de sua própria identidade.

Indígenas Munduruku durante oficina sobre a consulta prévia. Foto: Gabriel Bicho/Greenpeace
Indígenas Munduruku durante oficina sobre a consulta prévia. Foto: Gabriel Bicho/Greenpeace

A consulta é prévia, de boa-fé, bem informada e tendente a chegar a um acordo. Isso significa que, antes de iniciado o processo decisório, as partes se colocam em um diálogo que permita, por meio de revisão de suas posições iniciais, se chegar à melhor decisão. Desse modo, a consulta traz em si, ontologicamente, a possibilidade de revisão do projeto inicial ou mesmo de sua não realização. Aquilo que se apresenta como já decidido não enseja, logicamente, consulta, pela sua impossibilidade de gerar qualquer reflexo na decisão. A Convenção 169 não deixa dúvidas quanto a esse ponto: a consulta antecede quaisquer medidas administrativas e legislativas com potencialidade de afetar diretamente  povos indígenas e tribais.

Também decorre da racionalidade do sistema que, nas medidas que se desdobram em vários atos, como ocorre, por exemplo, no procedimento de licenciamento ambiental, a consulta prévia seja renovada a cada geração de novas informações, especialmente aquelas relativas a impactos a serem suportados pelos grupos. O consentimento inicial para a obra se dá a partir dos poucos dados disponíveis. Uma vez realizado o estudo de impacto ambiental e adicionadas outras tantas informações, a consulta tem que ser renovada, e, mais uma vez, iniciado o processo dialógico tendente ao acordo. Esse é um imperativo que decorre, primeiro, dos próprios vetores da consulta (especialmente, nesse ponto, o seu caráter de boa fé), e, segundo, da natureza do licenciamento ambiental, que agrega informações novas a cada etapa

A consulta também só se qualifica como tal se for compreendido o seu propósito em toda a sua extensão. Daí o imperativo de que seja culturalmente situada. A primeira consequência é de que não há um modelo único de consulta; ao contrário, ela se desenvolve de acordo com as peculiaridades de cada grupo.

Leia reportagens sobre a Convenção 169:
Eles esperam há dez anos para serem ouvidos pelo governo. Agora, cansaram
Indígenas e comunidades tradicionais deveriam ser ouvidos no legislativo
“Turismo tóxico boladão”: um passeio no barco mais alvejado da baía de Guanabara
O quilombo que parou um porto

Esse é certamente o tópico que suscita as maiores controvérsias. Há aqueles que defendem ser a consulta mera formalidade,  sem aptidão para interferir no processo decisório do Estado, e há outros que advogam a possibilidade incondicional de veto ao projeto.

Ambas as posições, contudo, parecem equivocadas. A primeira, por ignorar os próprios pressupostos e requisitos que a Convenção 169 estabelece para a consulta, acima enunciados. E a segunda, por desconsiderar que, numa sociedade plural, nenhum grupo pode ter o domínio absoluto das decisões que escapam ao seu exclusivo interesse.

Há, contudo, no intervalo entre esses dois polos, muito a ser considerado.

Primeiro, e por óbvio, a decisão do grupo é definitiva quanto às medidas que lhes digam respeito com exclusividade. Assim, a implementação de uma determinada política pública ou de uma obra dentro de seu território depende de sua anuência. O veto, aqui, é de natureza absoluta e decorre da autodeterminação do grupo, da autonomia na estipulação e gerência de seus projetos de desenvolvimento.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que há casos onde deve haver o consentimento das populações. Foto: Divulgação/CIDH
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que há casos onde deve haver o consentimento das populações. Foto: Divulgação/CIDH

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, estabeleceu, a partir do caso Saramaka, uma distinção entre consulta e consentimento, exigindo esse último nas hipóteses de grandes  projetos de empreendimento que provoquem perda de território ou seu grave comprometimento no que diz respeito ao acesso, uso e gozo dos recursos fundamentais à existência física e cultural do grupo.

Tal entendimento decorre do tratamento que a Convenção 169 confere aos territórios ocupados pelos povos indígenas e tribais, considerando-os espaços fundamentais para as suas culturas e seus valores espirituais. Nesse sentido, a desterritorialização forçada corresponde a verdadeiro genocídio, pois se suprime ao grupo espaço identitário dentro do qual a sua existência faz sentido.

Afora essas situações, em que o consentimento é essencial, a consulta deve ser vinculante. Significa dizer que eventuais objeções oferecidas pelo grupo devem ser levadas a sério e superadas com razões melhores. Se estas não se apresentarem, as objeções têm que ser incorporadas ao processo decisório, com alteração, no todo ou em parte, do projeto. Não é possível o descarte ou a desqualificação de ideias contrárias sob argumentos “de autoridade”. A consulta da Convenção 169 foi concebida como importante instrumento de correção de assimetrias verificadas na sociedade nacional. Não mais se concebe, tal como se deu em passado bastante recente, que os benefícios do chamado “desenvolvimento” sejam auferidos por alguns grupos privilegiados, e os seus efeitos perversos, suportados pelos demais. Daí por que a consulta é um processo ético, de natureza argumentativa, em que as partes se relacionam com igual respeito e consideração.

A Convenção 169 da OIT é seguramente o documento internacional que mais e melhor traduziu a passagem do Estado nacional de matiz hegemônico para a sua vertente de pluralismo cultural e étnico. Se, por um lado, tornou visíveis grupos historicamente deslocados para as margens da sociedade, por outro, tratou dos mecanismos necessários para lhes garantir domínio de suas próprias vidas e espaço no cenário público.

Assim como outras comunidades tradicionais, os quilombolas tem direito à consulta prévia. Foto: Bob Barbosa/Terra de Direitos
Assim como outras comunidades tradicionais, os quilombolas tem direito à consulta prévia. Foto: Bob Barbosa/Terra de Direitos

É preciso, no entanto, investir demasiadamente nela. Sua abertura para a diferença e para as margens, e o descentramento da narrativa que ela possibilita, gera uma resistência, às vezes até agressiva, ao que ali se contém. As categorias de civilização e barbárie, volta e meia, são acionadas para classificar aqueles que estão a favor ou contra “projetos de desenvolvimento”. Ou tomam-se esses grupos, e seus integrantes, por frágeis, sofredores, necessitados, dependentes, vulneráveis, que, mais do que tudo, devem ser monetariamente satisfeitos.  A consulta, então, transforma-se em análises de custo-benefício, com cálculos grotescos colocando valores em vidas humanas.

Essas percepções, infelizmente, ainda estão presentes no inconsciente jurídico: parece quase natural que o pagamento seja uma saída para todos os impasses, e o “progresso”, um imperativo das sociedades modernas. Contudo, já é hora de prestar atenção às visões concorrentes de “desenvolvimento”, “progresso” e “boa vida”. Elas existem, são muitas e não podem ser mais banidas para as periferias dos debates.

Deborah Duprat é Subprocuradora-Geral da República e Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão

Esta publicação foi realizada com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo com fundos do Ministério Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).-Logo_face port_RGB.eps

Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licença Creative Commons de “Atribuição + Uso não comercial + Não a obras derivadas” (BY-NC-ND) (saiba mais aqui)

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM