A JBS comprou gado de fazendas que foram flagradas com trabalho escravo contemporâneo e desmatamento ilegal. A revelação foi feita por investigação da Repórter Brasil em parceria com o jornal britânico The Guardian e levou o mercado inglês Waitrose, sétimo maior da Inglaterra, a retirar a carne da empresa brasileira de suas prateleiras.
A Inglaterra é um dos 150 países que importam carne da JBS. A reportagem rastreou a carne da empresa brasileira em alguns dos maiores mercados do Reino Unido, como o Waitrose, Sainsbury’s, Marks & Spencer, Co-Op, Lidl e Princes. Alguns deles vendem a carne brasileira em latas que levam a marca do próprio mercado. O NHS, sistema de saúde público britânico, também tem fornecedor que compra da empresa brasileira.
As violações foram cometidas por fornecedores da JBS no Pará. A empresa alega ter parado de comprar dos fornecedores assim que as informações vieram a público (leia resposta na íntegra).
O caso de trabalho escravo entre fornecedores da empresa foi flagrado em fazenda de gado fiscalizada pela operação Rios Voadores em 2015. A equipe, formada por Ibama, Ministério Público Federal e Polícia Federal, encontrou trabalhadores dormindo em barracos sem paredes, portas ou qualquer proteção contra insetos ou cobras – muito comuns na região próxima à mata fechada. A água para beber era retirada do mesmo rio onde os bois bebiam e defecavam. Não havia geladeira ou condições mínimas de higiene para manter a comida.
O quadro foi caracterizado como trabalho análogo ao de escravo na denúncia feita pelo Ministério Público Federal, onde consta ainda a existência da escravidão por dívida. Os custos da alimentação e dos poucos equipamentos de proteção disponíveis eram descontados do salário.
A denúncia aponta que a exploração do trabalho escravo ocorreu na fazenda Curuá, em Altamira, propriedade de Antônio José Junqueira Vilela Filho e sua família. Documentos do mesmo inquérito revelam que a JBS comprou gado da fazenda Curuá.
No total, os documentos no inquérito apontam que a empresa comprou 5,9 milhões em bois, vacas e novilhos das fazendas do grupo entre 2013 e 2014. A investigação sobre a responsabilidade da JBS na relação comercial com o grupo ainda não foi concluída.
Em resposta à reportagem, a JBS declarou que a fazenda Curuá nunca entrou na lista suja do trabalho escravo, cadastro com o nome dos empregadores flagrados pela prática. “A JBS não compra gado de fazendas que tenham qualquer associação com o trabalho escravo, de acordo com a lista divulgada pelo governo brasileiro”.
Antônio Carlos de Mello Rosa, coordenador do grupo de combate ao trabalho escravo da Organização Internacional do Trabalho no Brasil, criticou a postura da empresa, que ancora toda a sua responsabilidade à consulta da lista divulgada pelo governo. Ele argumenta que as empresas precisam desenvolver os seus próprios mecanismos para monitorar os seus fornecedores. “Todos os setores econômicos têm que fazer sua própria regulação, além de usar a lista suja, para checar se há trabalho escravo entre seus fornecedores”, afirma.
Maior desmatador da Amazônia forneceu à JBS
Além do trabalho escravo, a operação revelou que Jotinha, apelido de Antônio Junqueira, operava na região o maior esquema de desmatamento ilegal associado a grilagem de terras da história da Amazônia. As inspeções federais às fazendas do grupo ocorreram entre 2014 e 2016, período em que houve reincidência dos crimes.
Pelos crimes ambientais, Jotinha levou multa de 119 milhões de reais. Ele contesta as denúncias feitas contra ele e sua família (leia nota na íntegra).
Procurada pela reportagem, a JBS afirmou que “assim que recebeu as informações sobre as irregularidades todas as compras de gado da família Junqueira foram imediatamente interrompidas”.
A principal linha de defesa da empresa foi argumentar que não seria possível descobrir crimes que só vieram à tona graças à operação federal.
Dentro do inquérito, porém, a empresa apresenta mais informações sobre o caso. Nela, a JBS admite que continuou comprando de Jotinha e família apesar de seus nomes constarem na lista de proprietários que têm áreas embargadas no Ibama.
Isso não é uma ilegalidade, já que a lei brasileira veta apenas a compra de gado criado em áreas embargadas. Não há crime em negociar com proprietários que tenham outras áreas embargadas, desde que eles vendam de fazendas legalizadas. O cuidado, porém, poderia ter sido tomado por iniciativa própria de uma empresa preocupada em evitar práticas criminosas entre seus fornecedores.
Esse ano outra operação do Ibama revelou problemas ainda maiores no controle de fornecedores da JBS. A operação Carne Fria revelou que dois frigoríficos da empresa no sudeste do Pará compraram quase 30.000 cabeças de gado que vieram diretamente de áreas embargadas.
A empresa negou as compras diretas, admitindo apenas os casos de triangulação: quando os bois criados em terras embargadas passavam por fazendas onde não havia nenhuma proibição, de onde eram comprados pela JBS.
Somando todos os casos envolvendo a empresa nessa operação, a multa para a JBS foi de R$ 24,7 milhões por crime ambiental. Os dois frigoríficos foram ainda proibidos de comprar novos bois enquanto a empresa não tomasse medidas para resolver a origem do problema.
Governos na defesa do setor da carne
A repressão do órgão ambiental gerou contra ataque e revelou como setores do próprio governo brasileiro respondem rápido na defesa da indústria da carne. Ou ao menos respondiam, já que os fatos ocorreram antes dos donos da JBS delatarem mais de 1.800 políticos por corrupção.
A operação Carne Fria, do Ibama, ocorreu no final de março, uma semana depois da bombástica divulgação da Operação Carne Fraca, da Polícia Federal. As revelações de que a JBS pagava propina para que fiscais do Ministério da Agricultura aprovassem o seu produto foi a primeira de uma série de revelações que colocaram a credibilidade da empresa em xeque.
Na época, o governo federal saiu em defesa do setor. A imagem que ficou consagrada foi a do presidente Michel Temer jantando em uma churrascaria para provar a sua confiança na carne brasileira. Entre os convidados estavam os ministros Blairo Maggi, da Agricultura, Marcos Pereira, da Indústria e Comércio Exterior, representantes de associações de produtores de carne e embaixadores de países importadores da carne brasileira.
No dia seguinte, porém, o evento se revelou como uma gafe, já que a carne servida pelo restaurante não era nacional.
O apoio do governo ao setor também ocorreu em resposta à operação Carne Fria, do Ibama. Começou com declarações de prefeitos, de um senador e do governador em exercício do Pará. Culminando com um recuou dentro do próprio órgão ambiental que promoveu a fiscalização.
Três dias depois da ação, o ministro do Meio Ambiente Sarney Filho veio a público pedir desculpas: “não era o momento adequado para a gente fazer essa operação”, disse o ministro em vídeo dirigido aos pecuaristas, a quem se dirige como “amigos”.
No mesmo dia em que o ministro pedia desculpas pela investigação conduzida pelo Ibama, órgão subordinado a ele, dois juízes do estado do Pará suspenderam os embargos. Os frigoríficos voltaram a funcionar poucos dias depois da operação. A empresa pediu e conseguiu na justiça a liberação sob o argumento de que a quantidade de bois envolvidos na operação era pouco representativa do total que a empresa abate por ano.
Para Jair Schmitt, então coordenador geral de fiscalização ambiental do Ibama, o argumento não faz sentido porque o Ibama não se propôs a fiscalizar todo o gado que a empresa abate. “Nós analisamos apenas 0,4 % de todas as áreas embargadas no estado do Pará. Só nessa amostra identificamos cerca de 50 mil gados sendo comprados de áreas embargadas”.
Schmitt diz que o objetivo da operação foi cobrar um controle mais rígido das empresas. “Tem que melhorar o controle sobre a cadeia produtiva, diferenciar claramente quem produz gado em área legal de quem não produz. Quem trabalha incorretamente deve ser marginalizado para não ter concorrência desleal”, afirma.
Em resposta às descobertas da Carne Fria, p Greenpeace suspendeu o acordo que tinha com a empresa para aprimorar o monitoramento de seus fornecedores. “A JBS tem que vir a público explicar como o sistema deles foi enganado em um volume tão significativo. Até agora isso não aconteceu”, diz o coordenador de campanhas do Greenpeace no Brasil, Nilo D’Ávila, que fazia parte da mesa de negociação criada entre a empresa e a organização. O Greenpeace fixou uma série de medidas que a empresa tem que adotar para que eles voltem a falar sobre um acordo.
Desde 2009, a JBS se comprometera com o Ministério Público Federal brasileiro a excluir fazendas envolvidas com desmatamento da sua cadeia produtiva. A descoberta do Ibama revela que o acordo foi descumprido.
Para Daniel Azeredo, procurador federal responsável pela assinatura do acordo, a operação deixou claro que a empresa não está usando todos os mecanismos disponíveis para controlar seus fornecedores. Um dos elementos que a empresa não estaria usando, segundo o procurador, são os mapas das áreas embargadas, informação divulgada pelo Ibama. “Se eles se comprometeram em zerar o desmatamento ilegal de sua cadeia, é óbvio que teriam de consultar os mapas”, afirma.
O Greenpeace concorda com a necessidade do filtro por localização geográfica como um passo mínimo que a empresa não poderia ter ignorado. “Nós só voltamos à mesa se a empresa parar de trabalhar apenas com listas e passar a adotar os setoriais [mapas] do Ibama, entre outras medidas”.
Combate ao crime
A relação entre crimes ambientais e trabalho escravo é uma constante dos pastos brasileiros. A pecuária é historicamente o setor com mais casos de trabalho escravo no país, com mais de 30% de todos os casos flagrados entre 1995 e 2016. Mais de 13.000 trabalhadores foram resgatados de fazendas de gado.
O crime geralmente acontece durante a derrubada de árvores para a abertura de novos pastos. A criação de bois já é considerada como a principal motivação para o desmatamento ilegal na Amazônia brasileira, com cerca de 63% das áreas desmatadas apresentando algum tipo de pasto, segundo monitoramento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Com uma prática tão disseminada, é difícil acreditar que ela não abasteça as maiores indústrias de processamento de carne do país. Do mesmo modo que é difícil criar cenários de mudança que não passem pelas empresas que compram o gado.
Especialistas apontam que apenas ações repressivas do estado não são suficientes para combater os crimes de trabalho escravo e desmatamento. É preciso cortar o fluxo de dinheiro. Por isso, a importância da fiscalização e cobrança da rede de fornecedores, dando transparência ao caminho da carne que sai do pasto brasileiro e vai até as prateleiras internacionais.
Procurado pela reportagem, o mercado inglês Waitrose respondeu que não encontrou as violações em suas auditorias internas, mas que está “levando essas denúncias a sério. Por isso, paramos de comprar desse fornecedor enquanto investigamos”. Os mercados Lidl e Co-op também disseram conduzir suas próprias auditorias internas. Mark & Spencer alegaram terem parado de comprar carne enlatada do Brasil desde 2016. O Sainsbury’s e o Princes disseram que seus negócios são conduzidos dentro de padrões éticos e globais.
Um porta voz do NHS respondeu que o sistema público de saúde “não estava sabendo dessas acusações”. “Assim que vocês trouxeram essa questão, nós imediatamente contatamos os fornecedores e estamos conduzindo uma investigação sobre o caso”, disse por meio de nota.
Com colaboração de André Campos
Nota da redação: a reportagem foi atualizada no dia 8 de junho para incluir o posicionamento do empresário Antônio José Junqueira Vilela Filho.