Na cozinha do alojamento, um homem caído no chão agonizava com dores de cãibras. Só conseguiu levantar com a ajuda dos colegas, que mostraram preocupação, mas não estranhamento – as dores fazem parte do dia a dia de um cortador de cana. O médico que o socorreu diagnosticou esgotamento por excesso de trabalho.
Em três propriedades rurais na região de Piracicaba, interior de São Paulo, auditores-fiscais do Ministério do Trabalho encontraram cerca de 80 cortadores de cana sem carteira assinada e que faziam jornadas excessivas. Ganhando por produção, os trabalhadores cortavam cana até o corpo não aguentar.
A fiscalização, que aconteceu entre 13 e 16 de agosto, também constatou alojamentos precários e ônibus inadequados. Foram emitidos 17 autos de infração para três consórcios e dois fornecedores, responsáveis por 423 trabalhadores.
De acordo com a auditora Irani Aparecida Godoy, os consórcios atuavam nas fazendas Monjolinho (Piracicaba) e Recanto (Laranjal Paulista) e vendem cana-de-açúcar para a Raízen, multinacional que fabrica etanol e uma das maiores exportadoras de açúcar do mundo.
“O que mais dói é a cabeça, as cãibras, as costas. Só quem vê de perto sabe o sofrimento de um cortador”, compartilhou um dos trabalhadores, 24 anos, enquanto assistia o colega ser socorrido. O problema das dores e do esgotamento físico deve-se principalmente à meta de produtividade das fazendas. Alguns trabalhadores colhiam mais de 22 toneladas de cana por dia – quantia considerada exagerada para o setor.
“Só quem vê de perto sabe o sofrimento de um cortador”, disse um dos trabalhadores que assistia o colega ser socorrido das dores da cãibra.
Há mais de dez anos, quem cortava 12 toneladas ao dia era considerado “campeão de produtividade”, segundo pesquisa do Francisco Alves, da Universidade Federal de São Carlos. “Eram trabalhadores que morriam cedo ou que ficavam incapazes, pois perdiam o movimento das mãos, pernas, coluna”, disse o pesquisador.
“Eles estão produzindo com excesso de jornada, sem pausas para refeição ou descanso”, reagiu o coordenador do Grupo de Fiscalização Rural da Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo, Roberto Martins de Figueiredo, destacando se trata de uma situação “absurda”.
O próprio encarregado do consórcio Consorio, Gener Borges, que gerenciava o corte de cana na fazenda Recanto, reconheceu que qualquer colheita acima de 10 toneladas diárias é excessiva. Ele informou que, “com apoio da Raízen”, está trabalhando para estabelecer um piso diário de produtividade para que os trabalhadores não precisem colher excessivamente. E alegou ainda que não tinha conhecimento sobre a colheita de 22 toneladas por trabalhador da fazenda.
A Raízen informou em nota que “incentiva os seus fornecedores a adotarem as melhores práticas e a respeitarem as leis trabalhistas” e que “quando identificadas questões pontuais de fornecedores que escapam a essas diretrizes, estas são imediatamente tratadas e sanadas”. Por telefone, a assessoria de imprensa da multinacional, porém, não informou se suspenderia a compra de cana das fazendas autuadas. A nota diz ainda que “a fiscalização citada não envolveu seus funcionários e prestadores de serviços”. Leia aqui a nota na íntegra.
Retrocesso
Historicamente, o setor de produção de cana-de-açúcar no Brasil sempre figurou entre os campeões de trabalho escravo e de violações trabalhistas. Entre 2003 e 2013, fiscais do Ministério do Trabalho resgataram quase 11 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão. Porém, nos últimos anos, o setor vem passando por uma nova fase, com intensa mecanização da colheita e melhoria das condições de trabalho. O que não impede retrocessos, como os flagrados pelos auditores-fiscais nas fazendas do interior de São Paulo.
“Eles estão produzindo com excesso de jornada, sem pausas para refeição ou descanso”, disse o coordenador do Grupo Rural, Roberto Martins de Figueiredo
“Fazia muitos anos que a gente não via isso”, comentou Figueiredo, do Grupo Rural, sobre o grande número de trabalhadores sem carteira assinada. A quantidade de cana colhida também causou alerta.
Os casos confirmam que a saúde do trabalhador não é “prioridade das pautas do governo”, na avaliação do professor Luis Henrique da Costa Leão, especialista em Saúde Pública. No período de safra, é recorrente encontrar trabalhadores exaustos e com dores de acordo com médico de Rio das Pedras, que não quis se identificar. Os atendimentos em saúde, na região, aumentam em até 30% durante o período de safra da cana, de março a outubro, segundo o secretário de saúde da cidade, Filemon Silvano.
Trabalho sem descanso
Trabalhar sem parar é comum entre os cortadores de cana. “A gente não fica parado, não. É prejuízo”, afirma um trabalhador de 30 anos. Outro problema encontrado na fiscalização era que os empregadores não informavam quanto os cortadores iam ganhar no final do mês. “Ninguém dá preço de cana. Só ficamos sabendo na hora do pagamento”, completou o trabalhador.
Nos alojamentos também foram constatadas irregularidades: quartos sem janelas, banheiros cobertos de lodo e sujeira, com chuveiros e vasos sanitários quebrados. No final da tarde, o cheiro da comida se misturava ao odor do lixo.
Trabalhadores também reclamaram da pouca quantidade de comida oferecida pelos empregadores. “Eles mandam uma marmita, mas é pouco, temos que trazer um reforço de casa”, contou um trabalhador de 34 anos, que cortava cana para um dos convênios autuados.
Foram autuados por diversas irregularidades três consórcios que vendem para Raízen: Consorio de Produtores Rurais, Renato Massena Quixabeira e Luis Antônio Neves. Além deles, foram também alvo da fiscalização os fornecedores José Clóvis Casarin, que é diretor na Associação dos Fornecedores de Cana de Piracicaba (Afocapi) e Cacilda Bisson Sanches. Clóvis Casarin e Renato Quixabeira informaram que preferiam não se manifestar. A Afocapi também não se manifestou oficialmente. A reportagem não conseguiu contato com Cacilda Sanches e Luis Antônio Neves.
Os mais de 400 trabalhadores encontrados em situação irregular receberam os devidos direitos trabalhistas. Alguns deles também receberam o valor da passagem para voltar às suas cidades de origem, de acordo com a auditora Aparecida Godoy.
Para o procurador do trabalho Ney Messias Vieira, que integra o Grupo Rural, a reforma trabalhista dá respaldo para a situação de “retrocesso” encontrada na região de Piracicaba. “Ficou mais fácil violar o direito do trabalhador”, afirma. Um dos grandes problemas da nova lei trabalhista é a dificuldade de se responsabilizar um grupo empresarial pelas violações de direitos cometidas por terceirizadas, subsidiárias ou fornecedores.