A lama que queima: compradora de minério da Vale faz vítimas no interior do Maranhão

Usina Gusa Nordeste, que processa minério de ferro da Vale, descarta resíduo incandescente próximo a comunidade no Maranhão. Vinte anos após a morte de uma criança por conta da lama que queima, o problema continua: moradores seguem sofrendo queimaduras graves
Por Thais Lazzeri
 21/04/2019

Não há dor mais insuportável do que aquela que fere um filho. Enquanto ouvia os gritos do Alan, internado durante 13 dias e precisando de sedação para aguentar os curativos das queimaduras nas pernas, Marlene dos Santos não sentia fome, sono ou cansaço. “Só queria estar no lugar dele”, diz ela, referindo-se à maior tragédia que a família já enfrentou e que deixou cicatrizes profundas no corpo do filho, à época com 9 anos. “Era a munha.”  

Em Açailândia, pólo siderúrgico brasileiro no Maranhão, “munha” é o apelido que os moradores deram para uma escória inflamável, resultado da produção de ferro gusa, depositadas a céu aberto – em um local sem cercas ou muros –, atrás da casa de moradores. São montanhas negras de “munha” a perder de vista, algumas com mais de dois metros de altura.

A responsável por essas montanhas de munhas que ameaçam os moradores é empresa Gusa Nordeste S.A, braço do Grupo Ferroeste. A liga, feita a partir de minério de ferro, é essencial para a produção de aço, como o usado na fabricação de bicicletas.

Antônio Araújo, morador de Açailândia, caminha ao lado das montanhas de resíduos inflamáveis: não há cercas ou muros que impeçam o acesso dos moradores ao local (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Sob sol, a “munha” alcança temperaturas capazes de provocar queimaduras de terceiro grau. Sob chuva e vento, esse pó fino inflamável é levado para regiões distantes. Ao decantar sob a terra, fica camuflado, imperceptível a olho nu, à espera da próxima vítima.  

Alan sofreu queimaduras severas em uma área de plantio de eucalipto da Gusa, a quilômetros das montanhas de “munha”. Ele ia a cavalo com um vizinho pela estrada, aberta há décadas pela comunidade, quando o animal esperneou. Alan caiu e viu a lama comer-lhe os pés – de um deles viam-se os ossos. “Se tivesse caído sentado, os órgãos teriam cozinhado e o menino teria morrido”, diz o vizinho que o salvou, José Carlos Monteiro Neves. A Secretaria Municipal de Saúde e a Gusa visitaram o local dias depois. Os focos de incêndio permaneciam.

Alan não foi a primeira nem a última vítima da escória incandescente da Gusa Nordeste. A primeira condenação judicial da empresa é de 1999. À época, outra criança, de sete anos, afundou na “munha” e não sobreviveu. Na sentença, publicada em 2002, o juiz José Edilson Ribeiro afirma não haver dúvidas de que  a empresa “assumiu o risco, mesmo que eventual, de provocar um acidente.”

O filho de Marlene dos Santos, Alan, tinha 9 anos quando queimou os pés na “munha” (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Quase vinte anos depois, o cenário piorou: tanto o número de vítimas conhecidas quanto o volume de “munha” aumentaram. A Repórter Brasil encontrou quatro famílias com casos de queimaduras severas provocadas pela escória, mas há outros em Açailândia, cidade contígua à Estrada de Ferro Carajás.

A principal empresa que fornece minério de ferro para a Gusa é a Vale, responsável pelo rompimento da pela barragem em Brumadinho (MG), em janeiro deste ano, que deixou cerca de 350 mortos. Em Açailândia, a lama queima.

A Gusa Nordeste chegou ao Maranhão em 1984 apoiada pela ditadura para “levar progresso” à Amazônia. Em 2017, a família Silvia Carvalho Nascimento e Silva e Ricardo Carvalho do Nascimento, à frente da diretoria e do quadro de acionistas da Gusa, viu a receita líquida da empresa saltar 29%, alcançando R$ 300 milhões, segundo dados publicados no Diário Oficial.   

Procuradas, a Gusa e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente não responderam aos questionamentos da Repórter Brasil. Em nota, a Vale não comentou as violações de direitos humanos em sua cadeia produtiva. Informou apenas que “a Gusa Nordeste não pertence à Vale, bem como não há qualquer participação na empresa.”

O descarte da escória inflamável

Pela BR 222, que corta Açailândia, chegam caminhões lotados de escória incandescente e de outros resíduos, usados na fabricação do Cimento Açaí, pela subsidiária Cimento Verde do Brasil. O descarte é feito direto em um pátio – sem cercas, muros ou vigília.

“Vários indícios sugerem que [a empresa] não atende a legislação e as normas técnicas de destinação de resíduos perigosos”, diz o engenheiro ambiental Alberto de Freitas, que já atuou como auditor. As evidências apontam que a escória da Gusa Nordeste seria um resíduo perigoso, segundo as normas brasileiras, por apresentar grau de toxicidade e alta inflamabilidade. “Vivemos em uma cultura da ilegalidade ambiental no Brasil. Uma empresa que desrespeita as leis gasta R$ 10 mil para o transporte e descarte dessa escória. Dependendo da composição química, adequar o pátio pode custar milhões de reais”, diz Freitas.  

Para seguir em funcionamento mesmo diante das denúncias e da condenação judicial, a Gusa contou com a conivência do  Estado do Maranhão, mostra o relatório de vistoria ao qual a Repórter Brasil teve acesso.

O casal ficou endividado durante a recuperação do filho. O tratamento de Alan exigia remédios que a família, sozinha, não tinha como comprar (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

O documento, de dezembro de 2017, afirma que “toda a extensão das vias internas apresentava um abundante pó fino [da munha] facilmente carregado por ventos e passagem de veículos” e que “o risco de queimaduras era muito alto, face à deposição de escória incandescente no local.”

A equipe responsável pela vistoria era composta por funcionários da Secretaria do Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema), da Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH, em inglês) e de um morador da comunidade mais afetada, Piquiá de Baixo. Houve registros em vídeos e fotos. É possível perceber o assombro de um deles ao presenciar um punhado de gravetos secos enfiados na “munha” pegar fogo sem ninguém acender um só fósforo. “Imagina no corpo de uma criança?”, ele questiona.

Há também uma brecha legal que favoreceu a Gusa. A lei complementar federal nº 140/2011 estabelece que se uma secretaria estadual não responder ao pedido de licenciamento ambiental – como os feitos pela Gusa –, a licença é automaticamente prorrogada até a manifestação definitiva do órgão ambiental. Desde 2012, a Gusa se beneficia dessa prorrogação. “É como se fosse um voto de protesto da secretaria em razão das denúncias, mas o risco não muda para moradores”, diz uma fonte envolvida na investigação que pediu anonimato.

A Gusa Nordeste, produtora de ferro gusa, está localizada a poucos metros das casas dos moradores. Além das queimaduras, eles sofrem com impactos sonoros e poluição (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

“Se [o pó] está sendo levado para outras regiões e segue inflamável é porque a empresa não seguiu as regras do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Para cada tipo de resíduo, há uma regra de descarte. Isso não deveria acontecer em lugar nenhum do país”, afirmou, em condição de anonimato, um acadêmico do departamento de engenharia e metalurgia de uma das mais importantes universidades do país.

As denúncias envolvendo a Gusa Nordeste alcançaram a Organização das Nações Unidas. “Há uma omissão do estado e de instituições jurídicas que já foram provocadas e aparentemente não têm tomado providência”, afirma Danilo Chammas, advogado da organização Justiça nos Trilhos, que denuncia violações de direitos humanos.

Lenta recuperação

Sem poder andar por três meses, a vida de Alan foi no colo dos familiares. Depois, locomovia-se de joelhos. Levou seis meses até se apoiar nos pés e quase um ano para todas as queimaduras cicatrizarem.

Como o Sistema Único de Saúde não fornecia as pomadas cicatrizantes, a família adquiriu uma dívida de R$ 3 mil – em Açailândia, 35% da população é pobre ou extremamente pobre. Ainda assim, os pés viviam “atrocidados”. “Quando tem produto químico, o pó de ferro, fica mais difícil [a cicatrização]. A queimadura é tão horrível que chega no osso”, diz a técnica de enfermagem Josevan Silva que atendeu Alan e outras vítimas.   

O grau de toxidade pode explicar a lenta e penosa recuperação de Alan. Mesmo embalando os pés em algodão e meias grossas para proteger a área queimada depois de 1 ano do acidente, as bolhas continuavam surgindo. Foram anos com dormência, coceira, bolhas e muito choro. Por isso, em 2017, o menino foi morar com amigos dos pais de Alan em outro estado. Lá, os sintomas melhoraram. “Por isso acredito que o ar daqui, por conta dessa usina, fazia mal para a pele dos pés do meu filho.”

Poluição onipresente

Qualquer pessoa entenderia a magnitude das violações que as famílias sofrem se entrasse na casa de uma delas. O teto de todas as casas é coberto com lonas para reduzir a entrada do pó de ferro fino lançado na atmosfera diariamente pela usina. Ainda assim, a professora e agricultora Angelita Alves de Oliveira, 66 anos, coloca uma capa de plástico em cima do celular para o pó não grudar e troca, diariamente, os lençóis. Do contrário, ela diz, é como dormir com areia no corpo.

“É coceira de pele, irritação nos olhos, muita dor de cabeça, náusea. Tem dia que o cheiro [que vem da usina] é tão forte que lembra iodo. Fora a poluição sonora, um barulho ensurdecedor que acaba com a gente.” Os impactos da “atividade altamente poluente” já foram descritos em estudo conduzido pela Fiocruz.

Além das montanhas incandescentes, moradores de Açailândia enfrentam a poluição gerada pela usina

Um parecer de 2011, feito a pedido da defensoria pública, encontrou problemas respiratórios graves entre os moradores O resíduo lembra graxa de tão pegajoso e, quando chove, vira pedregulho.

A tal graxa está por todo o quintal. Os pés de buriti não brilham, parecem ter sobrevivido a um desmoronamento tamanha a quantidade de fuligem. Para consumir a fruta, Angelita coloca de molho no sabão, lava com duas escovas, enxagua duas vezes e seca. Um por um. “A gente carrega essa sensação de perda [suspiro]. Não é sensação, é certeza.”

No quintal dela há mais de uma dezena de árvores mortas. Isso porque a tubulação que traz água água quente, resultado do resfriamento dos fornos das guseiras, deságua no seu quintal.

O panelão

Apesar da série de violações, há apenas um caso da empresa sendo investigado pelo Ministério Público Estadual – e não é sobre a “munha”. O alvo é o “panelão”, caminhões da Aço Verde Brasil, nome fantasia da Gusa Nordeste, que transportam até 50 toneladas de gusa ou aço líquido a cerca de 1300°C pela BR 222.

A primeira investigação criminal é de 2016. A segunda, do ano passado, quando um “panelão” pegou fogo na BR. Segundo a promotora de Justiça Letícia Teresa Sales Freire, titular da 2ª Promotoria de Justiça de Açailândia, a empresa não tem licença para fazer o transporte do material perigoso. “Solicitamos que eles fizessem uma rota paralela, de modo que não usassem a rodovia, mas disseram que não era possível”, diz.  

Viviane, que aos 9 anos brincava com sua prima próximo à “munha” quando se queimou, diz que não havia nenhuma placa no local alertando seu perigo (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Enquanto os panelões cruzam a rodovia, os moradores tentam se organizar. Não fosse a união dos moradores impactados, que culminou com a Associação Comunitária dos Moradores de Piquiá de Baixo, as histórias das vítimas seguiria desconhecida. Como a Viviane, que tinha 9 anos na época do acidente. Ela brincava com uma prima próximo a um rio quando afundou na “munha” até a canela. “Não tinha aviso, não tinha segurança nem cerca. Imagina: um adulto não sabe diferenciar [“munha” e terra], você acha que uma criança consegue?”, pergunta a mãe, Vera Araújo, de 40 anos.

Viviane agarrou-se a uma folhagem espinhosa para tirar os pé dali  e gritar por ajuda. “Nunca vou esquecer dos pezinhos dela naquele dia. E esse sofrimento nunca vai acabar, porque as marcas continuam.” A união dos moradores resultou, ainda, na recente conquista do terreno onde os impactados serão reassentados em 312 casas. Um bairro novo longe da usina.


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