Grandes frigoríficos brasileiros que atuam tanto no mercado doméstico como no internacional compram gado de pecuaristas multados em regiões campeãs de desmatamento, e que hoje estão no epicentro das queimadas na Amazônia.
Uma das etapas do desmatamento, o fogo é usado para abrir espaço para as pastagens – como vem sendo reconhecido inclusive por autoridades das áreas afetadas. “É queimada de floresta para fazer pasto”, declarou o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), sobre os incêndios recentes no estado. Nove em cada dez focos de incêndio em áreas destinadas ao agronegócio aconteceram em pastagens para a criação de gado, segundo cálculos do Greenpeace com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Uma prova da relação entre desmatamento, queimadas e pecuária é a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, no Pará, unidade de conservação com o maior número de focos de incêndio registrados este ano. Os dois municípios que abrangem seu território, São Félix do Xingu e Altamira, ocupam, respectivamente, a 1ª e a 3ª posição no ranking dos campeões de queimadas. São Félix do Xingu tem o maior rebanho bovino do Brasil (2,2 milhões de cabeças de gado, de acordo com dados do IBGE de 2017).
Foi justamente nessa região que a Repórter Brasil identificou dois exemplos de como fazendeiros autuados por crimes ambientais conectam o desmatamento e as queimadas na Amazônia a empresas processadoras de carne com alcance mundial.
Um dos casos envolve o pecuarista Adriano José de Mattos. Em janeiro de 2019, fiscais do Ibama identificaram animais de sua propriedade pastando em uma área de 106 hectares derrubada ilegalmente dentro da APA. O local já havia sido embargado por desmatamento ilegal três anos antes. Segundo a fiscalização, a Fazenda Limeira, propriedade de Mattos distante três quilômetros dali, servia como base operacional para a exploração daquela área.
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No mês seguinte à autuação, o frigorífico Marfrig recebeu gado do produtor em sua unidade abatedora de Tucumã (PA). Os animais foram registrados como sendo provenientes da Fazenda Limeira, de acordo com documentos oficiais de controle de rebanho consultados pela reportagem. Outra grande indústria do setor, o Frigol, também adquiriu bois do pecuarista entre março e julho deste ano.
Procurada pela Repórter Brasil, a Marfrig afirmou que, na data da compra, ainda não havia informações públicas disponíveis sobre as autuações e embargos contra o produtor, apesar de a fiscalização ter ocorrido 26 dias antes. “Nós dependemos da disponibilização de informação no site do Ibama. Isso deveria ocorrer em tempo real”, afirma Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade do frigorífico. A Marfrig afirma ter compromisso com o desmatamento zero na Amazônia, monitorar via satélite todos os fornecedores e não adquirir gado proveniente de áreas embargadas por crimes ambientais (leia a nota da Marfrig na íntegra).
Atualmente, o site do Ibama informa que o embargo contra o pecuarista foi inserido na lista pública de áreas embargadas em 29 de janeiro – antes, portanto, da compra feita pela Marfrig. A Repórter Brasil entrou em contato com o Ibama para ouvir o posicionamento do órgão sobre a alegação do frigorífico, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.Já a Frigol afirmou à reportagem que adota “todos os controles necessários para evitar a aquisição de animais irregulares para abate em suas plantas industriais” e que afirma que não há ilegalidades na compra de gato de Adriano Mattos (leia a nota da Frigol na íntegra). Os pecuaristas não foram localizados para comentar.
Corte raso e multas
Maior empresa do setor, a JBS também atua na Terra do Meio, uma vasta região no sudeste amazônico que engloba o território da APA Triunfo do Xingu. Um de seus fornecedores, o fazendeiro José Ronan Martins da Cunha, foi multado pelo Ibama em abril deste ano. Ele foi responsabilizado por destruir, a corte raso, 50 hectares de vegetação nativa no interior da área de conservação. Além disso, foi autuado por impedir a regeneração natural da mata em uma área já previamente embargada por desmate ilegal.
Em julho de 2019, a unidade da JBS em Tucumã adquiriu gado do produtor. Os animais, segundo apurou a Repórter Brasil, seriam provenientes de outra fazenda, a Fazenda Barro Branco, de acordo com os registros oficiais. A propriedade está localizada fora da APA.
Em 2016, Cunha foi responsabilizado pelo emprego de mão de obra escrava na Fazenda JK, em São Félix do Xingu, durante uma fiscalização realizada pelo Ministério do Trabalho. Por conta disso, ele foi incluído na “lista suja” do trabalho escravo do governo federal, um cadastro público com nome os empregadores flagrados praticando esse tipo de crime. Eles permanecem por dois anos na relação, tendo seus nomes retirados se não há reincidência.
Diversas empresas – entre elas a JBS – se comprometem publicamente a não adquirir matérias-primas de produtores presentes na “lista suja”. O fazendeiro permaneceu no cadastro até abril de 2019. As compras da JBS identificadas pela Repórter Brasil ocorreram, portanto, após Cunha ter saído da lista.
Questionada pela reportagem, a JBS afirmou que não adquire animais de fazendas envolvidas com desmatamento, invasão de terras indígenas, embargadas pelo Ibama, ou que utilizam trabalho infantil ou em condições análogas à escravidão. A empresa disse ainda que “mantém um dos maiores sistemas privados de monitoramento de fornecedores do mundo, que abrange, por meio de análise de imagens de satélite das propriedades, cerca de 450 mil km²”.
Falta de controle
JBS e Marfrig são líderes globais na produção de proteína animal. Além de dezenas de abatedouros no Brasil, também possuem fábricas na América do Norte, Europa e Oceania. A internacionalização das empresas ganhou força durante os governos petistas, por meio de empréstimos milionários do BNDES. O governo brasileiro é um dos principais acionistas de ambas as empresas.
A Frigol, por sua vez, é o quarto maior frigorífico de carne bovina do Brasil, com abatedouros nos estados do Pará, Goiás e São Paulo e, segundo a empresa, exporta para mais de 60 países.
As três empresas declaram adotar políticas para abolir de suas compras o chamado “boi pirata” – ou seja, aquele produzido em áreas desmatadas sem autorização. No entanto, há desafios para concretizar essa meta. A falta de rastreabilidade dos animais permite que pecuaristas utilizem fazendas legalizadas para acobertar, por meio de falsas declarações de origem, a venda de bois criados em áreas ilegais. A prática é conhecida como “lavagem de gado”.
Além disso, diversos pecuaristas desmatadores vendem animais para outros fazendeiros, especializados na engorda final pré-abate. Os frigoríficos não possuem mecanismos eficientes para averiguar onde tais produtores adquiriram seus animais. No estado do Pará, JBS e Frigol assinaram um acordo com o Ministério Público Federal comprometendo-se com uma série de critérios para evitar gado proveniente de áreas com desmatamento ilegal, trabalho escravo, invasões de terras públicas ou de comunidades tradicionais. A mais recente auditoria do acordo divulgada pelo órgão apontou evidências de irregularidades em aproximadamente 19% das compras da JBS. No caso da Frigol, as irregularidades identificadas atingiram 31% do total das compras. Já a Marfrig não assinou o acordo, e, portanto, não se submeteu às auditorias. A empresa, no entanto, afirma que outras auditorias externas garantem a adequação das suas práticas aos compromissos de sustentabilidade assumidos.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil