“Com certeza eu pagaria pela minha cura, mas não tenho R$ 364 mil”, desabafa a bióloga Fabiana Sobral, de 41 anos, que há três meses aguarda no SUS pelas medicações contra a hepatite C.
Assim como a bióloga, cerca de 100 mil brasileiros diagnosticados com a doença chegam a esperar até um ano no SUS pelo tratamento. E o motivo é o alto custo dos medicamentos, especialmente do sofosbuvir. O remédio, que cura a hepatite C em 95% dos casos, é vendido pelo laboratório norte-americano Gilead aos órgãos públicos por valores entre R$ 65 e R$ 1.428 a cápsula, mas seu valor poderia cair para R$ 34 caso fosse produzido no Brasil e não importado.
O SUS chega a pagar até 42 vezes mais porque a Gilead possui desde janeiro a patente do sofosbuvir, o que lhe garante exclusividade de venda no mercado nacional. O monopólio é questionado por especialistas por impedir a concorrência, o que faria o medicamento ficar mais barato.
Um dos caminhos para driblar essa situação é aplicar o licenciamento compulsório, conhecido também como “quebra” de patente, quando se autoriza a fabricação local de um produto para ampliar a oferta no SUS.
E foi exatamente esse o pedido feito pela Defensoria Pública da União em outubro. Juntamente com oito organizações sociais, o órgão denunciou a Gilead no Cade, responsável por fiscalizar a concorrência no Brasil, por abuso econômico da patente do sofosbuvir. Se a decisão for favorável ao grupo e a patente for “quebrada”, o valor do remédio cairia para pelo menos R$ 34.
Seria a segunda vez que o Brasil aplica o licenciamento compulsório.
‘Quebra’ de patente no Brasil
A primeira foi em 2007, em uma ação que revolucionou o tratamento da Aids no país. “O [medicamento] efavirenz surtia efeito, mas o preço alto reduzia o acesso dos pacientes”, lembra Moysés Toniolo, membro da Comissão Nacional de Aids em 2007, quando o Brasil anunciou a “quebra” da patente do efavirenz.
Naquela época, eram detectados 35 mil novos casos de HIV por ano, e as compras do efavirenz, utilizado por 90% dos pacientes, consumiam 11% do orçamento do ministério com medicamentos.
Mas o governo não concordava em pagar ao laboratório americano Merck 1,59 dólar por comprimido, enquanto a Tailândia pagava 0,65 dólar, e o genérico custava 0,45 dólar na Índia. “Havia um risco alto de afetar gravemente o programa de Aids, então optamos pelo licenciamento compulsório”, lembra o ex-ministro José Gomes Temporão (2007-2011), em entrevista à Repórter Brasil.
Com a “quebra” da patente, que reduziu o preço para 0,45 dólar, o governo passou a economizar R$ 30 milhões por ano com o efavirenz, o que permitiu ampliar sua oferta no SUS e comprar outros medicamentos anti-HIV. Com isso, o número de pacientes em tratamento saltou de 75 mil, em 2007, para 230 mil em 2009.
“O curioso é que, dois anos depois, o presidente do laboratório [Merck] se desculpou publicamente pela postura da empresa e disse que o licenciamento compulsório tinha sido uma decisão justa do Brasil”, conta Temporão.
‘Abuso de preço’
Previsto no tratado internacional de propriedade intelectual (conhecido como Trips), o licenciamento compulsório pode ser aplicado quando há abuso econômico. Cerca de 20 países já “quebraram” patentes, tais como Canadá (637 vezes), Estados Unidos (105) e Itália (3), segundo levantamento do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GPTI). A legislação brasileira também autoriza a medida em casos de preço abusivo ou interesse público.
“A partir do momento em que a gente vê o abuso de preço do sofosbuvir, é mais do que justificado o licenciamento compulsório. Até porque o acesso universal ao tratamento da hepatite C, uma premissa do SUS, está sendo violado”, diz Felipe Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso a Medicamentos dos Médicos Sem Fronteira, que também assina a representação no Cade.
A ação aposta no órgão regulatório porque são poucas as chances de o licenciamento sair por iniciativa do atual governo. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, já disse ser contra. “Não é bom ameaçar quebras de patente. O país jamais deveria fazer isso. Temos de zelar pela inventividade e pelo tempo gasto na pesquisa”, afirmou em julho durante evento organizado por farmacêuticas multinacionais. Procurado via assessoria de imprensa, o ministro não respondeu à Repórter Brasil sobre o tratamento da hepatite C.
O caso do sofosbuvir é semelhante ao do programa de Aids, avalia Eloan Pinheiro, ex-diretora do laboratório público Farmanguinhos. “Assim como aconteceu com o efavirenz, existe sim interesse público para o licenciamento do sofosbuvir. O governo tem de pensar nos pacientes, ainda mais porque a hepatite C tem cura.”
Para o ex-ministro Temporão, “o atual governo não dá sinais de que está preocupado em defender a saúde pública frente à ganância dos laboratórios multinacionais”.
Negociação de preços
Entre 2015 e 2017, o preço do sofosbuvir negociado pela Gilead com o Ministério da Saúde foi de R$ 252 para R$ 160. Em 2018, o laboratório público Farmanguinhos e a farmacêutica nacional Blanver desenvolveram o genérico brasileiro por 8,50 dólares o comprimido (R$ 34 na cotação atual).
A compra do ano passado, convocada três semanas antes de a Gilead ter a patente confirmada, foi a única em que houve disputa de preços entre o laboratório dos EUA e a Blanver. O resultado foi o menor valor já praticado no Brasil, de R$ 64 por cápsula. “A tendência é baixar o preço quando tem algum nível de concorrência. Mas agora que receberam a patente, eles não serão ameaçados pelos competidores e poderão subir o valor”, diz Carvalho. As compras, contudo, não têm sido suficientes para atender todos os pacientes.
Meses de espera
O motorista Cássio Araújo, de 44 anos, aguarda pelo tratamento em São Paulo há sete meses. “Até agora não chegou. Eles alegam que o remédio está em falta e que estão distribuindo para quem deu entrada em outubro do ano passado”, diz, confessando que teme pelo seu quadro de saúde. O vírus da hepatite C ataca o fígado por vários anos e, sem tratamento, evolui para cirrose, câncer e até morte.
A saída encontrada por alguns pacientes para enfrentar a espera tem sido a Justiça. Esse é um dos planos de Araújo. “Vou esperar até dezembro pelos remédios. Se não chegarem, vou entrar com ação”. É neste cenário que o preço de um medicamento patenteado sobe ainda mais.
Nos últimos quatro anos, governos estaduais, municipais e hospitais públicos pagaram R$ 639 por comprimido para cumprir decisões judiciais. E o valor subiu ainda mais este ano após a patente ser concedida à Gilead, que vendeu o sofosbuvir ao município de São Vicente (SP), por meio de uma distribuidora, por R$ 1.428. A prefeitura nega o gasto, que no entanto está registrado no Banco de Preços em Saúde.
Procurada pela reportagem, a Gilead refutou “as acusações de prática abusiva de preços e exploração indevida da patente” e declarou que a concessão da patente foi “irrelevante no estabelecimento de preços”. Já o Ministério da Saúde informou que o envio de tratamentos aos estados está regular.
A Secretaria de Saúde de São Paulo afirmou que o ministério levou um ano para entregar os kits de tratamento previstos para 2018, quando o governo federal ampliou o tratamento para todos os pacientes, e não apenas para os casos mais graves. A secretaria justificou o valor mais alto porque suas compras “se dão apenas para atendimento a demandas judiciais e, neste caso, ocorrem de forma individual […] ao passo que a compra por parte do Ministério da Saúde se dá em quantidades maiores”. Leia os posicionamentos na íntegra.
Um dia após a Repórter Brasil procurar o governo paulista, a bióloga Fabiana Sobral recebeu a informação de que seu tratamento estava disponível.
“Minha cura está chegando”, comemorou. “Minha doença está avançada. Se não tomar a medicação em um ano, entro na fase de cirrose.”
Araújo, porém, continua esperando.