Em áudio inédito obtido pela Repórter Brasil, o prefeito de Santarém, Nélio Aguiar (DEM), afirma ao governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), que o incêndio em Alter do Chão foi causado por “gente tocando fogo para depois fazer loteamento, vender terreno” em área que tem “policial por trás”.
A gravação indica que Aguiar e Barbalho tinham ciência de que o local atingido, na região do Lago Verde conhecida como Capadócia, é “uma área de invasores”. No áudio, Aguiar diz que “tem policial por trás, o povo lá anda armado” e pede a intervenção não só do Corpo de Bombeiros, mas também da Polícia Militar para “identificar esses criminosos”. O contato teria sido feito no dia em que um incêndio de grandes proporções atingiu a Área de Proteção Ambiental de Alter, em 15 de setembro.
A fala do prefeito coloca em xeque o inquérito da Polícia Civil, que prendeu na última terça-feira (26) quatro voluntários da Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão, acusados de terem iniciado o fogo para angariar recursos com ONGs. Além disso, o áudio confirma linha de investigação do Ministério Público Federal, que aponta que a degradação ambiental em Alter do Chão seria provocada por grileiros interessados em vender lotes – e não pelos brigadistas.
Procurado pela Repórter Brasil neste domingo (1º), Aguiar confirma o envio do áudio a Barbalho, e diz que “o governo respondeu prontamente, ainda pela manhã do domingo [15 de setembro], quando estava ocorrendo o incêndio. Chegou Polícia Militar, chegou Corpo de Bombeiros e à tarde chegaram soldados do Exército”. Ele, no entanto, faz a ressalva de que, como prefeito, não pode fazer prejulgamento e nem dizer quem é culpado [pelo incêndio], já que isso é um papel da polícia ou da Justiça.
“Não afirmei que alguém teria tocado fogo no áudio que mandei para o governador, falei que é uma área de conflito desde 2015 e que tem uma pessoa foragida. Uma área perigosa, uma área de conflito e que a suspeita do incêndio era criminoso. Eu não sou polícia, sou prefeito, não tenho poder de investigação, nem de mandar na polícia”, afirmou.
Quando questionado sobre a prisão dos brigadistas, Aguiar afirma que como prefeito não poderia interferir em um inquérito da Polícia, destacando que a ordem de prisão partiu do Judiciário. “Executivo não tem que interferir no Judiciário”.
Aguiar também afirmou que foi um dos primeiros a chegar ao local das queimadas. “Fui o primeiro a chegar na área, encontrei os brigadistas, estavam só eles, umas 10 pessoas. E fomos lá ver se estavam precisando de ajuda, e acionei todo mundo para ajudá-los, sempre mantendo informado o governador, mandando áudios para ele”. O prefeito diz que também pediu que a Polícia Federal e a Polícia Civil investigassem a grilagem de terras e a especulação imobiliária em Alter do Chão.
A prisão dos brigadistas gerou reações de organizações da sociedade civil e também de autoridades. Dois dias após a prisão, o governador do Estado trocou o delegado da Polícia Civil responsável pelo caso e o Ministério Público pediu acesso ao inquérito.
Após a publicação da reportagem, o governo do Estado do Pará confirmou que recebeu o áudio de Aguiar. “Assim que recebeu a solicitação [do prefeito], o governador Helder Barbalho determinou que o Corpo de Bombeiros e a Polícia Militar dessem suporte à operação de combate ao incêndio – o que foi feito. Todos os recursos foram disponibilizados, inclusive aeronave de combate a incêndios florestais da PM”, diz a nota, destacando que a troca do delegado ocorreu porque o atual é especializado em crimes ambientais, o que não ocorria com o anterior. “É fundamental que o Estado chegue aos autores, que devem pagar pelos crimes cometidos”, ressalta.
Na quinta-feira (28), os quatro brigadistas foram soltos a pedido do mesmo juiz que havia autorizado a prisão, Alexandre Rizzi. No passado, Rizzi atuou como advogado de uma madeireira da família e, em 1994, chegou a criticar ação do Greenpeace na região.
Mesmo soltos, Rizzi determinou que os quatro brigadistas devem comparecer mensalmente à sede da Justiça em Santarém, não podem sair às ruas entre 21h e 6h, não podem deixar a cidade sem autorização por mais de 15 dias e terão que entregar os passaportes à Justiça.
O inquérito da Polícia Civil que levou à prisão dos brigadistas foi criticado por não trazer evidências de crime, levar a conclusões sem provas, tirar frases de contexto e citar correlações que não se sustentam. A Polícia Civil acusou os quatro brigadistas de “dano direto à unidade de conservação e associação criminosa”.
Grileiro foragido
Quando pediu acesso ao inquérito da Polícia Civil, o Ministério Público Federal emitiu nota afirmando que, na investigação federal, nenhum elemento apontava para a participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil. “Ao contrário, a linha das investigações federais, que vem sendo seguida desde 2015, aponta para o assédio de grileiros, ocupação desordenada e para a especulação imobiliária como causas da degradação ambiental em Alter”, diz a nota.
A investigação do MPF indica que os incêndios teriam começado em uma área invadida pelo grileiro Silas da Silva Soares, condenado pela Justiça Federal em 2018 e atualmente foragido. Soares foi condenado a seis anos e dez meses de prisão além de receber uma multa por instalar um loteamento urbano privado e promover desmatamento ilegal na região do Lago Verde.
Além da denúncia criminal contra o grileiro, tramita um processo civil iniciado pelo Ministério Público do Estado do Pará e enviado à Justiça Federal para obrigar a prefeitura de Santarém a fiscalizar e evitar a instalação de ocupações irregulares nas margens do Lago Verde.
O presidente Jair Bolsonaro, que em agosto acusou ONGs de “estarem por trás das queimadas na Amazônia”, usou a prisão dos brigadistas para voltar a culpar organizações da sociedade civil pelos incêndios. Na sexta-feira (29), Bolsonaro acusou o ator Leonardo DiCaprio de “dar dinheiro” para “tacar fogo na Amazônia”. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também usou politicamente o episódio dos brigadistas. No Twitter, Salles postou trechos de diálogos dos brigadistas interceptados pela Polícia Civil.
O fogo em Alter do Chão consumiu uma área equivalente a 1.600 campos de futebol e levou quatro dias para ser controlado por brigadistas e bombeiros.
Prisão de responsáveis pelo ‘Dia do Fogo’ também foi questionada pelo MPF
A cerca de 700 quilômetros de Alter do Chão, um ataque organizado para incendiar áreas de reserva ambiental em Novo Progresso – que ficou conhecido como o ‘Dia do Fogo’ –, também contou com uma operação da Polícia Civil que foi questionada pelo Ministério Público Federal.
Em 3 de setembro, três trabalhadores rurais sem-terra foram presos, a mando da delegacia de Castelo dos Sonhos, em operação que também ia na contramão da principal linha investigativa conduzida pela Polícia Federal, que apontava como principais suspeitos fazendeiros, madeireiros e empresários de Novo Progresso.
Conforme revelou a Repórter Brasil, a investigação federal concluiu que os organizadores do ‘Dia do Fogo’ compraram combustível e contrataram motoqueiros para incendiar a floresta – ação que demanda investimentos que não condizem com o perfil dos sem-terra detidos. Os responsáveis pelo ataque racharam os custos de combustível e se articularam por meio de grupos de WhatsApp.
Os três sem-terra ficaram detidos durante 50 dias e foram soltos após reportagem da Repórter Brasil revelar que os articuladores das queimadas eram pessoas poderosas da cidade. A soltura foi determinada pela juíza Sandra Maria Correia da Silva, do Tribunal Regional Federal, atendendo a um pedido do Ministério Público Federal. “Não entendo o motivo de estar presa”, disse Silvanira à Repórter Brasil em 23 de setembro, quando ainda estava na prisão de Novo Progresso.
Nota da redação: A reportagem foi atualizada às 17h45 para incluir nota do governo do Estado do Pará.