Falta de transparência do governo promove ‘apagão estatístico’ sobre desemprego

Principal medidor de demissões de trabalhadores com carteira assinada está com a divulgação suspensa pelo governo e dados do seguro-desemprego não são atualizados desde 2018. Pesquisa do IBGE passou a ser feita por telefone, mas instituto enfrenta dificuldade para coletar informações, principalmente no meio rural. Economistas criticam falta de transparência da gestão Jair Bolsonaro
Por Thais Carrança
 22/04/2020

Em meio à crise econômica gerada pela pandemia do coronavírus, os principais indicadores de desemprego e renda no país estão suspensos ou enfrentam problemas que podem comprometer sua divulgação. A situação é tão delicada que economistas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam estarmos “no escuro” e diante de um possível “apagão estatístico”, que compromete inclusive a elaboração de políticas públicas para minimizar os efeitos da crise econômica.

O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), indicador de contratações e demissões de trabalhadores com carteira assinada, não tem dados publicados desde janeiro deste ano — essa informação, que era divulgada mensalmente, foi oficialmente suspensa pelo governo em 30 de março, sem data para voltar. Um portal criado pelo governo com os dados referentes ao seguro-desemprego, que também é uma referência da quantidade de profissionais com carteira assinada demitidos, não é atualizado desde dezembro de 2018. 

Por fim, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, que abrange o mercado de trabalho formal e informal e revela a taxa de desemprego oficial do país, está sendo feita por telefone devido à nova doença e enfrenta problemas de coleta de dados — o percentual de pessoas que respondem caiu de 90% para 60%. Ainda não é certo se a pesquisa atingirá o rendimento necessário para ser mantida durante a pandemia, como afirmou à Repórter Brasil Cimar Azeredo, diretor-adjunto de pesquisa do IBGE. 

“O maior problema hoje é que estamos sem bússola”, diz Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV). “Houve uma piora geral de estatísticas do governo federal neste último ano e meio”, considera Pires. “Isso se deve a desinvestimento, falta de apreço pela informação e às vezes descuido”, avalia o pesquisador, citando não apenas a falta de dados referentes ao desemprego, mas também ao Bolsa Família e a ruídos nos números do balanço de pagamentos do país. 

Presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia Paulo Guedes dão coletiva de imprensa em meio à pandemia; economistas criticam falta de transparência do governo (Foto: Marcos Corrêa/PR)

“Os indicadores servem para conseguirmos entender em que magnitude a crise está afetando o emprego das pessoas e poder formular medidas de proteção e estímulo, não só agora, mas quando sairmos do isolamento também”, afirma Cosmo Donato, analista de mercado de trabalho da LCA Consultores, sobre a importância dos dados para a formulação de políticas públicas.

Neste cenário, os economistas avaliam que o governo deveria passar a divulgar semanalmente os pedidos de seguro-desemprego, a exemplo dos Estados Unidos, onde as requisições do auxílio somam 22 milhões nas últimas quatro semanas. 

No momento em que algumas cidades do país completam um mês de distanciamento social e de fechamento da maioria do comércio, o único dado que vem sendo divulgado pelo governo, em coletivas de imprensa, refere-se ao número de trabalhadores que tiveram redução de jornada e salários ou suspensão temporária do contrato, conforme permitido pela MP 936, editada em 1º de abril. Esses dados, no entanto, não refletem os trabalhadores com carteira assinada que foram demitidos ou os trabalhadores autônomos e informais que estão sem renda e sem poder trabalhar.

Ainda assim, no último dia 13, o secretário Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Bianco, disse que o governo passaria a divulgar o número desses trabalhadores em um site apelidado de “empregômetro”. A promessa era de que ele fosse lançado na semana passada, mas isso não aconteceu.

Até quinta-feira (16), os acordos para redução de jornadas e salários superavam 2 milhões, segundo o Ministério da Economia, e 37,8 milhões de CPFs haviam sido homologados pelo Ministério da Cidadania para receber o auxílio emergencial de R$ 600, conforme a Dataprev. Já a taxa de desemprego do primeiro trimestre tem previsão de ser divulgada pelo IBGE em 30 de abril.

Procurado, o Ministério da Economia não informou quando voltará a divulgar dados sobre os pedidos de seguro-desemprego, nem quando passará a divulgar de maneira sistemática, em sites de acesso público, os números relativos à suspensão ou redução de contratos além de informações atualizadas sobre os pedidos do auxílio emergencial.

“Em face da urgência para enfrentar a crise causada pela covid-19, a prioridade é a disponibilização tempestiva das soluções necessárias para o pagamento do benefício emergencial e do seguro-desemprego”, informou o ministério em nota.  Ainda segundo o órgão, “sem prejuízo da transparência, essas informações serão divulgadas em tempo oportuno.”

A Repórter Brasil questionou ainda por que o site Painel de Informações do Programa Seguro-Desemprego, lançado pelo governo em 2018, não é atualizado desde dezembro daquele ano. “A atualização do Painel de Informações do Programa Seguro-Desemprego foi descontinuada porque a quantidade de acessos ao sistema não justificava sua manutenção, a qual dependeria de emprego de pessoas e de recursos orçamentários”, informou. A pasta não respondeu às críticas, feita por economistas, de falta de transparência por parte do governo. Leia aqui a íntegra da nota

Caged suspenso

Apesar do silêncio do governo, notícias de trabalhadores perdendo seus empregos ou sofrendo redução de jornadas e rendimentos proliferam país afora.

Anne Elizzi Maria da Silva, de 20 anos e moradora do Recife, foi demitida em 6 de abril por chamada de vídeo do seu emprego de atendente de telemarketing de aluguel de veículos. Anna Patrícia Almeida, de 48 anos, foi demitida ao fim de março da escola na Zona Sul do Rio onde era auxiliar de secretaria, após se recusar a trabalhar presencialmente em meio à quarentena, com medo de infectar a mãe de 85 anos com quem mora. Saimon Dickel Schmidt, de 18 anos, foi demitido no dia 14 de seu primeiro emprego no sistema de arquivamento médico e estatístico de um hospital em Sapiranga, no interior do Rio Grande Sul.

Todas essas histórias virariam números no Caged, registro de contratações e demissões formais mantido pelo Ministério da Economia. Esses dados são enviados obrigatoriamente pelas empresas ao governo todos os meses. Desde o início de 2020, no entanto, os números do cadastro não são divulgados pela gestão Jair Bolsonaro.

Pandemia aumentará número de desempregados e demitidos, enquanto indicadores de mercado de trabalho do governo estão desatualizados ou enfrentam problemas (Foto: Jorge Araujo/Fotos Publicas)

O problema aconteceu com a migração do envio de dados pelas empresas de um sistema próprio do Caged para o eSocial, que unifica o envio de informações tributárias, previdenciárias e trabalhistas pelo setor privado ao governo. Com a mudança, ao menos 17 mil empresas deixaram de informar os dados de desligamentos em janeiro e fevereiro, segundo o Ministério da Economia. Diante do problema, a pasta comunicou em 30 de março a suspensão da divulgação dos dados do Caged por tempo indeterminado.

Sobre a situação, o Ministério da Economia informou à Repórter Brasil que “criou um grupo técnico para discutir metodologia de análise dos dados mensais do emprego formal” e “a expectativa é que o grupo apresente proposta para divulgação de dados mensais do emprego formal até o fim de maio de 2020”.

Ainda conforme o ministério, “o cenário de pandemia causada pela covid-19 tem dificultado a autorregularização de parte das empresas” que não preencheram devidamente os dados de admitidos e desligados no eSocial.

Pelo telefone

Já a Pnad Contínua teve a coleta presencial suspensa em meados de março, como forma de proteger os pesquisadores do risco de contaminação e transmissão do coronavírus. Na tentativa de manter a pesquisa, o IBGE está realizando a coleta por telefone, mas a taxa de resposta está em cerca de 60% na média nacional, segundo Cimar Azeredo, diretor-adjunto de pesquisa do IBGE, comparado a 90% quando a coleta era feita presencialmente nos domicílios.

“A Pnad Contínua não foi desenhada para ser feita por telefone, por ter perguntas longas e um questionário grande”, afirma Azeredo à Repórter Brasil, lembrando que outros países enfrentam problemas semelhantes. Além disso, diz o diretor, muitas pessoas não atendem à ligação do instituto devido à má experiência com serviços de telemarketing. E quando atendem, ficam com medo de passar informações, por temer golpes.

O IBGE também enfrenta problemas para conseguir os números de todos os 211 mil domicílios que compõem a amostra da Pnad Contínua. A maior dificuldade para contatar pessoas, segundo o porta-voz do IBGE, acontece no meio rural.

“O fechamento do mês de março sendo muito difícil e por isso foi postergado”, relata Azeredo. “Precisamos que a população entenda que ficar no apagão estatístico diante de uma pandemia é muito ruim, pois as pessoas que estão hoje organizando o combate à epidemia precisam de números.”

Conforme o diretor, ainda não é certo se todos os itens da Pnad poderão ser divulgados em 30 de abril “O problema não é só o tamanho da amostra, mas como ela está distribuída [regionalmente no país]. Temos uma Coordenação de Método e Qualidade que vai analisar isso”, diz Azeredo.

Ainda segundo o diretor, caso não seja atingida a qualidade necessária, a Pnad Contínua poderá até mesmo ser temporariamente suspensa. O instituto trabalha, porém, para lançar em breve uma nova pesquisa, chamada Pnad Covid, que deve levantar por telefone dados de saúde e de mercado de trabalho, com periodicidade possivelmente semanal. O novo levantamento, no entanto, ainda não tem data definida para começar a ser feito.

“Precisávamos de uma pesquisa com uma tempestividade menor, uma pesquisa pequena e com rapidez para ser feita por telefone”, diz Azeredo. “Pode acontecer inclusive, se tivermos uma avaliação de que a Pnad Contínua não está tendo o rendimento esperado, de ela ser desligada por um período, até o fim do distanciamento social. Mas isso não está fechado ainda, será uma decisão da área técnica, em consonância com a direção do IBGE.”

Desemprego em alta

Cosmo Donato, da LCA Consultores, calcula que a taxa de desemprego medida pela Pnad Contínua pode chegar a 13,5% em dezembro de 2020, com 14,5 milhões de desempregados, caso o Produto Interno Bruto (PIB) caia 3,5% este ano. Seriam quase 3 milhões de desempregados a mais do que em dezembro de 2019, quando a taxa estava em 11%, com 11,6 milhões de desocupados. Em fevereiro deste ano, último dado disponível, a taxa de desemprego estava em 11,6%, com 12,3 milhões de trabalhadores em busca de ocupação, mesmo antes da crise do coronavírus.

“É muito comum em momentos de crise, olhar estatísticas que são mais tempestivas”, diz Manoel Pires, do Ibre-FGV. “É possível medir rapidamente quantas pessoas estão pedindo seguro-desemprego, essa é uma estatística que nunca foi pública no Brasil e não tem porque não ser”, afirma.

O economista defende ainda que o governo passe a divulgar de maneira sistemática, na internet, os números de acordos para redução de jornadas e salários firmados no âmbito da Medida Provisória 936 e os pedidos do auxílio emergencial de R$ 600 à Caixa.

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