“Eu estou te pagando, te dando comida. Você é meu brinquedo e obedecerá a todos os meus comandos.” A empregada doméstica filipina Christine (nome fictício) lembra das frases que sua patroa lhe dizia para resumir o que viveu desde agosto do ano passado, quando chegou a São Paulo. Durante oito meses, ela diz que foi mantida presa em dois apartamentos próximos à avenida Paulista por Nadya Saeed Khalfan Dhuhai Alhameli, funcionária de alto escalão do consulado dos Emirados Árabes Unidos em São Paulo.
Trazida para o Brasil sem que soubesse para onde estava vindo, a filipina de 26 anos contou à Repórter Brasil que sofreu agressões físicas e verbais, foi proibida de sair do apartamento e obrigada a trabalhar em uma jornada exaustiva, sem nenhum dia de folga. Seu salário era pago no exterior e seu passaporte foi retido pela empregadora.
O caso pode vir a ser enquadrado como tráfico de pessoas e trabalho análogo ao escravo. Auditores-fiscais do trabalho do Ministério da Economia estão investigando a história de Christine para averiguar a possível ocorrência desses crimes. Até o momento, a fiscalização constatou problemas trabalhistas. “A empregadora não registrou a trabalhadora, não pagou o seu salário conforme é previsto na CLT e não fez qualquer registro de jornada”, diz a auditora-fiscal Livia Ferreira, coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo na Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo.
“É uma imigrante que não fala português, diante de uma empregadora que não cumpriu a legislação trabalhista. Isso aumenta em muito a sua vulnerabilidade”. Os auditores informaram ao Ministério Público Federal sobre o caso, que abriu um procedimento para investigá-lo em sigilo.
‘Se eu cortasse uma cebola errado, ela ficava doida e começava a gritar, dizia que eu era burra, estúpida’, lembra a filipina
A história de Christine não é a primeira de violações trabalhistas envolvendo empregadas filipinas em São Paulo. Em 2017, trabalhadoras trazidas pela agência Global Talent foram encontradas em situação análoga à escravidão, conforme revelou a Repórter Brasil. No ano seguinte, a Justiça do Trabalho condenou os diretores da empresa a pagarem R$ 2,8 milhões.
Procuradas, as advogadas de Nadya Alhameli, Tammy Mikaelian e Daniella Mikaelian, não responderam às acusações feitas por Christine à reportagem. Elas apenas afirmaram que sua cliente “repudia e nega as acusações direcionadas à Fiscalização do Trabalho” (leia a íntegra da nota enviada). A Repórter Brasil também procurou diversas vezes o consulado dos Emirados Árabes Unidos, sem resposta.
Jornada exaustiva e vigiada
Desde agosto de 2019 até abril deste ano, quando conseguiu fugir, Christine conta que era obrigada a trabalhar o tempo todo, mesmo quando sua empregadora estava fora de casa. Câmeras instaladas no apartamento eram monitoradas pela patroa, que dava ordens pelo celular. “Toda vez que ela me via na câmera, dizia para eu me mexer. Eu trabalhava todo o tempo em que ela estava acordada”, lembra a filipina.
Christine conheceu Alhameli nos Emirados Árabes. Mãe solo, deixou seus dois filhos na casa dos pais em Zambales, província no interior das Filipinas, e foi trabalhar no Golfo Pérsico em busca do sustento deles.
Uma agência de trabalho pagou suas passagens e prometeu que ela trabalharia como operadora de caixa, o que nunca aconteceu. Uma semana após Christine chegar à cidade de Ajmã, Alhameli pagou 9 mil dirhams (equivalente a cerca de R$ 13 mil) à agência. A empregadora prometeu ainda que pagaria 1,5 mil dirhams por mês à Christine (R$ 2,2 mil), e mais 500 dirhams (R$ 730) caso ela aprendesse a fazer comida árabe. Disse que ela trabalharia 8 horas por dia e teria um dia de folga por semana.
Mas as promessas não foram cumpridas. A filipina conta que começou seu confinamento forçado no país árabe. Ficou trancada em um cômodo da casa da família de Alhameli, na cidade de Abu Dhabi. Atrás da porta fechada, só havia um banheiro e uma cozinha, sem acesso aos outros cômodos da casa.
‘Toda vez que ela me via na câmera, dizia para eu me mexer. Eu trabalhava todo o tempo em que ela estava acordada’
A desculpa usada por Alhameli para manter Christine trancada era a de que os três homens da casa poderiam praticar violência sexual contra ela. Dizia que a situação era temporária, e que em breve elas iriam juntas para outro lugar. À espera de uma mudança, Christine aceitava a situação.
Três meses depois, a empregadora trouxe Christine para o Brasil. A filipina chegou legalmente ao país graças a um visto de cortesia concedido pelo Itamaraty, destinado aos trabalhadores domésticos de missões estrangeiras. Segundo documentos obtidos pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação, o visto foi concedido pelo Ministério das Relações Exteriores em junho de 2019 e renovado em março deste ano.
Chegada ao Brasil
Christine chegou em São Paulo em 18 de agosto de 2019. Logo após sair do aeroporto, a filipina foi obrigada a entregar seu passaporte para a empregadora. Nos 250 dias seguintes, Christine permaneceu a maior parte do tempo trancada nos dois apartamentos onde a funcionária do consulado morou, ambos próximos à avenida Paulista.
Dentro deles, Christine não podia fazer perguntas e era obrigada a seguir ordens sem questionar. “Ela dizia: ‘você não tem o direito de perguntar nada. Não pergunte, não pergunte’, era sempre assim”, lembra. “Senhora, aonde vamos? ‘Não pergunte’. Senhora, o que devo fazer? ‘Não pergunte’.”
As agressões eram constantes e tinham origem nos motivos mais banais. Em um dia, uma pizza queimada foi o motivo para que Alhameli empurrasse Christine contra a parede. Em outro, um gengibre picado no lugar de um alho fez com que Nadya ameaçasse agredi-la com uma tábua de cozinha. “Se eu cortasse uma cebola errado, ela ficava doida. Ela transformava as coisas pequenas em coisas grandes e começava a gritar”, lembra Christine. “Ela só gritava, dizia que eu era burra, estúpida”.
Enquanto passava por essas situações, Christine nunca viu a cor do dinheiro. Parte do seu salário era depositado diretamente dos Emirados Árabes para uma conta nas Filipinas. Já o pagamento adicional, prometido caso ela fizesse comida, jamais foi recebido.
Em SP, filipina nunca saia à rua
Se nos Emirados Árabes a porta trancada era justificada pela possibilidade de abusos, em São Paulo a desculpa era a segurança. “Às vezes eu perguntava se podia sair, mas ela me dizia que só estava me deixando em segurança, porque o Brasil era muito perigoso”, lembra Christine em entrevista à Repórter Brasil.
‘Você não tem cérebro, você não raciona, você nem parece gente’, era uma das agressões ouvidas pela funcionária
A filipina jamais havia pisado na calçada em São Paulo até o dia da fuga, e conta que suas únicas saídas eram aos domingos – de dentro da garagem para dentro de um supermercado, que ela nem sabe onde fica. Christine só saia de casa junto à patroa e dentro de um carro do consulado, que as buscava na garagem do prédio.
No caminho do mercado, Christine era abusada verbalmente por Alhameli. “Ela explodia de maneira absurda. Gritava ‘você não tem cérebro, você não raciona, você nem parece gente’”, lembra Daniel Brass, ex-motorista do consulado que acompanhava as duas nas compras.
Medo de abuso sexual
Christine decidiu fugir quando a empregadora disse que iria voltar aos Emirados Árabes por conta da pandemia do coronavírus e iria deixar Christine na casa de um amigo. O medo de sofrer abusos sexuais motivou a doméstica a fugir. De todas as maneiras que podia, tentou buscar contato com o mundo exterior. Sem conhecer nenhuma outra filipina no Brasil, ela conseguiu contato com o consulado do país em São Paulo pelo Facebook.
Christine conseguiu pegar a chave quando Nadya foi dormir, na noite do dia 23 de abril. Saiu pela porta somente com a roupa do corpo e com o seu celular, sem cobertura. Na esquina de casa, encontrou uma conterrânea com quem havia conseguido contato, intermediado pelo consulado das Filipinas. Já Alhameli viajou no dia seguinte para os Emirados Árabes, deixando as coisas de Christine para trás.
Christine disse que não sente vontade de permanecer no Brasil e quer retornar às Filipinas o quanto antes. Os auditores-fiscais e a Defensoria Pública da União buscam um acordo junto às advogadas da empregadora para que a volta dela seja viabilizada, além do pagamento de verbas trabalhistas e uma possível indenização.