Uma menina de não mais do que 5 anos mostra, chorando, a marca de uma bala de borracha em seu braço. Uma senhora segura os cabelos brancos para mostrar que foi atingida no rosto – um ferimento ainda sangrando -, além do braço. Um jovem ergue a camiseta e mostra as diversas feridas inchadas em suas costas.
Esse foi parte do saldo de um ataque promovido no domingo (21) por seguranças privados contratados pela mineradora Vale contra agricultores acampados em uma área na Fazenda Lagoa, na cidade de Parauapebas (PA), a 700 quilômetros de Belém. Cerca de 150 pessoas foram surpreendidas por balas de borracha disparadas à queima roupa e bombas de gás enquanto faziam orações — pelo menos 20 agricultores ficaram feridos.
Não foi a primeira vez que seguranças da empresa Prosegur, contratados pela Vale, agem contra trabalhadores rurais sem-terra na região. A cidade vizinha de Canaã dos Carajás foi palco de ao menos outros dois ataques violentos de seguranças da Prosegur. Em 2017, quatro deles foram indiciados por agredir um agricultor e seu filho cujas terras faziam fronteiras com área de propriedade da mineradora. Um ano antes, guardas contratados pelas duas empresas atacaram trabalhadores rurais com armas de fogo na Fazenda São Luíz, também em Canaã, onde havia um acampamento com 300 famílias – elas acabaram sendo despejadas. A Vale afirmou que houve invasão de propriedade no caso de 2016 e tentativa de invasão no de 2017.
A violência é um marco na região e tem hoje uma das maiores incidências de conflitos agrários do país, segundo o professor Giliad Silva, especialista em desenvolvimento agrário da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Para ele, a atuação da Vale contribui para esse cenário “O que acontece ali é a ponta de um problema maior que mostra a posição leniente do Estado frente a essas ações criminosas e está ligado à estratégia da empresa para ampliar sua produção. A violência promovida por funcionários da Vale também tem essa motivação”, analisa Silva.
Por trás dos conflitos na região, onde a Vale opera o maior projeto de extração de minério de ferro do mundo, está uma antiga disputa judicial entre agricultores e a Vale, que é acusada de ter adquirido irregularmente terras da União, o que a mineradora nega.
Para Luiz Jardim, geógrafo da Universidade Federal Fluminense, a mineração tem agravado a concentração fundiária e de renda e os conflitos armados no sudeste paraense. “As formas de apropriação de terra são diversas, seja em áreas que hoje têm a Vale como proprietária até casos de especulação fundiária por parte de grandes empresários locais que contam com milícias armadas”, afirma o professor, que coordena um levantamento sobre conflitos agrários e mineração, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“A Vale tem muito dinheiro e poder, então faz o que quer. Nós queremos apenas que nossos direitos sejam respeitados. Isso é muito cruel”, afirmou à Repórter Brasil Viviane Oliveira, presidente estadual da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) do Pará, que estava no grupo atacado no último domingo. “Já era noite quando começamos a ouvir os tiros. Todo mundo saiu correndo para se esconder. Quando baixava o barulho das balas, eu só ouvia as crianças chorando, perdidas no meio do mato. Pensei que ia morrer. Mesmo com o braço pra cima, eles gritavam ‘levanta a mão, vagabunda’ e diziam ‘corre que eu vou te atirar’, jogando os tiros na lateral, só pra me torturar.”
Procurada, a Vale afirmou que seus seguranças agiram em “legítima defesa”, já que eles foram chamados “depois que o grupo invadiu área da empresa e tentou instalar postes para ligação clandestina de energia elétrica” (Leia a nota na íntegra). A mineradora disse também que “sua equipe foi recebida a tiros de arma de fogo por um grupo de aproximadamente 40 pessoas” – o que os trabalhadores contestam. “Ninguém de nós estava armado”, diz Oliveira.
A situação só foi controlada com a chegada da Polícia Militar. Os trabalhadores registraram um boletim de ocorrência e o caso está sendo investigado pela Polícia Federal e pela Delegacia de Conflitos Agrários. O Ministério Público Federal abriu um procedimento administrativo vinculado à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Já a Fetraf denunciou o ataque ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
Disputas e drones
O ataque surpreendeu organizações de defesa dos agricultores não só pela violência, mas porque, segundo a CPT de Marabá, em 2019 foi assinado um acordo entre movimentos de trabalhadores, Vale e Incra para diminuir a tensão social e os conflitos agrários em áreas ocupadas por movimentos sociais, entre elas a Fazenda Lagoa, até que se encontre uma solução definitiva. “Por causa desse acordo recebemos com muito espanto a notícia desse ataque da Prosegur na semana passada. Todos os assuntos deveriam ser tratados na mesa de negociações”, diz Andreia Silvério, advogada da CPT.
O acordo estabelece as condições para a transferência das famílias para um assentamento, medida que ainda não foi cumprida e é questionada na Justiça pela Vale. Segundo o Incra, a Fazenda da Lagoa é de propriedade da Vale e não se qualifica para o Programa Nacional de Reforma Agrária.
A versão é contestada pelas lideranças rurais. Segundo Tony Araújo, advogado da Fetraf, a área é de propriedade da União e a Vale tem apenas uma decisão liminar a seu favor, não definitiva. Enquanto a disputa segue, nenhuma reintegração de posse pode ser feita e as famílias ali instaladas podem continuar a vender na feira de Parauapebas parte das hortaliças e frutos que cultivam, além da farinha de mandioca que produzem no acampamento.
Além do fato de os moradores acusarem a Vale de descumprir o acordo, eles afirmam ainda que, no mesmo dia do atentado, houve uma reunião com um representante da mineradora, chamado Denilson, que teria se comprometido a não criar nenhum incidente com os moradores. No encontro, os agricultores também protestaram contra o uso de drones para vigiá-los. A Vale não respondeu aos questionamentos referentes a esta reunião.
Maior produção, mais ataques?
A área da Fazenda Lagoa está próxima à estrada de ferro Carajás, que tem 900 quilômetros de extensão. Cerca de 120 milhões de toneladas de minério são escoados pela ferrovia por ano, que parte de Carajás com destino ao Porto de Ponta da Madeira, em São Luís no Maranhão. A ferrovia é fundamental para as exportações da Vale, que tem como cliente principal a China.
Segundo Giliad Silva, o professor especialista em desenvolvimento agrário, o objetivo da Vale no Pará é aumentar sua produção para compensar as perdas causadas pelos rompimentos de barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019). “Há conexões profundas entre essa estratégia global de funcionamento da empresa e a necessidade de compensar essas perdas ampliando a capacidade de produção e escoamento nas estradas de ferro dela.”
De fato, após o rompimento da barragem em Brumadinho, que matou 270 pessoas, a Vale anunciou que iria aumentar em 70% a produção no sul de Carajás, com repercussão direta na capacidade de escoamento. A mineradora trabalha para expandir a produção em Carajás de 90 milhões de toneladas por ano para 150 milhões de toneladas, segundo um anúncio feito a investidores internacionais.
As áreas potenciais para a exploração mineral na região estão localizadas dentro de um terreno disputado entre a Vale e os trabalhadores. Uma delas foi palco do ataque à Fazenda São Luíz, onde viviam 300 famílias. Por conta deste episódio, a Vale processou os trabalhadores atacados por crime ambiental, alegando que eles estariam invadindo uma Unidade de Conservação. Um deles acabou sendo condenado a pagar 10 cestas básicas.
Violência e problemas trabalhistas
Tanto no caso da Fazenda São Luiz como no ocorrido no último domingo, na Fazenda Lagoa, a Prosegur afirmou à reportagem que suas equipes agiram “em legítima defesa” e “dentro das normas regulatórias da atividade de segurança privada”. No entanto, segundo a advogada da CPT, o “objeto de trabalho desses guardas é a realização de segurança patrimonial e, portanto, não possuem atribuição para atuar em situações como essa.”
Maior empresa de segurança privada do Brasil e uma das maiores do mundo, a Prosegur foi fundada na Espanha e tem 160 mil funcionários espalhados por 26 países. No Brasil, ela enfrenta problemas trabalhistas e jurídicos. No Maranhão, é acusada de fraude trabalhista em plena da pandemia de coronavírus, envolvendo o auxílio emergencial do governo federal. Em outra ação relativa à covid-19, a Justiça fechou a sede da empresa em Eunápolis (BA), após casos de contaminação, afirmando que a Prosegur não tomou os cuidados necessários para proteger os funcionários da pandemia de coronavírus. O MPT pediu 10 milhões em indenização por danos coletivos.
Já no Rio Grande do Norte, a Prosegur foi condenada em 2016 a pagar R$ 1 milhão por impor jornada de trabalho acima do limite legal e desrespeitar a concessão de descanso semanal remunerado aos vigilantes. No Pará, a Prosegur foi condenada a pagar uma indenização trabalhista de R$ 8 milhões em uma ação coletiva de 600 ex-empregados. O Cade também investiga aquisições recentes da empresa de segurança, que tem concentrado ainda mais o mercado de segurança no Brasil.
Procurada, a Prosegur não comentou a afirmação dos agricultores de que, horas antes do ataque, um representante da Vale responsável pelas relações com a comunidade esteve com os moradores e prometeu que tudo seria resolvido de forma pacífica. A empresa também se recusou a responder se deu a ordem para o ataque do último domingo e não se pronunciou sobre os outros episódios violentos em assentamentos no sudeste do Pará.O MST afirmou, em nota, que o ataque do último domingo mostra como a violência no Pará tem sido usada como instrumento para impedir que os trabalhadores tenham direito à terra. “A paralisação da reforma agrária, a política de não assentamento das famílias acampadas e a falta de iniciativa do governo em solucionar conflitos é responsável por esse e por outros casos de conflito no campo no Brasil”. A advogada da CPT complementa que espera que a investigação identifique todos os responsáveis pela ação. “Uma violação de direitos humanos tão grave como essa não pode ficar impune”, afirma Silvério.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil