Confira a íntegra do roteiro do episódio Trabalheira #2

Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil, cujo objetivo é discutir o futuro do trabalho
 19/08/2020

Roteiro referente ao programa Trabalheira #2: O que Henry Ford diria da Uber?.

Carlos Juliano Barros

Ana, hoje a gente vai abrir o nosso podcast com uma dica cultural. Essa trilha… cabulosa que a gente tá ouvindo ao fundo – eu adoro essa expressão, cabulosa! –- é de um clássico do cinema italiano: “A classe operária vai ao paraíso”. Esse filme foi premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1972. Tem uma versão disponível no Youtube, inclusive. A resolução não é das melhores, mas quebra um galho. Eu recomendo muito!   

Ana Aranha

Filmaço mesmo, Caju! Aliás, a trilha sonora é do Ennio Morricone, talvez o maior compositor de trilhas da história do cinema. O Ennio morreu bem recentemente, em julho, aos 91 anos. A repercussão foi gigante. Ele também compôs a trilha do “Cinema Paradiso”, que é outro filme lindo!

Carlos Juliano Barros

Nossa, nem me fala no “Cinema Paradiso” que cai uma lágrima aqui só de pensar no Totó gritando: “Alfredo! Alfredo!” (Caju imita voz de criança). Inclusive, eu aprendi a tocar essa trilha do “Cinema Paradiso”, que a gente tá ouvindo, no xilofone de brinquedo da minha filha, Veridiana. Pense num homem orgulhoso, Ana!

Ana Aranha

(Risos) Não acredito! Dá pra ouvir isso?

Carlos Juliano Barros

Claro! Liberta, DJ!

Ana Aranha

(Risos) Meu Deus do céu. O Ennio Morricone ressuscitado! E que coisa gostosa essa risadinha da Veridiana!

Carlos Juliano Barros

Obrigado, Ana. Um beijo pra você, Veri, meu amor. Mas vamos voltar pro A classe Operária vai ao paraíso”. Esse filme é daqueles que fazem um retrato muito fiel de uma época ou, pra usar aquela palavra alemã que tá na moda, de um “zeitgeist”. Zeitgeist, pra quem não sabe, quer dizer “espírito do tempo”.

Ana Aranha

E o curioso é que “A classe Operária vai ao paraíso” foi lançado quando aquele mundo das grandes indústrias, da massa de operários organizados em sindicatos, estava começando a se desintegrar. Como a gente disse  no programa passado, o grosso da população mundial hoje está empregada no setor de serviços. Essa guinada – de uma economia que tinha como base a indústria pra uma economia baseada nos serviços – aconteceu na virada da década de 70 pra década de 80. Já vai aí meio século. É por isso que, quando a gente vê essas fábricas antigas, bate até uma nostalgia, né?

Carlos Juliano Barros

Pois é… Mas você tocou num ponto interessante, Ana, que gera um belo de um debate entre os estudiosos: será mesmo que a gente tá vivendo uma era “pós-industrial”? Quando a gente olha pra organização do trabalho no setor de serviços – que, como a gente disse, emprega hoje a maior parte das pessoas –, essa pergunta fica ainda mais difícil de responder. Um sociólogo americano chamado George Ritzer estudou o exemplo do McDonald’s e concluiu que a lógica industrial tá vivíssima na cadeia de produção do serviço de venda de Big Mac. Uma pessoa tira o pedido, outra frita o hambúrguer, outra monta o sanduíche. Até o consumidor na fila faz parte dessa linha de produção. 

Ana Aranha

É um bom ponto. E a gente pode estender esse raciocínio até trabalhos muito atuais, né? Sei lá: motorista da Uber, motoboy do iFood. O trabalho deles é tão milimetricamente programado pelo algoritmo que talvez nem seja tão diferente assim do trabalho mecânico do operário que ficava apertando parafuso. 

Carlos Juliano Barros

Exatamente! Bom, hoje a gente vai discutir como o trabalho vem sendo organizado desde o começo do século passado, pra tentar projetar o futuro. E aí a gente vai  mergulhar em alguns conceitos que até soam familiares, mas que muitas vezes a gente não sabe exatamente o que eles querem dizer  – por mais que eles invadam as nossas vidas, por todos os lados. Taylorismo, fordismo, toyotismo, uberização. Quais são as semelhanças – e as diferenças – entre esses sistemas de organização do trabalho? Como eles se entrelaçam? Ou, como diz o título desse episódio, tentando fazer um exercício de imaginação que atravessa um século, o que Henry Ford diria da Uber? Eu sou o Carlos Juliano Barros, o Caju.

Ana Aranha

E eu sou a Ana Aranha. Seja bem-vinda/ bem-vindo a mais um episódio do Trabalheira, um programa da Rádio Batente. 

Carlos Juliano Barros

A Rádio Batente é a central de podcasts da Repórter Brasil. Sigam as nossas redes! Aqui no Trabalheira, o que a gente discute é o futuro do trabalho.

Ricardo Antunes

Uma fábrica metalúrgica nos anos 70, 80, no ABC Paulista, era uma cidade. Milhares de trabalhadores trabalhando, com ruas. Às vezes, tinham praças. A Volkswagen tinha delegacia e prefeitura, entende? Essa fábrica rígida, com uma linha de montagem que o Chaplin tão magistralmente caricatura no plano fílmico, na sua obra genial “Os tempos modernos”, essa planta não faz mais sentido porque ela cria uma produção em massa e uma crise pesada não dá vazão a essa produção em massa.

Carlos Juliano Barros

Esse é o Ricardo Antunes, professor de sociologia do trabalho da Unicamp. O comentário dele é uma definição muito didática sobre o famoso fordismo. E é bem sugestiva essa imagem que ele criou enquanto falava: as indústrias como verdadeiras “cidades” – com delegacia e até prefeitura! Outra característica fundamental do fordismo, que o Ricardo Antunes destaca, é a produção em massa. O fordismo pressupõe a formação de estoques gigantescos e, muitas vezes, desnecessários. 

Ana Aranha

A gente pode dizer então que, essencialmente, o fordismo era um regime de desperdício, né, Caju? Mas, antes de falar do Henry Ford, eu acho importante contar a história do Taylor – que era pouca coisa mais velho que o Ford. Até porque os especialistas no assunto costumam falar em taylorismo “barra” fordismo.

Carlos Juliano Barros

Durante muito tempo eu achei que taylorismo e fordismo fossem a mesma coisa, sabia, Ana? 

Ana Aranha

É porque, em última instância, são duas formas de organizar o trabalho que se complementam, né? Mas há algumas diferenças também. 

Carlos Juliano Barros

Saquei. Manda bala!

Ana Aranha

Vamos passar então à história do Taylor, que se chamava Frederick Winslow Taylor. Ele nasceu em 1856, nos Estados Unidos, e era de uma família bem rica. Quando ainda era muito jovem, o Taylor desistiu da universidade… pra trabalhar na metalúrgica de uns amigos da família dele.  

Carlos Juliano Barros

Nossa… por um momento eu tive a impressão de que ele iria abandonar tudo pra virar um líder operário e fazer a revolução.

Ana Aranha

De fato, ele fez uma revolução. Só que foi um outro tipo… Digamos que não foi uma revolução que deixou os operários muito contentes, não (Risos). 

Carlos Juliano Barros

É… acho que é por aí mesmo.

Ana Aranha

Se fosse pra definir o Taylor em uma imagem, a mais apropriada seria a de um gerente segurando o cronômetro pra marcar quanto tempo um operário leva ao completar cada tarefa. No tempo dele de fábrica, o Taylor chegou à conclusão de que podia aumentar (e muito!) a produtividade, se o trabalho não dependesse apenas da iniciativa do operário. Esse termo – iniciativa – é muito usado pelo Taylor nos livros que ele escreveu sobre o assunto. Daí, ele bolou essa ideia de subdividir o trabalho em tarefas muito simples e passou a medir no ponteiro do relógio o desempenho dos trabalhadores em cada tarefa. Ele dizia que o seu sistema era a “administração científica” do trabalho.

Carlos Juliano Barros

Inclusive, no nosso filme “A classe operária vai ao paraíso” tem  uma cena exatamente assim: o gerente com um cronômetro medindo em quanto tempo os operários fazem os seus trabalhos.

Ana Aranha

Isso! É logo no comecinho do filme, né? E o Lulu, o coitado do protagonista, fica tão viciado em bater metas, que depois de um tempo chega a olhar pra ferramenta de trabalho dele, o torno mecânico, como se fosse outra coisa… Vamos dizer que ele praticamente começou a sensualizar com o equipamento. Claro que não ia acabar bem. Como você disse na abertura, esse filme é dos anos 70, mas não ficou velho, não. Bom… e o Taylor, como inventor de um sistema que tava claro que era promissor, ficou famoso e foi dar “consultoria” pra muitos donos de indústria da época. 

Carlos Juliano Barros

“Consultoria” é ótimo. Hoje em dia todo mundo é consultor – ou coach. Quer dizer que a culpa é do Taylor, então? 

Ana Aranha

Talvez. (Risos). E aí nós chegamos ao Henry Ford, que era só sete anos mais novo que o Taylor. O Ford era praticamente um Professor Pardal – um inventor. Ele começou a trabalhar em oficina aos 16 anos e montou o primeiro calhambeque com menos de 30.

Carlos Juliano Barros

Risos. Que detalhe brega dessa buzina! Confesso que gostei… Mas o que o Ford fez de diferente do Taylor?

Ana Aranha

A maior inovação que o Ford propôs foi a linha de montagem – aquela esteira que transportava as peças e colocava uma ordem nas etapas de fabricação dos carros. Você sabe que ele se inspirou nos frigoríficos de Chicago, né, Caju? 

Carlos Juliano Barros

Opa, claro que eu sabia! Agora é a hora do autojabá: eu sou um dos diretores de um documentário sobre trabalhadores em frigoríficos chamado “Carne Osso”. Dá pra achar fácil o filme no site da Repórter Brasil.  

Ana Aranha

Ótimo documentário mesmo. Conheço uma pessoa que ficou tão chocada com as condições de trabalho que aparecem nesse filme que virou vegetariana depois que assistiu. 

Então, voltando ao Ford, ele se baseou no sistema de “desmontagem”, vamos chamar assim, dos bois nos abatedouros – isso mesmo, separar peça a peça esses animais. Esse processo de desmontagem dos bichos foi idealizado pelo Gustavus Franklin Swift. Sim, é esse Swift mesmo que você conhece – aquela marca de carne bem conhecida. 

Carlos Juliano Barros

Olha… disso, eu não sabia! Só sei que hoje a Swift faz parte do grupo JBS, do Joesley Batista, aquele mesmo que grampeou o ex-presidente Temer. Impressionante como as marcas se MANTÉM ao longo do tempo, né, Ana?

Ana Aranha

É… “Tem que manter isso aí, viu, Caju?” 

É a prova de  que o sistema do Ford deu muito certo. Antes, a montagem do chassi de um automóvel era feita por uma única pessoa. Na linha de montagem do Ford, essa tarefa passou a ser realizada por 84 operários. Daí, o tempo de montagem do chassi caiu de 12 horas e 8 minutos pra… 1 hora e 33 minutos. 

Carlos Juliano Barros

Rapaz… Então, Ana, eu fiz a pergunta que é o mote do  nosso episódio de hoje – “O que o Henry Ford diria da Uber?” – pra Ludmila Abílio, uma pesquisadora que tem se destacado bastante pelos estudos sobre a uberização do trabalho. 

Ludmila Abílio

Quando você falou pra mim, a pergunta seria: “o que o Ford diria da Uber?” É engraçado. Essa questão dá muito pano pra manga. A gente não está discutindo só uma forma específica de organização do trabalho. O Gramsci falava que o fordismo é um modo de vida. Então, a gente está discutindo a subjetividade, os valores, as regulações do trabalho, as formas de consumo. A gente está discutindo tudo…

Ana Aranha

Cara, eu gosto muito da Ludmila. E gosto antes dela virar modinha, viu? Ela fez um estudo incrível sobre as revendedoras da Natura, que são uma espécie de embrião da lógica da uberização aqui no Brasil.E eu acho que essa fala dela foi bem na mosca, Caju. O fordismo é mesmo um modo de vida. O próprio Ford tinha uma frase icônica: “Você pode escolher a cor do carro que quiser, desde que seja preta”. E as pessoas entraram de cabeça nesse mundo de consumo em massa de produtos totalmente padronizados. Mas, se a gente fizer uma comparação com os produtos de hoje em dia, em que muita coisa é customizada, essa ideia do Ford soa fora de moda. 

Carlos Juliano Barros

Essa ideia do fordismo como “modo de vida” me faz pensar em vários exemplos. Eu gosto muito de futsal e lembro daquele time importante que a GM montou e que não existe mais. Aliás, todas as grandes indústrias tinham clubes imensos pros trabalhadores – era esse lance das massas mesmo. Além disso, o fordismo dava estabilidade pro trabalhador, né? Eu fico pensando na geração dos nossos pais, ou dos nossos avós, que se acostumaram a trabalhar por décadas e décadas numa mesma empresa. 

Ana Aranha

Sim, sim… Mas a Ludmila acabou não respondendo a pergunta, né? O que que o Henry Ford diria da Uber?

Carlos Juliano Barros

Respondeu, sim! É que a gente vai ouvir a resposta mais pra frente. Antes disso, a gente precisa falar de toyotismo.

Ricardo Antunes 

A indústria japonesa percebia, no pós-segunda guerra, que ela tinha, digamos assim, um obsoletismo, um ritmo lento, e estava num patamar muito inferior ao da indústria automotiva norte-americana e também europeia. E foi então que se desenvolve o chamado modelo toyotista, ou onista, onde, apesar de certa continuidade ao taylorismo e ao fordismo, ele trouxe elementos de descontinuidade, ou seja, de diferenças muito importantes. Por exemplo: um fundamento da indústria fordista é a produção em massa. A indústria toyotista não supõe a produção em massa. Ela supõe a venda comandando a produção. Ou seja, eu vendo o carro na agência, na concessionária de veículos, e a partir da venda – esse é o modelo ideal japonês – eu aciono uma tecla de começar a produção. Qual é grande sacada capitalista aí? Eu só produzo o que eu vou vender. Ou melhor, o que eu já vendi.

Ana Aranha

Então… parece que entrou na equação o cliente, não é isso?

A história do toyotismo, apesar de ser menos glamourosa – digamos assim – que a do fordismo, também traz reviravoltas bem interessantes. Esse sistema foi criado por um engenheiro chamado Taiichi Ohno – por isso é que o Ricardo Antunes falou em “onismo”. Só uma curiosidade sobre o Ohno: ele era filho de pais japoneses, mas nasceu na China. O toyotismo é que concebeu a ideia do “just in time” – ou seja, a venda é que comanda a produção, justamente pra evitar os estoques desnecessários. Por isso, inclusive, que o sistema pensado pelo Ohno também ficou conhecido como “produção enxuta”. Outro fundamento importantíssimo do toyotismo é a descentralização da produção.

Carlos Juliano Barros

O que você chama de descentralização é terceirização?

Ana Aranha

Mais ou menos por aí… Só que há algumas peculiaridades no modelo da Toyota que acabaram funcionando só no Japão mesmo. Por exemplo: a empresa tinha um núcleo duro – uma minoria de funcionários muito qualificados e bem remunerados. Esse grupo conhecia em detalhes todo o processo produtivo. E, acredite se quiser, eles tinham emprego vitalício!

Carlos Juliano Barros

Nossa! Isso é contraintuitivo, né? Uma empresa oferecendo um emprego pra sempre… Enfim, o que mais tinha de diferente no toyotismo?

Ana Aranha

Olha, ao contrário do taylorismo “barra” fordismo, em que cada operário desempenhava uma função muito específica na linha de montagem, foi o toyotismo que criou a figura do trabalhador multitask, o multitarefa, que operava várias máquinas ao mesmo tempo. O multitarefa está bem dentro do nosso “zeitgeist”, pra usar de novo esse termo que você gosta, Caju.

E sem falar no lance dos ciclos de controle de qualidade, em que os trabalhadores eram estimulados a dar pitaco sobre o processo produtivo. No fordismo, por exemplo, isso não acontecia. Era uma função que cabia só aos gerentes. Os papéis eram muito delimitados. 

Carlos Juliano Barros

Uma aula sobre toyotismo, hein, Ana! E pegando o gancho dos seus comentários, eu lembrei de um exemplo que ilustra bem a diferença entre toyotismo e fordismo: a Fordlândia. A Fordlândia ficava ali às margens do rio Tapajós, no Pará. Pra quem nunca ouviu falar dessa história, ou pra quem só tem uma lembrança vaga, a Fordlândia foi um megaempreendimento, idealizado pelo próprio Henry Ford, nos anos 1920, pra produzir borracha a partir do látex das seringueiras da Amazônia. 

Ana Aranha

Essa história é uma loucura total, né? O Ford não queria ficar refém da borracha produzida pela colônias da Inglaterra, principalmente na Malásia. Aí ele teve uma ideia faraônica: construir uma cidade e uma fábrica no meio da Amazônia paraense. As coisas caminharam relativamente bem até meados da década de 40, quando inventaram a borracha sintética. Aí a Fordlândia não aguentou a pressão. Mas, inacreditavelmente, ela ainda existe! É um museu a céu aberto: os prédios da Igreja, da fábrica, as casas de arquitetura tipicamente americana tão lá até hoje. Caindo aos pedaços, mas tão lá… 

Carlos Juliano Barros

Já que a gente começou nosso podcast de hoje com uma dica cultural, vamos também dar uma dica de turismo: visite Fordlândia, no Pará! É uma viagem no tempo… 

E, unindo a ponta turística com o nosso assunto no episódio de hoje, o que chama atenção no exemplo da Fordlândia é essa ideia de uma cadeia de produção altamente centralizada. Ou seja, o Ford se preocupava até mesmo com a produção da borracha dos pneus dos carros que montava. É como se, sei lá, a Toyota controlasse uma Pirelli ou uma Michelin da vida. É o exato oposto da lógica de terceirização que a Toyota criou e que predomina até hoje – ou seja, tentar produzir o mínimo possível por conta própria e contratar o maior número possível de “fornecedores”. 

Ana Aranha

É, assim como o “consultor”, o “fornecedor” também é um personagem dos dias atuais, né? Todo mundo é fornecedor. Até professor é chamado de fornecedor nas faculdades privadas… .

Carlos Juliano Barros

Exato. Sei bem disso… inclusive a parte do atraso no pagamento dos fornecedores. Essa é a deixa perfeita pra gente finalmente entrar, então, na uberização. 

Ana Aranha

Impressionante como esse assunto cresceu nos últimos tempos, né? E já que você adora fazer jabá, Caju, aproveita e faz uma propaganda do “GIG”, que esse merece! 

Carlos Juliano Barros

Boa, Ana! Pra quem se interessar sobre o tema, a gente aqui pela Repórter Brasil fez  um documentário chamado “GIG – A Uberização do Trabalho”, que tá nas plataformas de Video on Demand (Net Now, Vivo Play, Claro TV) e no Canal Brasil. 

Ana Aranha

E o que é “gig” mesmo?

Carlos Juliano Barros

“Gig” vem de “gig economy”. As pessoas têm traduzido por “economia dos bicos”. “Gig” também é uma expressão muito usada pelos músicos – “Vou fazer uma gig, uma performance”. Ou seja, é a ideia de que o trabalhador é pago por um “job”, por uma tarefa específica.

Ana Aranha

Nossa, como a gente abusa das palavras em inglês, né? Mas vale a pena parar um pouco pra pensar nesse termo “job”, ele foi estudado num livro muito bom chamado “A corrosão do caráter”, escrito pelo Richard Sennett. Nesse livro, esse sociólogo americano fala da etimologia, da origem da palavra “job”. No inglês do século XIV, “job” queria dizer bloco ou parte de alguma coisa que podia ser transportada numa carroça, de um lado pro outro. Tem muito a ver com o sentido atual da palavra mesmo: as pessoas fazem partes, blocos do trabalho – nunca o trabalho inteiro.

Carlos Juliano Barros

A uberização é isso: pagamento por job, via aplicativo. Pode ser uma corrida, uma entrega, uma faxina. É por isso que muita gente fala também em “neotaylorização” do trabalho. É uma neotaylorização possibilitada por um avanço sem precedentes da tecnologia digital, do smartphone, da inteligência artificial, etc e tal. 

Ana Aranha

Esse lance do pagamento por “job”, em que a pessoa não tem salário fixo por semana ou por mês, faz pensar também na tal da “estabilidade”. Como a gente já falou, a noção de estabilidade tem tudo a ver com o fordismo. E o ápice do fordismo coincidiu com o auge do famoso Estado de Bem Estar Social, com garantia de direitos sociais e trabalhistas. Na Europa, principalmente, o Estado de Bem Estar Social foi realmente muito forte. Mas no Brasil a informalidade sempre foi uma marca do nosso mercado de trabalho, né? A Ludmila Abílio tem uma visão bem interessante sobre esse assunto.

Ludmila Abílio 

Tem toda uma discussão sobre o desmanche do bem-estar social… Nós não consolidamos um Estado do bem-estar social aqui. Estabilidade para quem? Quem teve essa estabilidade e está perdendo? Eu venho tratando da uberização pensando que ela é uma generalização de características tipicamente periféricas do trabalho. Que é essa total ausência de proteção, garantia, de qualquer regulação sobre o trabalho, e onde você joga para o indivíduo toda a responsabilidade pela sua sobrevivência. Você não tem uma rede de proteção social. Isso é constitutivo da nossa história. Mas mesmo assim isso está se transformando…

Carlos Juliano Barros

É interessante como as coisas parecem se repetir ao longo da história. No século XIX, o Karl Kautsky, um pensador tcheco, dizia que a Nestlé tinha se transformado no maior laticínio do mundo sem criar nem uma vaca. Isso porque a Nestlé monopolizava a compra de toda a produção de leite dos camponeses pra fazer o processamento industrial. Mas os camponeses arcavam com todos os custos e os riscos da produção do leite: eles entravam com a terra, com os animais, com as ferramentas, com a mão de obra da família. Se a gente pensar bem, o que a Uber faz hoje em dia não é tão diferente. Assim como a Nestlé virou o maior laticínio do mundo sem criar nem uma vaca, a Uber virou a maior empresa de transporte de passageiros do planeta sem ter nenhum carro. A responsabilidade é toda transferida pro motorista. 

Ana Aranha

Taí um um ótimo paralelo. Isso me lembrou uma reportagem da BBC Brasil que contava a história de um casal, ambos motoristas da Uber, que só se encontravam na garagem da casa deles. O carro rodava 24 horas, cada um dirigia 12 horas do dia.

Carlos Juliano Barros

Impressionante! E essa reportagem me lembrou aquele filme do Ken Loach, “Você Não Estava Aqui”. Recomendo, aliás! O coração do sistema da Uber é a ideia de que o aplicativo está apenas conectando, de um lado, consumidores que demandam um serviço, e, de outro, profissionais supostamente autônomos que oferecem esse serviço. Ou seja, a Uber foge do compromisso de que os motoristas são seus empregados assim como o diabo foge da cruz. O Victor Filgueiras, professor de economia da Universidade Federal da Bahia, pesquisa esse assunto há muito tempo.  

Victor Filgueiras 

Um elemento central das estratégias atuais é matar o mal pela raiz. Matar a regulação, o mal pela raiz. Por quê? Porque se você mantém a relação assalariada explícita, se você aceita que o cara é seu empregado, você vai ter que discutir uma série de limitações que são inerentes àquela condição que você admitiu. Você vai ter que discutir salário, jornada, condições ambientais, saúde e segurança do trabalho, negociação coletiva. No momento em que vc diz que aquele cara não é assalariado, vc matou pela raiz o problema. Por quê? Porque vc não tem que seguir regra nenhuma. Faz o que bem entender. Você usa o mercado de trabalho como elemento coercitivo contra o cara, a seu favor. 

Ana Aranha

As plataformas definem o preço do serviço, controlam todo o processo de trabalho e até aplicam punições, caso o trabalhador descumpra alguma regra. Então, fica difícil acreditar nessa tese de que não existe nenhum vínculo e de que os trabalhadores são realmente autônomos. Mesmo que o motorista ou o entregador, pra usar os exemplos mais comuns, tenham liberdade pra aceitar ou não uma corrida e fazer o próprio horário…

Carlos Juliano Barros

Sim, e até porque, Ana, na prática tem muita gente mesmo vivendo só disso – o dado mais confiável é o de uma pesquisa do ano passado do IBGE que estimou quase 4 milhões de brasileiros trabalhando para aplicativos.

Ana Aranha

Você falou que essa pesquisa é de 2019, ou seja, antes da pandemia do coronavírus. Hoje esse número deve ser maior, né?

Carlos Juliano Barros

Com certeza… E tem outra coisa: é comum as pessoas trabalharem 10, 12, 14 horas por dia. Então, esse papo de que o bico no aplicativo é só para complementar o orçamento também parece pouco convincente.  

Ana Aranha

sim … E essa discussão sobre vínculo empregatício entre aplicativos e trabalhadores tá pegando fogo no mundo todo. Na França, por exemplo, um tribunal superior reconheceu em março deste ano que existe vínculo, sim, entre as plataformas de transporte e os motoristas.

E na Califórnia, berço das maiores startups de tecnologia, também foi aprovada uma lei que estende aos trabalhadores de aplicativos algumas garantias mínimas que os empregados formais têm. 

Com base nessa lei, inclusive, um juiz do Tribunal Superior de São Francisco determinou agora no dia 10 de agosto, que a Uber registre os motoristas como empregados – e não como autônomos. A Uber tá chiando e tá ameaçando até deixar de operar na Califórnia se essa decisão realmente entrar em vigor.

Carlos Juliano Barros

Aqui no Brasil, vem rolando uma série de decisões conflitantes na Justiça do Trabalho. No caso dos entregadores, já teve sentença em primeira instância que reconheceu o vínculo da Loggi – um aplicativo de entrega – com os motoboys. Mas, olha que curioso, uma outra sentença, também em primeira instância, não reconheceu o vínculo do iFood com os motoboys. Uma contradição danada… No caso dos motoristas, a discussão parece um pouco mais adiantada: já rolou uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho afirmando que não existe vínculo entre aplicativo e motoristas. Mas esse debate não deve se esgotar tão cedo e muito provavelmente vai subir pro STF, o Supremo Tribunal Federal. 

Ana Aranha

E há quem queira encontrar um meio-termo, digamos assim, entre o autônomo e o empregado com carteira assinada. A Tabata Amaral, deputada federal pelo PDT de São Paulo, apresentou um projeto de lei agora em julho para criar um novo regime de trabalho, paralelo ao da CLT: o trabalho sob demanda. Na prática, os trabalhadores sob demanda teriam alguns direitos bem básicos, como piso salarial e seguro-desemprego. Já os aplicativos também teriam que cumprir algumas obrigações: contribuir para a Previdência, dar equipamentos de proteção individual, dentre outras coisas. E esse novo regime de trabalho sob demanda não se aplicaria somente a motoristas e entregadores. Ele poderia ser estendido aos aplicativos que oferecem serviços de garçons e de faxineiras, por exemplo.  

Carlos Juliano Barros

Regulamentar a relação entre trabalhadores e aplicativos é o assunto do momento mesmo, né? E só pra não perder o fio da meada sobre essa questão do vínculo, Ana, o Ricardo Antunes fez um comentário interessante sobre a decisão de uma juíza de São Paulo, que disse que os motoristas de aplicativo não são empregados porque eles seriam os donos dos, abre aspas, “meios de produção”. Curioso que ela usou uma expressão bem marxista nessa decisão. Vamos ouvir o Ricardo.     

Ricardo Antunes 

O trabalhador e trabalhadora da Uber, eles não dispõem dos meios de produção. Outro dia eu vi um comentário de um juiz dizendo “como o trabalhador tem os meios de produção, ele não é empregado”. É risível isso. O trabalhador e a trabalhadora da Uber tem os instrumentos de trabalho. Meio de produção é a riqueza – são as indústrias, o agronegócio, os bancos. Instrumento de trabalho é outra coisa.

Ana Aranha

É… me parece que essa juíza fez uma confusão básica de conceitos. Tá claro que o meio de produção, no caso de um aplicativo, é o próprio aplicativo – o algoritmo, a plataforma digital. O carro é só uma ferramenta de trabalho, como bem disse o Ricardo. 

Carlos Juliano Barros

Pois é… e essa discussão me lembrou da resposta que a Ludmila deu pra pergunta que serviu de mote pro episódio de hoje do Trabalheira – O que, afinal, o Henry Ford diria da Uber? Tô devendo essa… Pode soltar, Ana?

Ana Aranha

Claro! Liberta, DJ! 

Ludmila Abílio 

Talvez o Ford dissesse “nossa, eu não sabia… poxa, que boa ideia, você pode pedir pro trabalhador trazer sua própria ferramenta pra linha de fábrica”. Mas é muito interessante até onde chegou a transferência de riscos e de custos. A Uber simplesmente não detém nenhum dos instrumentos de trabalho que estão sendo ali postos pra funcionar todos os dias. Mas ela detém o meio de produção central, que eu venho falando em gerenciamento algorítmico. Ela detém o poder de controlar e determinar todas as regras do trabalho. Mas ao mesmo tempo vc transfere pro trabalhador um autogerenciamento de si. 

Ana Aranha

É… “é o tal empreendedor de si mesmo”, tão em voga hoje em dia. Consultor, fornecedor… E aí vêm as descrições de cargos que a gente vê pelo Linkedin: o pessoal se apresenta como CEO de MEI, Chefe na empresa Eu.

Carlos Juliano Barros

Tudo culpa do Taylor!

Ana Aranha

Coitado! Bom, a gente já falou demais por hoje, hein, Caju?! Vamos pra próxima etapa da nossa linha de produção de podcasts? No próximo episódio a gente vai tentar responder uma pergunta que mais parece um sonho: será que algum dia vamos trabalhar menos?

Carlos Juliano Barros

Demorou, Ana! Obrigado a todas e a todos que acompanharam a gente no programa de hoje. 

O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo pra Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.

O roteiro original é de minha autoria, Carlos Juliano Barros, com a colaboração da Ana Aranha. O tratamento de roteiro é da Paula Scarpin e do Vitor Hugo Brandalise.

A edição e a montagem são da Juliana Santana, da Clara Rellstab e da Mari Romano. A nossa música tema é composta pelo João Jabace, que também faz a finalização e a mixagem do programa. A coordenação digital é da Juliana Jaeger, e a distribuição é da Bia Ribeiro.

Sigam nossas redes, Repórter Brasil. E vale a pena dar uma conferida em outros episódios que já rolaram na Rádio Batente – não só do Trabalheira, mas também do nosso outro podcast, o Jornadas. Procura lá no feed da Rádio Batente, no seu tocador de podcasts preferido.

Valeu, Ana. Até o próximo episódio.

Ana Aranha

Tchau, Caju! Até o próximo!

FIM 

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