Confira a íntegra do roteiro do episódio Trabalheira #4

Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil, cujo objetivo é discutir o futuro do trabalho
 02/09/2020

Roteiro referente ao programa Trabalheira 4#: O trabalho dignifica ou danifica?.

Maguila

“Sempre eu falo em casa: igual a eu só eu mesmo… Eu não faço mal a ninguém, se eu não puder ajudar, eu não atraso ninguém, cuido da minha vida. E dou valor sempre a quem trabalha e vence na vida.”

Carlos Juliano Barros

Grande Adílson Maguila! Inegavelmente, uma figuraça, né, Ana?

Ana Aranha

Maguila é uma figura mesmo. E até hoje é o maior peso-pesado da história do boxe brasileiro! Aliás, não só brasileiro, mas sulamericano!

Carlos Juliano Barros

E sabe por que a gente abriu o programa com a voz inconfundível do Maguila?

Ana Aranha

Conta aí, Caju!

Carlos Juliano Barros

Porque reza a lenda que o Maguila fez uma adaptação maravilhosa daquele famoso ditado: “O trabalho dignifica o homem”. Eu bem que procurei esse áudio na internet, mas não achei, infelizmente. O fato é que nessa versão supostamente feita pelo poeta Maguila o ditado ficou assim: “O trabalho danifica o homem”. 

Ana Aranha

Genial, essa versão! Po, e no caso dele, danificou mesmo, né? Inclusive, infelizmente, ele anda com a saúde bem debilitada. Também… bater de frente com o Holyfield tá longe de ser o trabalho mais saudável do mundo. 

Carlos Juliano Barros

Aliás, essa licença poética do Maguila leva a gente a pensar sobre uma das possíveis origens da palavra “trabalho”. Há quem diga que trabalho vem do latim “tripalium” – que era uma ferramenta de três paus usada nas lavouras e que durante a Antiguidade serviu também como instrumento de tortura. Mais ou menos como o Hollyfield fez com o Maguila naquela luta de 1989… O próprio Maguila faz piada dessa história! Bom, pegando carona nos ensinamentos do campeoníssimo Adilson Maguila de que o trabalho não só dignifica, mas também danifica, o nosso episódio de hoje vai falar de ansiedade, burnout e de outras doenças geradas pelo trabalho. Problemas físicos também: dor de coluna, tendinite… 

Ana Aranha

É, não tá fácil pra ninguém. É celular apitando o tempo todo, metas inalcançáveis…. Correria pra cá, peso pesado pra lá… 

Carlos Juliano Barros

Vamos falar de tudo isso! Então, seja bem-vinda, seja bem-vindo a mais um episódio do Trabalheira, um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. Eu sou o Carlos Juliano Barros, o Caju. 

Ana Aranha

Eu sou a Ana Aranha. Aqui no Trabalheira o que a gente discute é o futuro do trabalho. Toda quarta-feira sai um novo episódio, no feed da Rádio Batente. Fica ligado também nas redes sociais da Repórter Brasil que sempre tem novidade bacana.

Carlos Juliano Barros

E já que a gente começou o programa falando do Maguila, um comentário rápido: lembrei da vez em que ele foi no Jô Soares e começou a falar inglês…  Olha, eu daria tudo pra ouvir o Maguila pronunciando a palavra “burnout”.

Maguila falando em inglês no Jô Soares

Ana Aranha

Pra começar a nossa conversa sobre problemas provocados pelo excesso de trabalho, eu vou contar uma historinha… a historinha do pardal de coroa branca.

Carlos Juliano Barros

Vixe! Virou podcast infantil agora?

Ana Aranha

Quando eu terminar você me diz se parece história infantil ou história de terror, ok?

Carlos Juliano Barros

Arrepiei aqui… vamo lá! 

Ana Aranha

O pardal de coroa branca é um pássaro da América do Norte com uma habilidade bem peculiar: ele consegue ficar acordado por até sete dias seguidos. Isso quando ele migra, e olha que não é uma voltinha no quarteirão, ele voa do Alaska até o México, quase 8 mil quilômetros… Que tal ficar uma semana sem dormir, Caju?

Carlos Juliano Barros

Pra quem tem filho pequeno, como é o nosso caso, essa realidade não tá tão distante assim… 

Ana Aranha

Taí uma verdade, em especial em tempos de quarentena, né? Mas a história do pardal de coroa branca ainda não terminou: a capacidade dele de ficar acordado por tanto tempo despertou a curiosidade do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Já faz um tempo que o Pentágono vem estudando o cérebro desse bicho.    

Carlos Juliano Barros

Agora eu arrepiei mesmo: por que que o Pentágono foi entrar nessa história?

Ana Aranha

Eles tão fazendo uns experimentos pra tentar criar um soldado que não durma.   

Carlos Juliano Barros

Rapaz… 

Ana Aranha

Sacou o toque de terror da história, né? Enfim, é com esse relato um tanto quanto sombrio que um autor americano chamado Jonathan Crary abre um livro excelente chamado “24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”. Basicamente, a tese do livro é a de que o sono é a última fronteira do mundo do trabalho. Quer dizer: num mundo em que tudo precisa tá eternamente disponível, funcionando 24 horas por dia, sete dias por semana, o sono é uma aberração do sistema. Tanto, que os americanos vêm dormindo cada vez menos, diz o livro. Enquanto no começo do século XX, o americano dormia dez horas por dia, em média. Hoje, dorme seis horas e meia. 

Carlos Juliano Barros

Durante a pesquisa pra esse episódio, Ana, eu li uma reportagem sobre um estudo feito por uma cientista brasileira chamada Monica Levy Andersen. Eu não imaginava, mas existem mais de 80 tipos de distúrbio do sono. E a geração Z – da molecada que nasceu a partir de 1990 – é a mais afetada. Por causa da internet, evidentemente. Outro ponto interessante levantado por essa pesquisadora é de que o consumo de bebidas que retardam o sono – os Red Bulls da vida – também é maior entre essa geração. Misturando com vodka na balada, então, aí é que a pessoa não dorme mesmo, né?

Ana Aranha

Putz, e ainda é perigoso pro coração, né? Mas enfim… aí, é claro que nesse mundo 24/7, que nunca desliga, a gente tá vendo um aumento nos casos de transtornos mentais . Eu tenho lido umas matérias sobre isso e os dados são realmente alarmantes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o Brasil é o país com a maior população de ansiosos do planeta. 

Carlos Juliano Barros

A USP –  a Universidade de São Paulo – também publicou duas pesquisas pouco tempo atrás, sobre o impacto do trabalho na saúde mental. Uma delas chegou à conclusão de que um em cada cinco brasileiros sofre de burnout – a gente vai falar disso jajá. 

E  o outro estudo mostrou que 78% dos entrevistados relacionaram algum tipo de sofrimento psíquico ao trabalho – ou à falta de trabalho. 

Bruno Chapadeiro

Com certeza, você tem exigências do mercado de trabalho que fazem com que a pessoa não possa se desligar nunca. 

Ana Aranha

Esse é o Bruno Chapadeiro – psicólogo e pós doutorando pela Unifesp.

Bruno Chapadeiro

Então, ela fica sempre estressada. Se a gente pensar, o conceito de estresse é algo vindo da fisiologia – você estressar ou utilizar mais um órgão do que outro. Então, aquela coisa que se fiz nos estudos de neurologia dos mecanismos de luta ou fuga, do corpo estar sempre preparado para lutar ou pra fugir, que antes acontecia em situações específicas, da ameaça iminente, essa ameaça – como ela está sempre sub-reptícia, ela está sempre ali pairando, a pessoa fica sempre estressada com isso, sempre em luta ou fuga pra dar respostas ao que esse mercado quer. Então, ela está num trabalho, mas procurando outro. Ou fazendo curso de especialização, pós-graduação, à noite ou aos fins de semana. E tudo isso é posto como nada mais que a obrigação dela.

Ana Aranha

A gente foi atrás do Bruno por causa de um artigo que ele publicou recentemente. Ele diz que o trabalho é central pra entender por que nossa saúde mental vem sendo tão impactada pelo que ele define como os “quatro cavaleiros do apocalipse”: o stress, a ansiedade, a depressão e o suicídio. 

Bruno Chapadeiro 

Por que os quatro cavaleiros do apocalipse? Porque, cada vez mais, vêm surgindo dados estatísticos e casos na rede pública sobre saúde mental. 

Bruno Chapadeiro 

A OMS em 2017 apontou que no Brasil a depressão já atinge 11,5 milhões de pessoas. Daria 5,8% da população, mais ou menos. E os transtornos relacionados à ansiedade já atingem 18,6 milhões – ou 9,3% da população.

Ana Aranha

E já que a gente entrou nessa parte dos números assustadores, ce tem ideia, Caju, da importância dos transtornos mentais nos pedidos de afastamento que chegam ao INSS?

Carlos Juliano Barros

Olha, Ana… o que eu sei é que essa não é uma pergunta com resposta simples, porque no INSS existem dois tipos de benefícios. Um que tem ligação direta com a ocupação da pessoa  – quer dizer, um problema de saúde que foi claramente causado pelo trabalho. E tem também um segundo tipo de benefício, o auxílio-doença que EM TESE não tem relação com o trabalho. Quando se fala em transtorno mental, muitas vezes os profissionais da saúde têm dificuldade pra apontar o nexo entre a doença e o trabalho.

Ana Aranha

Como assim?

Carlos Juliano Barros

Por exemplo: é simples comprovar que um trabalhador de uma indústria perdeu um dedo em uma máquina, concorda? Mas é bem mais complicado provar que ele desenvolveu uma depressão por causa do ritmo intenso dessa mesma máquina. Até porque muita gente tem medo de ficar estigmatizada, de perder o emprego.  

Bruno Chapadeiro

Se as pessoas ainda acham que visitar um psicólogo é coisa de louco, imagina assumir que podem estar perdendo as rédeas da sua própria vida, e os impactos que isso têm no trabalho, como perda de produtividade… num momento em que produtividade é o mote publicitário hoje em dia. Devemos ser corpos produtivos a todo tempo.

Ana Aranha

Faz todo sentido mesmo. Eu conheço muita gente que acha que psicólogo só serve pra situações limite… tipo o cara que está em vias de virar o Coringa, o inimigo perturbado do Batman… Aliás, o último filme sobre o Coringa, com o Joaquin Phoenix, levantou toda uma discussão sobre isso, né, sobre sofrimento mental e tratamento.

Carlos Juliano Barros

Além de ser um filmaço…

Ana Aranha

Mas voltando à nossa realidade e à questão dos afastamentos do INSS. O curioso é que nas duas situações em que o órgão concede o benefício – tanto quando o auxílio-doença TÊM relação direta com o trabalho, assim como quando ele NÃO TÊM relação – os transtornos mentais estão entre as doenças que mais afastam pessoas. Mas a gente mergulha nessa história daqui a pouco.

Carlos Juliano Barros

Beleza! Outro estudo muito impressionante fala especificamente sobre burnout – aquela palavrinha que eu queria ouvir na voz do Maguila. Essa pesquisa se baseou numa amostra bem grande de pessoas, foram mais de 6 mil entrevistados. E a conclusão é de que um em cada cinco brasileiros sofre de burnout. 

Ana Aranha

Cara, é impressionante, mesmo… Mas, antes de a gente seguir nessa conversa, Caju, acho que vale explicar o que exatamente é burnout. Qual é a diferença, por exemplo, entre burnout e depressão?

Carlos Juliano Barros

Boa pergunta, Ana! A diferença é que o burnout – o esgotamento total, numa tradução meio mambembe – é causado especificamente pelo trabalho. Já a depressão pode ter outros motivos pra além do trabalho. O burnout apareceu na literatura médica pela primeira vez na década de 70. A coordenadora desse estudo, a Dra. Carmita Abdo, que é médica psiquiatra da USP, também topou falar com a gente. E ela contou que o burnout é uma doença que tem três níveis.  

Carmita Abdo 

O que significa estar acometido em grau um, dois ou três? Significa, primeiro, estar em exaustão, que é o primeiro grau. Na sequência, se a pessoa não se cuida, ela passa a se sentir despersonalizada e a agir de forma despersonalizada, o que é chamado de cinismo, inclusive, em outras línguas. Ou seja, fica uma pessoa estranha, indiferente ao que está acontecendo, não reage adequadamente ao que está diante de si. (…)

Carmita Abdo 

E o terceiro e último grau, que pressupõe não que os outros elementos tenham desaparecido, mas que eles permanecem acrescidos de mais uma terceira condição, que é a completa falta de reação. É uma incompetência total para o trabalho e uma falta de energia de tal ordem que a pessoa não consegue mais exercer seu cotidiano.

Carlos Juliano Barros

O que tem de gente cínica – e pifada – por aí é uma grandeza.

Ana Aranha

Nem me fala, é o que mais tem.

Carlos Juliano Barros

Na verdade, os dados levantados pela pesquisa da Dra. Carmita são ainda mais graves. 

Ana Aranha

Nossa, dá pra ser mais grave que isso?

Carlos Juliano Barros

No fundo do poço sempre tem um alçapão, né, Ana? (Risos) Como eu já disse, um quinto da população já tá no estágio mais crítico do burnout. Mas metade do população brasileira – vou repetir, metade – já tá em algum dos três estágios do burnout.

Carmita Abdo 

Então, nós observamos que no Brasil ⅕ das pessoas estão nesse estágio, embora 51% da população esteja nos mais diversos desses momentos que eu acabei de citar. Então, é bastante preocupante, embora não seja um número diferente do que o que se encontra em outros países. O que equivale a dizer, então, que a população mundial está super comprometida, boa parte dessa população.

Ana Aranha

Caju, eu vou fazer o papel da insistente aqui pra voltar a falar dos dados do INSS sobre afastamento. Tô ligada que esse assunto não é dos mais, é… instigantes…

Carlos Juliano Barros

Você foi até generosa com esse “instigante”, viu…

Ana Aranha

Justamente por isso, e como é sempre bom deixar o papo mais leve, você vai ser a vítima do meu quiz. Tá preparado?

Carlos Juliano Barros

Bora!

Ana Aranha

Então, vamo lá: quais você acha que são as doenças campeãs de afastamento no INSS? O Top 3?

Carlos Juliano Barros

Vixe! Assim de bate-pronto é difícil, hein? Mas, como a gente já falou muito de transtornos mentais hoje, imagino que eles tejam dentro desse Top 3. Já sobre as outras duas doenças, eu vou jogar a toalha…

Ana Aranha

Então bora chamar os universitários. Quem vai responder é o Paulo Albuquerque, um estudioso da relação entre Trabalho e Previdência. Aliás: o Paulo não é “só” professor universitário, ele também é pós-doutorando pela Escola Nacional de Saúde Pública e servidor federal. Ele trabalhou muito tempo no finado Ministério da Previdência, que hoje é uma secretaria do Ministério da Economia comandada pelo Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do Bolsonaro.

Carlos Juliano Barros

Ana, antes de a gente ouvir o Paulo, você me permite um… autojabá? 

Ana Aranha

Rapidinho, hein?

Carlos Juliano Barros

Rapidão! O Paulo Albuquerque é uma das principais fontes do documentário “Carne Osso – O Trabalho em Frigoríficos”, uma produção da Repórter Brasil que a gente já citou no segundo episódio aqui do Trabalheira.  Esse documentário foi dirigido por este que vos fala em parceria com o Caio Cavechini. É só dar um Google que aparece o link do filme: “Carne Osso”. Bom, agora que acabou o momento autojabá, vamo ouvir o Paulo Albuquerque.

Paulo Albuquerque 

Então, quando a gente se refere aqui às doenças do trabalho, amigos, a gente está se referindo àquele afastamento por mais de 15 dias no balcão do INSS. (…) Qual é o afastamento que mais motiva a concessão de auxílio doença pela Previdência? Pasmem… fiquem aí surpresos que não é o sangue jorrando, não é aquele acidente traumático, não é o perfil cortante. Sem dúvida, esses acidentes são numerosos, são alarmantes, continua sendo um caso de saúde pública importantíssimo (…) mas o que predomina, o que é preponderante na concessão de benefícios previdenciários no Brasil, isso eu estou falando da última década, são as doenças… dorsopatias, doenças da coluna vertebral, a dor de coluna, a dor lombar, o bico de papagaio. 

Ana Aranha

E aí, caju? Quando a gente começou esse quiz, você imaginou que as campeãs fossem as “dorsopatias”, as doenças da coluna?

Carlos Juliano Barros

Olha, pensando agora, é tanto peso nas costas de todo mundo, que até que não é  surpresa tão grande, né. Mas vamos ouvir quais são as outras doenças nesse TOP 3.  

Paulo Albuquerque 

No segundo, nós temos aí as tendinites, aquela inflamação do tendão do braço, pra quem trabalha muito com esforços repetitivos, pegando muito peso, em posições incômodas.

Paulo Albuquerque

E o terceiro colocado, nessa lista aí, são as depressões, problemas relacionados ao psicológico das pessoas, que decorre muito da forma como se organiza o trabalho, dos medos de perder o emprego, dos medos de não cumprir a meta, as metas absurdas, as metas não negociadas de forma racional, de forma a garantir o mínimo de pausa, o mínimo de paz.

Carlos Juliano Barros

O Paulo Albuquerque é um dos idealizadores de uma ferramenta muito interessante chamada NTEP. E eu queria contar a história do NTEP porque… porque eu realmente acho que vale a pena falar desse assunto!  

Ana Aranha

Ok, nada mais justo! Fala aí, que que é NTEP?

Carlos Juliano Barros

NTEP é uma sigla para “Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário”.

Ana Aranha

Wow! Obrigada, Caju. É nesse ponto que a gente perdeu todos os nossos ouvintes. 

Carlos Juliano Barros

Não! Pera aí! Vou evocar o espírito do nosso ex-presidente Collor: “Não me deixem só. Eu preciso de vocês”. 

Ana Aranha

É, pra ele não funcionou muito bem… Mas eu confio no seu faro pra história boa. Vamo lá, conta tudo sobre o NTEP!

Carlos Juliano Barros

Obrigado pela confiança, Ana. O NTEP é uma base de dados que mostra quantos doentes um setor produtivo produz. Por exemplo: transtornos mentais são muito comuns entre bancários – principalmente, por causa do sistema de metas que os bancos impõem. A média de problemas de saúde mental entre os bancários é maior do que a média  dos brasileiros de forma geral. Da mesma forma, a incidência de problemas de bexiga é maior entre motoristas de ônibus, porque eles ficam horas e horas sem poder usar o banheiro, do que a incidência desse tipo de problema na população em geral. Pegou o conceito, Ana?   

Ana Aranha

Saquei. Só um breve comentário sobre os bancários: eu tenho um amigo que trabalha num grande banco e ele me contou que já viu caso de cliente com quatro seguros de vida. 

Carlos Juliano Barros

Nossa… mas por que a pessoa contratou quatro seguros de vida?

Ana Aranha

Porque os funcionários do banco entucharam no cliente esse monte de seguro pra bater meta, entendeu? 

Carlos Juliano Barros

Que doideira… Vamos. Mas voltando ao NTEP: ele virou lei em 2007. E uma coisa curiosa é que ele inverte a lógica da prova, por assim dizer. Continuando com o exemplo dos bancários: como no setor financeiro tem muito caso de transtorno mental, não é o bancário que precisa provar que ficou doente por causa do trabalho. É o banco que tem que apresentar provas de que o trabalho não provocou a depressão do funcionário. Captou a mensagem?

Ana Aranha

Sim… é uma lógica parecida com a do Direito do Consumidor, né. Se eu compro – sei lá… – um liquidificador, e ele não funciona, eu como consumidora não tenho que provar que tem um fio em curto dentro do aparelho. É o fabricante que tem que se virar e resolver.

Carlos Juliano Barros

Exatamente isso. É um paralelo super pertinente. Bom, até o lançamento do NTEP, os auxílios-doença que tinham relação direta com o trabalho eram esmagadora MINORIA. Mas, com esse sistema,  o quadro começou a mudar. Vamos ouvir mais esse trechinho do Paulo Albuquerque sobre os números. 

Paulo Albuquerque 

95% dos afastamentos até 2007 são referentes a desígnios divinos, foram fatalidades. Essa palavra aparece muito nos laudos: fatalidade, fatalidade, fatalidade… como se aquilo jamais pudesse ser previsível ou prevenível. Então, até 2007, 95% foi porque Deus quis e 5% relacionado ao trabalho. Com a introdução da Lei 11.430, em dezembro de 2006, com eficácia a partir de abril de 2007, nós tivemos aí uma nova configuração, novos patamares. Então, a doença do trabalho geral, aquela que Deus quis, sai de 95% e cai pra 87%, 86%, enquanto o acidente de trabalho, aquele rotulado pelo INSS como acidentário do trabalho, sobe de 5% para 12%, 15%.

Ana Aranha

Cara… esses dados são mesmo impressionantes. Então, recapitulando: até 2007, só 5% dos afastamentos eram considerados consequência direta do trabalho. Quer dizer: é óbvio que tinha uma subnotificação gigantesca… devia ter um monte de caso de afastamento que era causado pelo trabalho, mas que não entrava nessa conta. Você sabe se esses números se mantêm hoje?  

Carlos Juliano Barros

Então… Pelo que disse o Paulo Albuquerque, os números voltaram aos patamares pré-NTEP, de antes de 2007. Isso acontece por algumas razões. Os benefícios da Previdência que são classificados como acidentes de trabalho dão algumas vantagens pras pessoas que recebem e, lógico, saem mais caro pro governo. Então, nesse contexto que a gente tá vivendo de corte pesado de despesas da Previdência, tá mais difícil que o governo aceite dar esse benefício pras pessoas. Na prática, o que rola é o seguinte: o cidadão vai fazer uma perícia e aí o perito não libera o benefício mais vantajoso pro trabalhador. Então, tem um componente ideológico forte nessa história. A verdade é que o NTEP tá sob fogo pesado. Tem até uma ação rolando no Supremo Tribunal Federal contra o NTEP. Essa ação foi movida pela Confederação Nacional da Indústria, a CNI. 

Ana Aranha

Imagino que o NTEP incomode muito… 

Carlos Juliano Barros

Muito! O caso dos transtornos mentais é muito emblemático. 

Paulo Albuquerque

Se você fizer um zoom, pegar um recorte, pela modelagem de concessão, o que era antes concedido pra transtorno mental, e o que passou a ser concedido a partir do NTEP, o incremento foi a 1600%.

Ana Aranha

Quer dizer: o NTEP joga uma bomba no colo de alguns setores. Ele diz: “Empresa tal, as estatísticas mostram que você gera um exército de pessoas com tais e tais doenças”.

Carlos Juliano Barros

Exatamente. E isso evidentemente tem um impacto bilionário nas contas da Previdência, um tema que teve sempre muito presente na agenda política dos últimos anos.

Paulo Albuquerque 

Então, o que nós temos é uma Previdência desequilibrada por conta de uma adutora que produz um volume gigante de doentes, que só tem uma represa pra segurar, que é a represa previdenciária. Se você está com um processo produtivo que é produtor de 13 acidentes – presta atenção: 13 acidentes por minuto -, você não tem Previdência que aguente. Os requerimentos que são dados, reconhecidos, concedidos, os casos novos por ano, dá R$ 4,5 bilhões de reais. A questão é: por que se produz tanta invalidez no Brasil? Por que se produz tanto benefício auxílio-doença no Brasil, tanta pensão por morte?

Ana Aranha

Caju, o debate tá ótimo, mas nosso tempo tá acabando. A gente vai ter que deixar esse papo  pros próximos episódios, que nossa série continua aí a todo vapor na semana que vem…. 

Carlos Juliano Barros

Com certeza, Ana. Mas só pra concluir o nosso papo de hoje: pelo o que a gente conversou e ouviu, parece que o trabalho mais danifica do que dignifica, hein?  

Ana Aranha

É isso! Obrigada a você que acompanhou a gente nesse episódio. E um agradecimento especial pro nosso Adilson Maguila e ao seu invejável poder de síntese!

Carlos Juliano Barros

Pode crer, Ana! Maguila mandou bem demais! Ah… No próximo episódio, a gente vai debater um tema que tá na crista da onda, muito por causa da pandemia do coronavírus: Renda Básica Universal.

Ana Aranha

Show! Vai ter o Suplicy?

Carlos Juliano Barros

Quem viver ouvirá! O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo pra Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.

O roteiro original é de minha autoria, Carlos Juliano Barros, com a colaboração da Ana Aranha. O tratamento de roteiro é do Vitor Hugo Brandalise.

A edição e a montagem são da Juliana Santana, da Clara Rellstab e da Mari Romano. A música do programa é composta pela Mari Romano e pelo João Jabace, que também faz a finalização e a mixagem do programa. A coordenação digital é da Juliana Jaeger, e a distribuição é da Bia Ribeiro.

Siga as redes da Repórter Brasil. E vale a pena ouvir os outros episódios que já rolaram na Rádio Batente – não só do Trabalheira, mas também do nosso outro podcast, o Jornadas, que também tá no feed da Rádio Batente.

Valeu, Ana! Obrigado pelo papo, mais uma vez. Até semana que vem. 

Ana Aranha

Valeu, Caju. Até quarta que vem!

FIM 


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