Em meados de agosto, indígenas Kayapó levaram cartazes amarelos não só ao centro da BR-163, mas também aos noticiários do mundo inteiro. Mesmo correndo riscos extras diante da pandemia da covid-19, eles deixaram suas aldeias e ocuparam a estrada que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), em plena Amazônia, para reivindicar a renovação do Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI) vinculado ao licenciamento da rodovia.
A mobilização, que aconteceu na altura do município paraense de Novo Progresso (epicentro do “Dia do Fogo”, ocorrido em agosto de 2019), trouxe frutos: neste mês a Justiça determinou que o governo federal renove o PBA-CI, que ajuda a minimizar os impactos da obra. O plano é um conjunto de ações que abarcam desde a proteção e fiscalização das Terras Indígenas (TI) Menkragnoti, Baú e Panará pelas próprias comunidades até a viabilização de alternativas econômicas sustentáveis. Ele passou a valer em 2008 como condicionante da licença ambiental da retomada das obras de asfaltamento da BR-163 no mesmo ano.
O PBA-CI estabelece compromissos assumidos pelo Executivo em relação a direitos básicos que devem ser garantidos aos indígenas: por exemplo, recursos para manter programas que viabilizem desde o monitoramento do território contra invasores que desmatam e queimam as florestas até o funcionamento do Instituto Kabu, que permite a gestão ações de atendimento (inclusive de saúde, em plena pandemia do novo coronavírus).
Ao longo do processo de discussão para renovação desse programa, a Fundação Nacional do Índio (Funai) argumentou que era necessário “cautela” no tratamento da questão, posição semelhante à adotada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) desde dezembro do ano passado, quando se encerrou o 4º termo aditivo do plano.
Mas a Justiça Federal reafirmou a necessidade de manutenção permanente do PBA em liminar no dia 1º de setembro, a partir de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF). A determinação é que o DNIT encaminhe à Funai, até 29 de setembro, planos de trabalho para a renovação do PBA-CI.
Em sua decisão, a juíza Maria Carolina Valente do Carmo, da Vara Federal de Altamira, enfatizou a previsão estabelecida pelo próprio plano, quanto ao seu caráter “permanente, uma vez que os impactos decorrentes do empreendimento tendem a aumentar com o passar dos anos”, e determinou ainda que DNIT e Funai devem apresentar prova, até meados de outubro, da renovação do PBA-CI da BR-163, referente às TIs Menkragnoti, Baú e Panará.
À Justiça, o DNIT pediu prorrogação do prazo para se manifestar, e a União argumentou que, como pretende efetivar a concessão da rodovia à iniciativa privada (encaminhada em maio ao Tribunal de Contas da União) deixaria de ter responsabilidades sobre seus impactos socioambientais, além de questionar a necessária urgência do atendimento das demandas indígenas.
Carmo, contudo, não acolheu esses pedidos e reforçou que “o risco de irreversibilidade se mostra mais acentuado em relação aos prejuízos experimentados pelos indígenas em caso de postergação indefinida quanto à renovação do PBA-CI”. Em decisão complementar, a mesma magistrada estabeleceu multa de R$ 5 mil por cada dia de descumprimento da decisão em sua integralidade.
‘Ações imprescindíveis à reprodução física e cultural’
“Eles sempre falam que está em análise, que estão vendo, que já estão resolvendo. Eles colocam dia, colocam data. Mas isso é enrolação. Nada se resolve. Todo o mundo sabe que a Funai está aí para acolher as nossas demandas, mas hoje não estão nem aí para os indígenas”, comenta Mydjere Kayapó, vice-presidente do Instituto Kabu. A organização indígena reúne aldeias das TIs Menkragnoti e Baú e vem sendo responsável desde 2010 pela gestão dos recursos transferidos pelo governo federal por conta do PBA-CI. De acordo com a Funai, os repasses (que também incluem recursos dirigidos à associação dos Panará) foram de R$ 39 milhões desde o início do programa, em 2008, até o presente momento.
Na ação civil pública que desencadeou a decisão liminar pela renovação do plano, o MPFl argumentou que as ações de mitigação são “imprescindíveis à reprodução física e cultural dos povos Kayapó Mekrãgnoti e Panará, e que devem persistir enquanto perdurarem os impactos crescentes do empreendimento rodoviário nos seus territórios”.
O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também foi proibido pela Justiça Federal, na mesma decisão, de conceder licença de operação definitiva no processo de asfaltamento da BR-163 até que seja feita a prova da renovação.
“Quando a gente tinha PBA, a gente fazia o nosso monitoramento, a nossa fiscalização. O governo federal talvez não queira renovar o PBA por causa disso. Para a gente não fazer essa fiscalização”, emenda Mydjere. “Os garimpeiros e os madeireiros estão entrando com tudo nas terras indígenas. Até existem alguns indígenas que são a favor disso, que estão envolvidos, [que são] enganados pelos garimpeiros e pelos madeireiros. Eles gostam de chamar os indígenas para se proteger, dizendo que aquela madeira é dos indígenas. Sempre usam isso.”
Indagada pela Repórter Brasil acerca da condição irregular da obra da BR-163 quanto ao licenciamento ambiental, a Funai não se posicionou. Já o Ministério da Infraestrutura informou, de forma lacônica, que o “governo tem mantido diálogo constante com essas comunidades sobre o assunto” e que “o DNIT e a Funai estão em tratativas, com o auxílio do Ministério da Infraestrutura e do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), para efetivação da renovação do Projeto Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI)”.
Em meados de agosto, às vésperas da anunciada manifestação do bloqueio indígena da rodovia, houve a liberação de um repasse emergencial de R$ 2,3 milhões, relacionado a um termo aditivo referente ao primeiro semestre de 2020, mas a proposta de renovação do PBA para o período 2020-2024 segue sem resposta oficial, agora exigida pelo Judiciário.
Condições adequadas para atendimento de saúde nas comunidades também integram as reivindicações dos indígenas, que divulgaram ainda uma Carta Aberta e um comunicado direcionado à Funai. “A covid chegou aí e é um inimigo invisível dos indígenas. Já matou quatro anciãos nossos da nossa terra”, relata o vice-presidente do Kabu. “E as queimadas aqui no entorno estão grandes. Se vocês vierem, vão ver que está tudo imenso aqui.”
Um novo capítulo: a Ferrogrão
Mydjere Kayapó descreve o que os registros do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também vêm apontando. Os focos de calor detectados nesses territórios entre 1º e 15 de agosto superaram amplamente a média da última década. Segundo levantamento com base nos dados obtidos por meio do satélite Aqua e levando-se em consideração uma área de 100 km de abrangência dos limites das TIs Baú e Menkragnoti, houve 3.079 focos, o que corresponde a 90,7% da média dos últimos 10 anos (3.389 focos) para todo o mês de agosto (ver Mapa de Calor abaixo). Grande parte dessas queimadas se deram justamente nas margens da BR-163.
A relação entre garantia de direitos e desmatamento está no centro de um estudo publicado recentemente nos Estados Unidos, elaborado pela Universidade da Califórnia em San Diego e pela Universidade de Columbia. A investigação apontou que a salvaguarda dos direitos territoriais indígenas poderia ter resultado numa redução extra de desmatamento de 1,5 milhão de hectares na Amazônia brasileira.
Segundo as cientistas políticas Kathryn Baragwanath e Ella Bayi, autoras do artigo, a paralisação dos processos de homologação de TIs, em conjunto com o aumento da violência contra os povos indígenas e as declarações do presidente Jair Bolsonaro pela “abertura” da exploração de minérios e do agronegócio, sublinham a “importância de um sistema institucional que reconheça esses direitos territoriais”, que geraram efeitos calculados de redução do desflorestamento em até 66%. Para além das demarcações, o trabalho divulgado pela Academia Nacional de Ciências destaca ainda o necessário “fortalecimento de mecanismos já existentes que protejam os territórios indígenas de atividades extrativas”.
Nessa linha, Mydjere Kayapó destacou que um outro ponto importante das demandas indígenas é a consulta com relação à construção da Ferrogrão, que promete ser o mais importante eixo de transporte ferroviário de grãos em paralelo à BR-163. “Quando for a análise, quando for uma audiência para tratar da Ferrogrão, o governo federal e o governo estadual, e aqueles que estão querendo fazer, que nos chamem, a nós, indígenas, para nos ouvir também”, sublinha.
Parte do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal, o projeto da Ferrogrão e seus mais de 1 mil quilômetros de extensão é resultado de uma proposta bancada pelo consórcio Pirarara, formado por tradings que dominam o mercado da soja – ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus – e costurado pela especializada em projetos logísticos Estação Da Luz Participações (EDLP). Em rodada de reuniões com possíveis operadores, financiadores e investidores da construção, com custo estimado de R$ 8,4 bilhões (apenas para implementação) e concessão de 69 anos, representantes do governo relataram que as questões socioambientais estiveram entre as mais citadas .
Levantamento da Climate Policy Initiative, núcleo de avaliação de políticas climáticas afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), estimou que o projeto pode, caso nenhuma medida de mitigação for implementada, aumentar a demanda por terras e induzir a um desmatamento de 2.043 km² de vegetação nativa no Mato Grosso.
O Ministério da Infraestrutura informou, por meio da sua assessoria de imprensa, que o licenciamento da obra ainda está em fase inicial, mas que as referidas terras do povo Kayapó se situam para além dos limites estabelecidos como áreas de influência da projetada ferrovia. A Rede Xingu+, formada por organizações de povos indígenas, associações de comunidades tradicionais e instituições da sociedade civil atuantes na bacia do rio Xingu, contesta a posição da pasta e segue cobrando consulta livre, prévia e informada aos indígenas em relação à obra.
Povo Panará: ‘Nossa situação está muito complicada’
O povo Panará – talvez o mais afetado historicamente pela pavimentação da Rodovia Cuiabá-Santarém, por ter tido a sua população reduzida em mais de 80% – também foi atendido pela decisão da Justiça Federal de Altamira pela renovação do PBA, no bojo da ação do MPF.
“A gente conseguiu vencer. Tem que continuar, sim. Porque é nosso direito. Esse recurso [do PBA-CI da BR-163] tem que continuar para a gente fazer o nosso trabalho como fiscalização, para a gente proteger a nossa área. Para a mata continuar em pé, para o rio continuar limpo, para nos alimentar”, comenta Kunity Panará, da Associação Iakiô, citada na decisão como entidade destinatária de recursos relacionados à mitigação dos impactos da rodovia. O povo Panará, prossegue ele, continua até hoje “sofrendo com o asfalto”.
“Os fazendeiros estão desmatando muito perto da nossa área. Já está muito encostado o desmatamento para criação de gado, plantação de soja, tirando madeira, queimando”, relata Kunity. “Quando o governo começou a abrir a BR-163, Cuiabá-Santarém, essa estrada passou em cima das nossas aldeias, do nosso cemitério. Por causa disso, perdemos muitos dos nossos parentes, da nossa família, nas mãos do governo. A BR ‘limpou’ as nossas aldeias, o nosso cemitério”, lamenta. Quando do início da fase mais recente das obras, “foram”, segundo ele, “fazendo muito engano”, “falando muita promessa”, sem cumprir “o que está no papel”.
Uma das promessas mais lembradas pelo indígena é a construção do ramal de estrada para facilitar os acessos às aldeias, também contemplada na decisão da juíza de Altamira. “Estamos perdendo alguns dos nossos parentes, que foram levados para fazer tratamento com médicos, consultas. Perdemos parentes no meio da estrada porque tem muito atoleiro, pau caído atravessado no meio da estrada, pontes caindo com o tempo da chuva”, descreve, em relação a mortes decorrentes de falta de estrutura e negligência no atendimento à saúde da comunidade.
“Este ano a gente está sofrendo mais ainda. A nossa situação está muito complicada. Como estamos aqui na aldeia, e o Brasil inteiro está em guerra contra a covid-19, a gente não tem nenhum apoio, nenhum recurso para ajudar nossas comunidades.” São seis aldeias Panará, com cerca de 600 pessoas. “Nós precisamos que os recursos do PBA continuem porque a BR nunca vai acabar.”