Uma é na Amazônia, outra é no Cerrado. Uma sofre com o garimpo ilegal, outra, com madeireiros. Uma é próxima da cidade, outra fica isolada na mata. Apesar das muitas diferenças entre as dez Terras Indígenas (TIs) com mais focos de incêndio neste ano, os depoimentos que vêm de suas lideranças são parecidos. Envolvem desespero com a escala do fogo, omissão da Funai no combate às chamas e uma percepção de que “nunca vi nada igual”.
O levantamento inédito, feito pela organização Global Forest Watch a pedido da Repórter Brasil, mostra que as Terras Indígenas foram devastadas por mais de 115 mil focos de incêndio ocorridos desde o início do ano até 29 de outubro. Os dados de satélites revelam ainda que as TIs mais afetadas neste ano foram as do Xingu (MT), Parque do Araguaia (TO) e Kayapó (PA).
Das mais de 724 Terras Indígenas consideradas no levantamento, 448 já registraram incêndios neste ano – ou 61% – segundo dados de queimadas ativas da Nasa, acessados por meio da plataforma da Global Forest Watch.
O território indígena campeão de queimadas neste ano – com 10.502 registros de focos de incêndio – é a TI Parque do Xingu, no Mato Grosso, que abriga 16 etnias em 500 aldeias. Difícil cravar o que impressiona mais. Se é o aumento de 251% dos registros de fogo em 2020 em relação ao ano passado; se são as imagens das chamas engolindo o território ou depoimentos como o de Watatakalu Yawalapiti, uma das lideranças femininas do Xingu, feitos durante uma live: “Nossa realidade não está nada boa. Perdemos muitas lideranças, nosso povo tá morrendo [de covid-19] e, para piorar a situação, nossa casa, que é nossa farmácia e nosso supermercado, está pegando fogo.”
O time de 60 brigadistas indígenas do Xingu não dá conta do trabalho, não só pela grande quantidade de focos de incêndio, mas também pela ausência de estrutura. Segundo Takumã Kuikuro, um dos responsáveis por criar uma campanha para arrecadar dinheiro para equipar a brigada, faltam roupas adequadas, transporte e até mangueiras para puxar a água do rio, que tem sido retirada com baldes e bacias.
“Há três anos que temos brigadistas treinados, mas este ano tem muito fogo entrando pelas fazendas que querem aumentar suas áreas e que estão em todo o entorno do nosso território. É muito fogo para pouco brigadista”, afirma Kuikuro. “Dia desses, a aldeia ficou cinza, só via fumaça. Parecia o fim do mundo chegando no Xingu.”
A TI Parque do Araguaia, no Tocantins, aparece em segundo lugar no levantamento, com 8.792 focos de incêndio. “Este ano tá sem controle. Está muito difícil respirar, e não sabemos mais de onde vem o fogo e nem como surgiu”, afirma Eliana Karajá, coordenadora da Associação Indígena Vale do Araguaia.
O fogo se aproxima das aldeias, obriga moradores a abandonarem suas casas e atinge também um território vizinho, que é o último refúgio de um grupo de indígenas em isolamento voluntário, ambos localizados na Ilha do Bananal. A suspeita é de que o fogo tenha começado pela ação humana e de forma proposital, com o objetivo de fazer a limpeza do pasto, de acordo com o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
O levantamento também comprova, com números, o inferno em que se transformou o Mato Grosso no período de seca deste ano – que está chegando ao fim, já que novembro costuma ser temporada de chuvas no país. No ranking das TIs mais queimadas neste ano em comparação com o ano passado (considerando apenas as que tiveram mais de 100 focos de incêndio), sete ficam no estado. A recordista da lista é a Vale do Guaporé, da etnia Nambikwára, com o número de focos saltando de 87 para 1.233 – um aumento de 1.317%. Além disso, das dez terras indígenas que mais sofrem com as chamas neste ano, quatro estão no Mato Grosso.
Há dois territórios dos Xavante no Mato Grosso, a TI Areões e a Parabubure, que estão entre os dez com mais focos de incêndio em 2020. Lucio Xavante afirma que a realidade enfrentada pelas duas terras é diferente, mas a preocupação é a mesma: quando o fogo vai chegar nas aldeias. Se na Areões os focos de incêndio costumam partir de bitucas de cigarro jogadas pelos motoristas da BR-158, na Parabubure o problema são as queimadas nas fazendas do entorno para ampliar as áreas de pastagens – muito próximas à divisa com a TI.
Além da destruição no Mato Grosso, o levantamento mostra que os focos de incêndio também atingiram indígenas isolados. Trata-se de uma TI que fica na fronteira do Pará com o Amapá e que pouco aparece na mídia. O Parque do Tumucumaque, que abriga os isolados Akurio e os do Rio Citaré, foi o território indígena com mais focos de incêndio em outubro: 1.085.
Já na TI São Marcos (RR), com 1.700 mil focos de incêndio, o registro é o do abandono: não há brigadistas e os indígenas têm se organizado como podem para que o fogo não atinja as aldeias. “Infelizmente não temos uma brigada indígena, pois falta estrutura. Mesmo assim, a equipe que o cacique montou vai pro mato. Na cara e na coragem mesmo”, afirma o coordenador-geral da Associação dos Povos Indígenas da Terra Indígena São Marcos, Marcello Pereira Macuxi.
‘Falta ação do governo’
Na avaliação do antropólogo e ex-presidente da Funai, Márcio Meira, o órgão “tem obrigação de combater incêndios dentro dos territórios indígenas, e isso está na Constituição, que estabelece que cabe à União proteger e fazer respeitar os bens das terras indígenas.” Diante do cenário atual de destruição de TIs, Meira avalia estar claro que “o que falta é ação do governo, que não tem o menor interesse em proteção ambiental.”
Maria Augusta Assirati, que comandou a Funai entre 2013 e 2014, também ressalta que há competência do órgão para atuar na prevenção e combate ao fogo juntamente com Ministério do Meio Ambiente, ICMBio, órgãos estaduais e Exército. Ela destaca, porém, que o orçamento para esse tipo de operação já vinha sendo reduzido desde a época em que era presidente. Ao desidratar a Funai e restringir seu poder para combater o fogo, o Estado deixa prevalecer “um contexto criminoso” que vitimiza territórios e indígenas, além do patrimônio ambiental.
A Funai afirmou à Repórter Brasil que compete a ela “apoiar ações de combate a incêndios e monitorar e executar ações de prevenção a incêndios em Terras Indígenas (TIs)”. E disse que “este ano, por meio do Acordo de Cooperação Técnica com o Prevfogo, foram formadas 41 Brigadas Federais em Terras Indígenas, bem como foi realizado o primeiro Curso de Formação de Multiplicadores para Prevenção de Incêndios Florestais em Terras Indígenas”, que teve como objetivo capacitar indígenas e servidores que venham a atuar nas suas TIs” (Leia a resposta na íntegra).
Mais fogo em menos tempo
A Terra Indígena Kayapó, na região do município de Cumaru do Norte (PA), não só está entre as que mais queimam como triplicou o número de focos de incêndio de 2019 para 2020. Eliseu Kayapó, coordenador do Instituto Kenourukaware Kayapó (IKKA), afirmou, em outubro, que a aldeia Gorotire, a principal do território, estava irreconhecível. “É só fumaça e fogo.” Segundo ele, a terra indígena faz divisa com muitas fazendas, cujos proprietários estão usando as queimadas para renovar o pasto e, por isso, o fogo se espalha. “Também tem a questão do garimpo ilegal, da madeira, a ausência de fiscalização. Virou tudo uma bagunça só e não temos mais como identificar de onde vem e quem começou o fogo.”
Na Terra Indígena Paresi, em Tangará da Serra (MT) – onde os focos de incêndio saltaram de 1.934 no ano passado para 2.164 até outubro – Tereza Paresi diz ser difícil informar onde o fogo começou e apontar os responsáveis. No entanto, afirma que os indígenas, diferentemente do que acusa o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), não são os responsáveis por isso, seja no Pantanal ou na Amazônia, pois eles têm formas de proteção para que as queimadas não se alastrem: são os chamados aceiros, os terrenos sem vegetação no entorno das propriedades que impedem a propagação de incêndios.
“Esse ano a gente sente que está pior. É triste porque o fogo queimou o lugar das frutas silvestres. É época de cajuzinho do campo, de jabuticaba, e não sobrou quase nada”, lamenta Tereza, que é professora da aldeia e representa as mulheres da etnia. Para ela, o problema vai além das questões de saúde e de segurança alimentar, pois os incêndios também devastaram as áreas que abrigavam as madeiras e as palhas utilizadas nas construções das casas.
Para Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), trata-se de uma irresponsabilidade culpar os indígenas pelas queimadas. “São povos indígenas que vivem nessas terras há muito tempo, eles sabem como lidar com a floresta. Eles têm técnica de controle porque não querem perder o “supermercado” deles. Quando sai do controle é porque essas terras estão sofrendo pressão de invasores”, afirma.
Grileiros e drones
Este é o caso da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (RO), onde os indígenas têm usado drones para monitorar a dimensão do estrago. Foi em um voo com drone que eles flagraram áreas do tamanho de dois campos de futebol incendiadas por invasores. Eles flagraram também terrenos recém-desmatados e prontos para serem queimados para se transformarem em pasto. O número de focos de incêndios no território indígena já ultrapassa os de 2019 em 38%.
Bitate Uru-Eu-Wau-Wau, coordenador da Associação Indígena Jupaú, afirma que o problema agora é que a fumaça tem atrapalhado a localização e identificação dessas áreas. “O drone sobe 40 metros e a fumaça já não deixa a gente ver nada.”
Os incêndios e a covid-19 só ampliam a lista de preocupações às quais já sofre a etnia, em um território palco constante de ameaças e invasões de grileiros, madeireiros e garimpeiros. Essa violência ficou ainda mais evidente em abril, quando Ari Uru-Eu-Wau-Wau, de 32 anos, foi encontrado morto em uma estrada próxima ao território. Ele fazia parte do grupo de guardiões e teria sido assassinado com golpes na cabeça, em um crime que até hoje não foi solucionado.
Nota: Essa reportagem foi realizada com financiamento concedido pela Global Forest Watch à Repórter Brasil, que mantém total independência editorial. A GFW tem o apoio do Ministério Norueguês do Clima e do Meio Ambiente (KDL)