A Vale propôs ao governo de Minas Gerais reduzir em cerca de R$ 30 bilhões o valor a ser pago em indenizações e reparações às vítimas e ao meio ambiente pelos danos provocados pelo rompimento da barragem de Brumadinho, que em janeiro de 2019 matou 270 pessoas e deixou 11 desaparecidas. O valor é menos da metade do demandado na Justiça pelo governo mineiro. A proposta foi apresentada na terça-feira (17) por meio de documento inédito e sigiloso ao qual a Repórter Brasil teve acesso.
O governo de Minas, defensorias e ministérios públicos, além da Advocacia Geral da União entraram com uma ação pedindo que a Vale pague R$ 54 bilhões para reparar os danos humanos e ambientais do desastre. Este valor foi calculado pela Fundação João Pinheiro, órgão oficial de pesquisa e estatísticas do Estado, que estima em R$ 26 bilhões as perdas econômicas pelo rompimento da barragem e outros R$ 28 bilhões para o pagamento de indenizações às famílias dos mortos e demais atingidos.
Nesta semana, no entanto, a empresa propôs pagamento total de cerca de R$ 21 bilhões, sendo um “teto global” de pagamentos de R$ 16,45 bilhões – que incluiria a realização de obras em Belo Horizonte, distante 60 km de Brumadinho –, R$ 3 bilhões previstos para a recuperação ambiental, além dos R$ 2,2 bilhões já gastos em indenizações para os cerca de 8 mil atingidos.
Apesar de a ação estar em tramitação, o governo de Minas e demais entidades começaram a negociar com a empresa sob o argumento de que, na via judicial, a compensação pelos danos pode se arrastar por anos. Já a mineradora tenta reduzir o valor pedido judicialmente. Os atingidos, por sua vez, reclamam que não participam das negociações e que não têm acesso às minutas do acordo, pois a Justiça decretou confidencialidade do documento (Leia aqui a íntegra do documento).
Além de propor um corte pela metade no valor demandado, a proposta feita pela mineradora não prevê o pagamento dos chamados “programas emergenciais”, que garantiriam renda aos moradores de Brumadinho e de outras 10 cidades da bacia do rio Paraopeba que tiveram seus trabalhos e renda comprometidos pela lama. Sem o pagamento, a vulnerabilidade desses trabalhadores aumenta e eles podem, pela urgência em receber a indenização, aceitar valores menores, segundo advogados e representantes dos atingidos ouvidos pela Repórter Brasil. Atualmente, a Vale paga um auxílio para os impactados pelo desastre, porém, na audiência, ficou acertado a continuidade deste pagamento somente até 30 de dezembro.
Dentro do chamado “teto global”, a Vale propõe ainda que parte deste valor será repassado ao governo de Minas para a realização de obras, como a construção de uma nova linha de metrô em Belo Horizonte e de um rodoanel na capital, que consumiriam R$ 4,75 bilhões. O governo mineiro enfrenta dificuldades para pagar seus servidores e constantemente alega falta de recursos para investir em obras.
“Isso que o governo está negociando é um caminho para reeleição do Zema [Romeu Zema, governador do Estado] com dinheiro dos atingidos. Se houvesse preocupação com a reparação teria sido feito um amplo processo de participação dos atingidos”, critica a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), que defende que o governo suspenda a negociação com a mineradora e quer a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o acordo. Cerqueira tem 15 das 26 assinaturas de deputados necessárias para abertura da CPI.
Após 3 horas de reunião na terça, o acordo entre Vale e governo não foi fechado. “Recusamos oficialmente a proposta apresentada pela Vale no processo em que cobramos reparação pelo rompimento da barragem em Brumadinho. O que aconteceu em Mariana não se repetirá”, publicou em uma rede social o governador Romeu Zema (Novo).
A crítica do governador diz respeito à reparação dos danos do rompimento da barragem da Samarco (empresa controlada pela Vale e pela BHP Billiton) em Mariana, em 2015. Cinco anos após o desastre, as casas dos desalojados não estão prontas e as indenizações não foram concluídas. Lá, o processo de reparação é feito pela Fundação Renova, criada após um acordo judicial entre Samarco, Vale, BHP e órgãos federais, estaduais e municipais.
O secretário-geral do governo mineiro, Mateus Simões, informou na saída da reunião que o governo rejeitou a proposta da Vale, de cerca de R$ 21 bilhões. “Valor abaixo do que julgamos necessário”, afirmou. Simões disse que os valores ainda não estão sendo discutidos, pois há outros pontos que precisam ser modificados na minuta. Uma próxima reunião ficou agendada para 9 de dezembro.
Lama, tragédia e falta de transparência
Enquanto Vale, governo estadual, promotores, procuradores e defensores públicos negociavam o acordo protegido por termo judicial de confidencialidade, Silvéria Aparecida Batista era uma das atingidas que protestava na porta do Tribunal de Justiça, em Belo Horizonte, na última terça. Moradora da comunidade de Vista Alegre, próxima ao rio Paraopeba, em Esmeraldas, Silvéria viu os irmãos perderem o trabalho, pois são produtores rurais e não podem usar a água do rio para irrigar as plantações, com medo de contaminação. Quitandeira, ela reclama ter perdido parte das vendas que fazia de biscoitos e bolos. “O foco da nossa comunidade é o rio Paraopeba. Eu vendia para os sitiantes e pescadores que vinham, mas o pessoal ficou sem querer vir para o rio”, lamenta.
Silvéria e demais representantes dos atingidos criticam uma possível redução dos valores dos danos individuais, já que pela proposta apresentada pela empresa não há clareza sobre como essas indenizações serão mensuradas, pois as perícias que serão realizadas por um comitê técnico científico da UFMG ainda não foram realizadas – dessa maneira, é impossível prever valores antes desses estudos.
Representantes dos atingidos reclamam também da falta de participação popular nas discussões e da inclusão da Vale no Comitê Gestor Institucional, que vai cuidar da reparação. A proposta apresentada pela empresa nesta semana prevê a participação da Vale no comitê, sem direito a voto, mas os atingidos receiam que a empresa se imponha pelo poder econômico.
A Vale é a empresa mais valiosa listada na B3 (a antiga bolsa de valores de SP) com atual valor de mercado de R$ 354 bilhões – montante 19,5% superior ao pré-desastre, quando a empresa valia R$ 296 bilhões. Desde o rompimento da barragem, a Vale remunerou seus acionistas duas vezes. A primeira em agosto, quando pagou R$ 7 bilhões pelo resultado de 2018 e a segunda em setembro, quando distribuiu R$ 12 bilhões a seus acionistas como remuneração pelo lucro nos primeiros trimestres de 2020.
Desde o rompimento, a Vale remunerou os acionistas duas vezes, num valor total de R$ 19 bilhões
Em nota, o governo mineiro rebate as críticas dos atingidos e argumenta que eles são ouvidos e que busca um acordo para “evitar uma batalha jurídica de anos ou décadas, iniciando a reparação de danos socioambientais imediatamente” (leia a íntegra da resposta aqui). A Vale não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem e destacou que os valores que vai pagar ainda não estão definidos e que segue negociando com o governo.
A minuta do acordo foi preparada por uma das bancas de advocacia mais poderosas do Brasil, a Sergio Bermudes Advogados, que representa a Vale. O escritório tem em seus quadros Guiomar Mendes, casada com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Já empregou Marianna Fux, filha do atual presidente da corte, Luiz Fux. O ex-ministro do Trabalho no governo de Michel Temer, Caio Vieira de Mello, é consultor do escritório, assim como a ex-diretora do BNDES, Elena Landau. O ex-ministro e coordenador da campanha de Jair Bolsonaro, Gustavo Bebianno (morto em março deste ano) também trabalhou para o escritório de Sérgio Bermudes.
Silvéria fica indignada com a negociação. “O governo quer pegar uma boa parte do bolo para fazer obra em Belo Horizonte”, reclama. “Antes da lama, nossa história era boa na fazendinha na beira do rio. Agora, o que fica para nossos descendentes é a tragédia”.
Foto em destaque: Felipe Werneck/Ibama