“Você tem que morrer, miserável”, disse o motorista de uma caminhonete após bater violentamente no carro em que estava a líder comunitária Maria Márcia Elpídio de Melo. Ela seguia pela BR-163, quase chegando a Novo Progresso, no sudoeste do Pará, quando sentiu o solavanco. O veículo onde estava com o marido ficou destruído.
“Não foi um acidente. Foi um atentado contra minha vida”, afirma Melo, que vive sob a espreita da morte colecionando ameaças por seu papel à frente da associação de moradores do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa, um assentamento da reforma agrária que ainda não foi consolidado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) por estar invadido por grileiros e madeireiros ilegais. Alguns deles vivem em fazendas gigantescas – e irregulares – dentro do assentamento.
‘Esse possível atentado contra a Maria indica que as tensões estão se agravando’, afirma o procurador do Ministério Público Federal (MPF), Gabriel Dalla Favera de Oliveira
O principal motivo das intimidações a Melo é que a associação por ela presidida não concorda que os invasores permaneçam e sigam extraindo madeira ilegalmente. Segundo a líder, as ameaças se intensificaram depois de outubro, quando o Ministério Público Federal pediu ao Incra a retirada dos invasores – muitos deles ligados a políticos e empresários de Novo Progresso, cidade que foi palco do “Dia do Fogo” em 2019.
Mais de um mês depois da batida, Melo ainda sente dores abdominais e suspeita de hemorragia interna. Ela destaca a estranheza da situação, pois a caminhonete acertou a traseira do veículo no momento em que seguiam em baixa velocidade, em uma subida e atrás de um caminhão.
O cerco a Melo não parou. Duas semanas depois, ela ouviu barulhos de tiro do lado de fora da sua casa. Quando saiu, viu que uma de suas vacas havia sido baleada. Dias depois foi a vez de um bezerro. “Não me sinto segura. Eles fazem isso com meus animais para atormentar a minha vida. Querem que eu desista, mas não vou desistir”, afirma.
A Polícia Civil informou, em nota, que está investigando o possível atentado contra Melo. A apuração está com a Diretoria de Polícia do Interior (DPI), com apoio de uma comissão formada para investigar crimes com indícios de terem motivação política. Contudo, o boletim de ocorrência registrado na Delegacia de Novo Progresso classificou o caso como “acidente fortuito”. A Câmara de Conciliação Agrária do Incra pediu que o Comando-Geral da Polícia Militar e a Superintendência Regional da Polícia Federal no Pará acompanhem a investigação.
‘Tensões estão se agravando’
Há 15 anos, Melo luta pela regularização e criação do assentamento Terra Nossa, uma área na Amazônia com tamanho equivalente à cidade de São Paulo. Ali, 350 famílias de pequenos agricultores vivem em lotes já demarcados pelo Incra, mas ainda aguardam que o órgão consolide o assentamento, com criação de infra-estrutura, concessão de crédito e auxílio técnico. Essas etapas da reforma agrária estão travadas porque o assentamento está invadido por 144 grileiros, muitos dos quais extraem madeira ilegalmente da área, conforme flagrou a Repórter Brasil em outubro de 2019.
“Esse possível atentado contra a Maria indica que as tensões estão se agravando”, afirma o procurador do Ministério Público Federal (MPF), Gabriel Dalla Favera de Oliveira. O órgão acompanha a situação do Terra Nossa desde 2017 e, neste inquérito, estão outros relatos de ameaças que Maria sofreu, documentados por um servidor do Incra.
O MPF pediu ao Incra a retirada dos invasores depois de ter recebido denúncia do Movimento Xingu Vivo que, em agosto, participou de uma reunião com os assentados, na qual o superintendente do Incra em Santarém, Almir Uchôa Segundo, teria questionado se valeria expulsar os invasores sob risco de aumentar a tensão e os conflitos. “Se o Incra tirar os fazendeiros, algum agricultor vai estar disposto a ocupar aquelas terras?”, perguntou Uchoa. De acordo com a denúncia do Xingu Vivo, o superintendente deu a entender que seria melhor que o órgão não retirasse os invasores e, em troca, prestasse assistência técnica aos agricultores.
O MPF alerta que não é papel do superintendente do Incra fazer esse tipo de questionamento ou barganha e pediu que ele se explicasse. “A desintrusão dos ocupantes irregulares do PDS Terra Nossa é medida imprescindível à evolução dos trabalhos de regularização do assentamento”, afirma a procuradoria.
‘Querem que eu desista, mas eu não vou desistir’, diz Melo, que denuncia a invasão do assentamento onde vive por grileiros e madeireiros
Procurado, Uchôa Segundo afirma não ter defendido qualquer tipo de irregularidade e que não sugeriu manter os invasores dentro do PDS. “A solução definitiva para os problemas identificados no assentamento perpassa pela construção de ações legais sem a geração de novos conflitos”, entende, em nota enviada pela comunicação do Incra.
Apesar de não ter respondido à recomendação do MPF no prazo estabelecido, o Incra informou à Repórter Brasil que está notificando os invasores e que vai “adotar as medidas administrativas e judiciárias necessárias visando a regularização do assentamento”. Também prometeu enviar ainda em dezembro um relatório atualizado para o MPF com as providências adotadas e as ações que pretende para consolidar o PDS Terra Nossa.
Assassinatos em série
A disputa dos grileiros, madeireiros e garimpeiros com os assentados deixou um rastro de morte no PDS Terra Nossa. Em 2018, Antônio Rodrigues dos Santos, o Bigode desapareceu após denunciar extração ilegal de madeira dentro de seu lote. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Sintraf) da vizinha Castelo dos Sonhos, Aluísio Sampaio (conhecido como Alenquer), passou a exigir publicamente a investigação do desaparecimento de Bigode. Também foi assassinado. Antes de morrer, gravou um vídeo denunciando os responsáveis pelas ameaças que sofria.
“Já me disseram que eu vou morrer igual o sindicalista de Castelo dos Sonhos”, afirma Melo, que está inserida no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do Pará. “O Alenquer falava que quando morresse ia levantar um [líder] melhor que ele. Eu me levantei e o foco das ameaças veio para cima de mim”, completa.
Novo Progresso foi o epicentro do “Dia do Fogo”, um ataque organizado por produtores rurais e empresários, que triplicou os focos de incêndio no sudoeste do Pará nos dias 10 e 11 de agosto de 2019. Apesar dos indícios, como os focos de incêndio registrados por satélites e combinações em grupos de Whatsapp, a Polícia Civil concluiu o inquérito sem apontar responsáveis e atribuiu a grande queimada ao tempo seco. A Polícia Federal também investiga e ainda não concluiu o inquérito.
Um dos principais alvos das queimadas foi o PDS Terra Nossa, que apenas no final de semana de agosto de 2019, o período do “Dia do Fogo”, teve 197 focos de incêndio em seu território, segundo dados da Agência Pública.
A Repórter Brasil teve acesso a um áudio de WhatsApp que indica como se deram as combinações para incendiar o assentamento. Na gravação, um homem não identificado confirma que estaria cumprindo um combinado feito com o vice-prefeito Gelson Dill (MDB), sobre uma queimada que ocorreria no domingo, 11 de agosto. “Ô Gilson [Gelson], estou avisando o pessoal para todo mundo ir para aí no domingo para queimar esse negócio aí, beleza?”, diz o homem. Dill negou que tenha recebido o áudio e disse que o “Dia do Fogo” foi uma “fantasia”.
Dill tomará posse em janeiro como prefeito eleito com 43% dos votos. Em agosto, ele foi multado em R$ 4 milhões por desmatamento ilegal de 174,5 hectares no Parque Nacional do Jamanxim. Não foi a primeira multa por crimes ambientais e por destruir as áreas de reserva florestal que circundam Novo Progresso. Em 2017, Dill recebeu multa de R$ 288 mil do ICMBio por destruir 23,93 hectares também em área de reserva.
Consta, ainda, que o político tem duas áreas embargadas pelo Ibama por desmatamento ilegal na região de Novo Progresso – o último embargo foi realizado em 11 de agosto deste ano. Dill afirmou que não cometeu nenhuma infração. “Já é a segunda vez que o ICMBio me multa por atos que não fiz. Provarei isso em minha defesa”
Terra sem lei
Enquanto é atacado pelo fogo, pelos grileiros e madeireiros, a consolidação da reforma agrária no PDS Terra Nossa se arrasta há mais de 15 anos. As famílias assentadas ocupavam antes o PDS Vale do Jamanxim, na área que foi criada a Floresta Nacional do Jamanxim, em 2006. Com a criação da área de reserva, as famílias tiveram que sair e se incorporaram a dois acampamentos apoiados pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Novo Progresso, que deu origem ao PDS Terra Nossa.
Em 2016, o Incra realizou um diagnóstico fundiário do assentamento e citou o geógrafo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, para explicar o clima de “terra sem lei” vigente no sudoeste do Pará. Para Oliveira, Novo Progresso surgiu de uma conjugação de praticantes de atividades ilegais de grilagem de terras, garimpo e extração de madeira, que embora fossem os representantes da desordem e do saque do patrimônio público se travestiram da ordem legal ao criar municípios e distritos.