Cidades da região Norte receberam menos recursos federais por habitante para combater a covid-19

Ministério da Saúde repassou R$ 23 bilhões para todos os municípios brasileiros, mas cidades do Norte ficaram atrás na partilha. Transferências para estados somaram R$ 9 bilhões
Por Diego Junqueira
 22/01/2021
Recém-inaugurada, a UBS Nilton Lins, em Manaus, ficou lotada já no primeiro dia de funcionamento, no dia 12 de janeiro (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)

Os municípios da região Norte foram os que menos receberam recursos do Ministério da Saúde por habitante para combater a covid-19. Entre as 450 cidades nortistas, a menos beneficiada pelos repasses federais foi Manaus, que enfrenta novo colapso do sistema de saúde, com explosão de contágios e falta de oxigênio em hospitais. 

Os dados foram compilados pela Repórter Brasil com base no Fundo Nacional de Saúde, que gerencia a aplicação dos recursos federais no SUS. Foi considerado apenas o valor transferido aos municípios para ser aplicado em ações contra o novo coronavírus, desde o início da pandemia até 31 de dezembro de 2020.

Por meio do Fundo Nacional de Saúde, o governo federal repassou a Manaus R$ 24,97 por habitante (total de R$ 55,4 milhões) para combater a covid-19. A segunda cidade da região que menos recebeu foi Rio Branco (AC), com R$ 31,95 per capita (total de R$ 13,2 milhões), seguida por Tailândia (PA), com R$ 37,53 (total de R$ 4 milhões).

Todas estão abaixo da média nacional por habitante, que foi de R$ 110,72 – o Ministério da Saúde repassou ao todo R$ 23,1 bilhões para os 5.568 municípios brasileiros.

Na média, os municípios da região Norte receberam R$ 92,63 por habitante, ficando atrás das demais regiões. O Nordeste liderou com R$ 126,32 per capita.

“Locais com maior capacidade de saúde instalada acabam recebendo mais repasses federais. Mas a aplicação de recursos também deve ter como foco a redução das desigualdades”, diz o economista Bruno Moretti, assessor técnico do Senado Federal e especialista em gastos públicos na saúde. “Historicamente já há uma relação de leito por habitante menor nas regiões menos desenvolvidas. Isso se agrava com a falta de uma política para reduzir essa desigualdade”, completa.

Um estudo publicado pela Folha nesta quinta mostra que a mortalidade foi maior na região Norte do que no restante do país e foi agravada por “disparidades regionais de leitos e de recursos existentes no sistema de saúde”.

Quando se analisa apenas as capitais, Manaus, Rio Branco e Porto Velho (RO) foram as que menos receberam. O Rio de Janeiro aparece na 7º posição, com R$ 61 por habitante, e São Paulo na 9º, com R$ 62 per capita. A capital que mais recebeu os recursos do governo federal de forma proporcional à população foi Porto Alegre, com R$ 229 por habitante, valor 107% acima da média nacional. 

O levantamento considera apenas as transferências para ações de saúde contra o coronavírus e não inclui as transferências de rotina para o SUS, cujo valor em 2020 (R$ 59 bi) foi inferior ao de 2019 (R$ 60 bi). Ficaram de fora também outros repasses feitos pelo governo no período, como os R$ 293 bilhões pagos como auxílio emergencial e os R$ 60 bilhões repartidos entre Estados e municípios para compensar perdas de arrecadação. 

‘Fizemos a nossa parte’

Na semana passada, após estourar a crise da falta de oxigênio em Manaus, o presidente Jair Bolsonaro classificou a situação como “terrível”. “Fizemos a nossa parte, com recursos”, disse. O presidente chegou a publicar em rede social os valores transferidos pela União ao município, com base no Portal da Transparência, de R$ 2,3 bilhões em 2020. 

O assessor especial e marqueteiro do ministro da Saúde Eduardo Pazuello, Markinho Marques, foi além. Repetiu os números do presidente e acusou o município de Manaus, sem provas, de “corrupção”. “Com todos esses bilhões que foram para Manaus, não tiveram um centavo para montar uma fábrica de oxigênio em cada hospital? Não sobrou um real para comprar um cilindro? Enfiaram todo esse dinheiro no c… A corrupção mata!”, escreveu.

Porém, os valores mencionados por Bolsonaro e pelo assessor de Pazuello consideram não apenas os gastos com saúde, mas também outros tipos de repasses, como os relacionados à educação ou a exportações. Considerando apenas as transferências relativas à área da saúde, o valor para covid-19 fica em R$ 55,4 milhões, e não R$ 2,3 bilhões.

Procurado, o Ministério da Saúde não comentou os números da reportagem. A pasta disse que oferece “apoio irrestrito a todos os estados e municípios com envios de recursos financeiros e humanos, aquisição e entrega de ventiladores pulmonares, EPIs, medicamentos, além da habilitação e prorrogação de leitos de UTI”. O ministério disse ainda que repassou R$ 836 milhões a Manaus, sendo R$ 200,3 milhões para o enfrentamento à Covid-19. A pasta, porém, não detalhou a informação. A prefeitura de Manaus não comentou.

Manaus é a única cidade do Amazonas com leitos de UTI e atende todos os pacientes graves do Estado (Foto: Márcio James/Amazônia Real)

Critérios do Ministério da Saúde

Para o pesquisador Ricardo Dantas, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, o que explica a baixa transferência para os municípios da região Norte são os critérios adotados pelo Ministério da Saúde para a repartição dos valores, definidos em portaria de julho. Os valores repassados às cidades se baseiam na média de gastos com UBS e hospitais, além do tamanho da população. Não foram considerados critérios como casos ou mortes por covid-19.

Por esses critérios, receberam mais recursos as cidades com melhores condições de fazer atenção de alta complexidade, como o atendimento de pacientes graves.

Os repasses para Manaus, no entanto, revelam outro cenário. Única cidade do Amazonas com leitos de UTI e a mais populosa de toda a região Norte, Manaus foi a 8º de todo o país que menos recebeu verbas por habitante, considerando os 5.568 municípios brasileiros.

“Manaus tinha que receber mais recursos justamente porque a cidade atende todo o Estado. Todos os serviços mais complexos estão em Manaus”, diz Dantas. Assim como o Amazonas, os estados do Acre, Amapá e Roraima também só possuem UTIs disponíveis nas capitais. 

“A legislação estabelece que a transferência de recursos federais de saúde para estados e municípios deve estar orientada para a redução das desigualdades regionais. O rateio desses recursos deve tomar por base as necessidades de saúde da população”, diz Francisco Braga, da Fiocruz.

Com a menor quantidade de leitos de UTI por habitante, o Norte foi a região que menos avançou durante a pandemia. Enquanto o Centro-Oeste, o Sul e o Nordeste aumentaram em cerca de 50% a oferta de UTIs públicas de janeiro a dezembro de 2020, e o Sudeste ampliou em 37%, o Norte avançou apenas 28%, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes).

União investe menos

Critérios como o número de casos de covid-19 e a oferta de leitos de UTI foram considerados apenas para as transferências de recursos federais para os Estados. Por essas regras, a região Norte foi a mais beneficiada na média por habitante. O montante dividido, porém, foi menor. Enquanto municípios repartiram R$ 23 bilhões, os Estados receberam R$ 8,9 bilhões.

O financiamento do SUS é compartilhado por União, Estados e municípios. A maior parte do investimento cabe ao governo federal. Em 2019, respondeu por 42% do custeio, seguido pelos municípios (31%) e Estados (26%), segundo dados do Siops (Sistema de Informações sobre Orçamento Público em Saúde). A participação da União, porém, diminui a cada ano, o que força os municípios a gastarem cada vez mais com o SUS. E isso é um problema, segundo os especialistas, porque a arrecadação e a capacidade de investimento dos municípios é menor e piorou em 2020, com a redução na atividade econômica

“Estados e municípios com menor capacidade financeira sofrerão mais, porque dependem mais de recursos próprios, e esses são mais escassos em comparação com Estados e municípios com maior capacidade econômica”, diz Moretti.

Para a pesquisadora da Unicamp Grazielle David, outra deficiência na alocação de recursos federais foi a incapacidade de o Brasil acompanhar o avanço da doença por meio de um programa de testagem. “O Brasil falhou na testagem da população e no rastreamento de contatos. Ao se fazer poucos testes, o país se torna mais reativo e menos planejador. Não investimos de forma estratégica”, diz.


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