A Fazenda Terra Roxa tem pista de pouso e é tão grande que atinge três municípios no sudeste do Pará: Cumaru do Norte, São Félix do Xingu e Santana do Araguaia. O fazendeiro, criador de gado, costuma chegar de aeronave particular nas suas propriedades. Já três de seus trabalhadores bebiam água e tomavam banho em um córrego sujo; dormiam em um barraco de lona, trabalhavam de domingo a domingo e não recebiam salário de forma regular.
Pior: o fazendeiro dizia que eles tinham uma dívida de R$ 109 mil em comidas e insumos. Um deles chegou a ser picado por uma cobra, passou mal e não recebeu primeiros socorros. Estavam vivendo assim há 9 meses.
Quando os trabalhadores decidiram denunciar as condições desumanas à Polícia Federal (PF), por meio de um vídeo gravado do celular em que um deles dizia que “não dá para viver assim”, o gerente da Fazenda Terra Roxa ficou sabendo que haveria vistoria no local e expulsou os trabalhadores sob tiros. Os três empregados estavam no meio do mato quando foram resgatados em 26 de janeiro, por uma fiscalização conduzida por auditores fiscais do trabalho, Ministério Público do Trabalho (MPT) e PF.
Foi a terceira vez que o proprietário da fazenda, Sérgio Luiz Xavier Seronni, foi autuado por trabalho escravo nos últimos 15 anos — duas delas na Fazenda Terra Roxa (em 2006 e este ano). O nome do fazendeiro entrou na lista suja do trabalho escravo em 2013. Seu filho, Sérgio Seronni, também tem mais uma autuação por trabalho escravo em outra fazenda e esteve no cadastro de 2018. Ambos foram denunciados em Ação Civil Pública do MPT, em fevereiro, como proprietários da Fazenda Terra Roxa, responsáveis por humilhar os três trabalhadores e por infringir a legislação trabalhista.
O MPT solicitou, em tutela de urgência, R$ 117 mil para pagamento das verbas rescisórias – valor já bloqueado pela Justiça – e R$ 45 mil por danos individuais às vítimas. A ação pede ainda indenização moral coletiva de R$ 1 milhão.
O caso será remetido ao Ministério Público Federal para motivar uma ação penal. “Há um movimento de apagar esse passado de impunidade, isso me dá esperança na responsabilização do Sérgio Seronni e do filho”, afirmou o procurador do Trabalho Allan de Miranda Bruno.
O procurador ressalta que “ali tinham situações de trabalho escravo que a gente não encontrava desde o início dos anos 2000”. Para Bruno, o empresariado brasileiro ainda não se “desgarrou de uma mentalidade escravocrata”. Ele comenta ainda uma justificativa comum dos patrões no ambiente rural para não colocar banheiro no alojamento dos empregados é de que se trata de um costume: “na casa deles [dos trabalhadores] já não têm banheiro, porque colocaria no alojamento do trabalho?”.
‘Preciso dar um basta’
“É muito difícil isso que a gente tem passado, é coisa de outro mundo, apesar de ser um mundo mais moderno”, falou o trabalhador enquanto filmava o lugar com redes armadas em pedaços de pau. “Já são 9 meses sem poder sair daqui, estou precisando dar um basta”, desabafou. No vídeo de 3 minutos, narrou ainda que não estavam sendo pagos. “Toda vez que a gente pede dinheiro, [o patrão] diz que não tem e que estamos devendo, sem a gente estar, muita nota falsa, muita falsidade”.
Fica perceptível a revolta do trabalhador por não ter o seu salário, mas também o sofrimento por tudo que estava vivendo. “Olha o lugar que a gente está aqui, com esse córrego velho, só bosta de capivara que desce da represa”. E reconhece: “a dificuldade sempre está aqui com a gente”.
Além de expulsar os trabalhadores a tiros, o gerente da fazenda levou um trator para destruir tudo, tocou fogo nos barracos e expulsou os empregados enquanto os ameaçava. Mas eles voltaram e registraram imagens dos restos do alojamento — ainda com fumaça. O procurador ressaltou que se a operação de resgate tivesse atrasado um dia, não teriam encontrado vestígios do acampamento nem os trabalhadores na fazenda para o flagrante.
As autoridades estiveram no local e, apesar de os proprietários terem tentado desmantelar o alojamento precário, comprovaram as cenas do vídeo. Encontraram, inclusive, as cápsulas dos tiros disparados.
Além das condições precárias, não havia transporte para que os empregados saíssem da fazenda — o núcleo urbano mais próximo fica a 150 km. Mas ainda que tivessem como deixar o lugar, geralmente “os trabalhadores só saem quando recebem salário e se tiverem com os documentos deles”, explicou Bruno. Esses empregados da Fazenda Terra Roxa estavam com as carteiras de trabalho retidas pelos patrões, tendo sido recuperadas na operação de resgate.
O auditor do trabalho José Weyne Marcelino avalia que a maioria das vítimas de escravidão contemporânea só denuncia quando os empregadores deixam de fazer o pagamento. “Quando são destratados ou humilhados, eles também denunciam, mas, infelizmente, muitos aceitam viver em alojamentos degradantes”, disse.
Sabiam, mas não fizeram nem o básico
Após quatro autuações por trabalho escravo, os Serronis sabiam quais os direitos garantidos na legislação para os trabalhadores. Em 2006, se comprometeram a cumpri-las, através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) após terem escravizado, na mesma Fazenda Terra Roxa, 16 trabalhadores, entre eles duas mulheres e um adolescente.
Assinar carteira de trabalho, disponibilizar alojamentos, equipamentos de proteção individual, transporte digno, água potável, áreas de vivência, conforto, higiene, treinamentos etc. Deveriam providenciar o básico aos seus funcionários. Não só não fizeram, como se esquivaram da Justiça, sem demonstrar qualquer vontade de resolver a situação dos trabalhadores resgatados, segundo o procurador Bruno.
“Com um empreendimento rural deste tamanho, diante de uma grave violação de direitos humanos, não entraram em contato nem para tentar uma conciliação”, lamentou Allan Bruno. A reportagem entrou em contato com o advogado dos Serroni, José Rufino Alves, que disse que o cliente não tinha interesse em se pronunciar.
Em 2018, Serroni foi autuado por escravizar outros três trabalhadores na fazenda Santa Maria da Boca do Monte, perto da Terra Roxa. Em todos os casos, pagaram multas por danos coletivos e individuais. É como se “escravizar” valesse à pena, avalia o auditor Marcelino. “[O empresário] só entende se for preso”, afirmou.
Desconfiados que poderiam haver mais trabalhadores em condições ilegais, os auditores pesquisaram as propriedades dos Seronnis, mas enfrentaram dificuldades de acesso às fazendas. A região de São Félix do Xingu é dominada por fazendeiros da pecuária, com uma população de gado maior que a de moradores. “Existe uma estrada particular dos produtores, com guarita e pedágio para chegar nas propriedades”, contou Marcelino.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil