R$ 200 mil por semana: como funciona o mercado de aeronaves que apoia o garimpo ilegal na TI Yanomami

Com lucro milionário, responsáveis pelo transporte aéreo do ouro extraído ilegalmente se aproveitam da impunidade e da falta de fiscalização; essenciais para a atividade, pilotos têm relação com políticos e contratos com órgãos do governo
Por Piero Locatelli e Guilherme Henrique
 24/06/2021

Não é apenas a venda do ouro arrancado ilegalmente da Terra Indígena Yanomami que enche o bolso dos que estão ligados ao garimpo. Pilotos e donos de aeronaves que fazem o transporte até a área também vêm enriquecendo, chegando a faturar R$ 200 mil por semana, segundo a Polícia Federal. São eles os responsáveis pela logística que sustenta a atividade garimpeira na TI, onde as pequenas aeronaves são o principal meio de acesso, já que o território indígena é distante de estradas e cortado por rios pouco navegáveis. 

São incontáveis operadores que controlam o espaço aéreo desta TI com a certeza de impunidade – uma segurança obtida pela falta de fiscalização da atividade, pela ligação de garimpeiros com políticos e até mesmo por contratos com órgãos do governo. “Se estrangularmos a logística, o garimpo sofre um duro golpe”, afirma o procurador Alisson Marugal. “Mas a fiscalização, responsabilidade da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e da FAB (Força Aérea Brasileira), é muito frágil”.

Com a certeza da impunidade, operadores de voo controlam o céu das áreas de garimpo da TI Yanomami; na imagem, helicóptero e um avião são flagrados na região do Homoxi (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Denúncias feitas pelo Ministério Público Federal com base em três grandes operações de órgãos investigadores na última década revelam o grande número de pessoas envolvidas na logística ao garimpo ilegal: dos 87 denunciados, pelo menos 8 atuavam como pilotos e outros 31 na “equipe de apoio”, trabalhando como operadores de rádios clandestinas e fornecedores de insumos.

Para entender como funciona essa rede milionária – que viabiliza a destruição do território, de famílias e do modo de vida Yanomami –, basta ver o caso de Valdir José do Nascimento, conhecido como Japão. Descrito pelo MPF como o “maior fomentador da atividade garimpeira ilícita na Terra Indígena Yanomami”, ele é dono de pelo menos três aeronaves que seriam fretadas para garimpeiros. A PF apurou com um funcionário de Nascimento que somente em uma semana iriam ser realizados mais de 20 fretes para o garimpo. 

“Sabe-se que cada frete aéreo para o garimpo custa em média de 10 a 12 gramas de ouro (R$ 10 mil a 12 mil), assim somente em uma semana, a organização criminosa auferia lucro de cerca de R$ 200 mil”, aponta um dos inquéritos. 

Uma agenda apreendida nas investigações mostra que Nascimento operou ao menos 221 fretes para outros contraventores. Fretes que serviam não somente para escoar o ouro, mas também para transportar trabalhadores, alimentos, combustíveis e instrumentos – fundamentais para a extração do metal. Armas e munição também eram enviados e vendidos por Nascimento a outros garimpeiros da área.

“Se estrangularmos a logística, o garimpo sofre um duro golpe”, afirma o procurador Alisson Marugal

Sua frota de aviões, porém, é ainda maior do que aquela que aparece nos inquéritos. Atualmente há oito aeronaves registradas em seu nome, segundo registros da Anac: sete monomotores da norte-americana Cessna (que comportam até quatro passageiros) e um bimotor da Embraer (nove passageiros). Todos datam da década de 1970, sendo que quatro deles possuem restrições de voos determinadas pela Anac.

Responsáveis pelo transporte aéreo até a TI Yanoamami, proprietários de aeronaves e pilotos têm relação com políticos e contratos com órgãos do governo (Foto: Christian Braga/Greenpeace)

A atuação de Nascimento no garimpo extrapolava a atividade envolvendo o frete de aeronaves. Ele também possuía balsas destinadas à extração de ouro e comandava uma rede de garimpeiros, fornecedores de combustível, de armas e munição. Segundo o MPF, seu grupo “apresenta um completo domínio vertical da atividade de garimpo”, controlando inclusive a sua venda para intermediários em Boa Vista. Nascimento foi investigado na operação Xawara, a primeira do MPF a esmiuçar o garimpo na Terra Indígena, em 2012. Nascimento não respondeu às ligações da reportagem.

Aeroporto de apoio ao garimpo opera sem restrições

A impunidade também permeia o trecho terrestre do apoio logístico, operado a partir da periferia de Boa Vista, onde fica o aeródromo Barra dos Ventos – principal ponto de partida e chegada dos voos com destino à TI. É lá que os proprietários abrigam as aeronaves e onde é feita a manutenção dos aviões e de onde partem os voos, segundo a Polícia Federal.

O aeroporto é controlado por Adão de Pinho Bezerra, cuja frota carrega, além de alimentação, combustível e maquinário, uma série de contravenções. Mesmo antes de suas aeronaves terem sido flagradas na logística do garimpo ilegal, Bezerra já havia sido denunciado pelo MPF-RR na operação Metástase por fraudes na contratação e licitação para táxis aéreos na Funasa, em 2007. 

Apesar das constatações da Polícia Federal, o aeroporto segue funcionando, segundo a Anac. Continua aberto, inclusive para o tráfego aéreo rumo ao garimpo ilegal. A reportagem tentou contato com Bezerra por meio de seu advogado, mas não obteve retorno. 

Casos como os de Nascimento e Bezerra deixam patente como as ações contra a logística do garimpo têm sido insuficientes. “Enfraquecer essa rede é um dos nossos pleitos mais fortes para acabar com garimpo ilegal,” diz o procurador Marugal. “A destruição das pistas, responsabilidade do Exército, da Polícia Federal e do Ibama, até acontece. Mas, pouco tempo depois, já há outra no lugar”. 

Para evitar esse cenário, os Yanomami pedem, além de um controle do espaço aéreo da TI, o destacamento de agentes para impedir a abertura de novas pistas clandestinas – há atualmente 36 delas, usadas majoritariamente por garimpeiros. Em carta enviada à Polícia Federal, os indígenas afirmam que a simples destruição das pistas não é suficiente, e defendem que as aeronaves encontradas no local sejam leiloadas, e até utilizadas pelo próprio governo na fiscalização da terra posteriormente. 

“A ação de desativar as pistas custa muito caro para o poder público e pouco para os criminosos, que em duas semanas as refazem”, afirma a Associação do Povo Yekuana do Brasil. “É imprescindível que as aeronaves e outros bens como caminhões utilizados na prática do crime sejam alienados, eles podiam estar à disposição da Funai, da Polícia Federal, do ICMbio e da Sesai”.

Mapa: Giovanny Vera/Amazônia Real

O geógrafo Estevão Benfica Senra e pesquisador da questão da exploração ilegal de ouro afirma que o “estrangulamento da logística” deveria ser uma prioridade no combate ao garimpo ilegal. Para Senra, o controle mais rígido passaria por dinamitar as pistas de pouso, a fiscalizar os aeródromos do estado e recadastrar e fiscalizar as aeronaves que passam no local.

“Com o estrangulamento, você criaria uma situação onde os próprios garimpeiros se voluntariam para sair da área”, diz Senra. Segundo ele, ainda que ocontrole logístico não impedisse toda a atividade do garimpo no local, reduziria o problema a uma escala mais controlável. O especialista enfatiza que a solução do problema passaria pela ação conjunta de diferentes órgãos do poder público, como Anac, Funai, o Ministério da Defesa e a Agência Nacional de Mineração. 

Procurada, a Funai afirmou que “reconhece a existência de pistas de pouso clandestinas localizadas em áreas indígenas, porém não pode afirmar com precisão esse número.” A fundação também disse que “apoia o Ministério da Defesa e a Polícia Federal nas ações de fiscalização de aeródromos clandestinos no interior das Terras Indígenas”. A Funai não respondeu a questionamentos sobre o número de operações e ações específicas com esse intuito.

A Anac afirmou que a agência “não conta com previsão legal que lhe confira poder para destruição ou interdição de pistas clandestinas”. Segundo a Anac, “as possíveis infrações identificadas que não sejam de competência da Agência, são denunciadas ao Ministério Público e às autoridades policiais para que sejam adotadas as medidas cabíveis.”

O Ministério da Defesa informou que “o Exército Brasileiro continua, atualmente, auxiliando a Funai na destruição de pistas clandestinas da TI Yanomami, quando solicitado por aquela Fundação.” A pasta não informou mais detalhes do trabalho para coibir pistas clandestinas e aeronaves suspeitas.

Proximidade com políticos

Inquéritos da Polícia Federal obtidos pela Repórter Brasil em parceria com a Amazônia Real por meio da Lei de Acesso à Informação revelam ainda a proximidade entre pilotos acusados de envolvimento com garimpeiros e políticos do Estado. 

Os agentes federais, por meio de interceptações telefônicas, encontraram ligações do piloto Thiago Cappelle para o deputado estadual Marcelo Cabral (MDB) e para Guilherme Campos, filho da ex-governadora de Roraima Suely Campos (PP).

Senador Chico Rodrigues vendeu aeronave, flagrada sobrevoando o território Yanomami, para o piloto Thiago Cappelle (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

A assessoria de Cabral informou que o contato com o piloto “foi estritamente comercial”. Segundo a nota enviada à reportagem, “o parlamentar precisou fazer voos em 2018, para cumprir compromissos de sua agenda em cidades e vilas interioranas distantes da capital, Boa Vista.” A reportagem não conseguiu contato com Guilherme Campos.

Além disso, Cappelle adquiriu a aeronave de prefixo PT-KEM do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), que ficou famoso por ter sido pego pela Polícia Federal, em outubro do ano passado, tentando esconder R$ 33 mil na cueca, durante operação em sua casa, em Boa Vista. 

Esta aeronave, por certo, tem história para contar. Como antecipou a Repórter Brasil em março, o senador foi proprietário deste avião entre 13 de junho de 2011 a 28 de fevereiro de 2018, de acordo com certidão da Anac. E esta aeronave entrou diversas vezes no território entre 2018 e 2019. Primeiro, sob propriedade do senador, que também foi governador de Roraima e, depois, sob comando de Cappelle.

Thiago Cappelle foi denunciado pelo MPF de Roraima em 2020 por organização criminosa (Reprodução Facebook)

Chico Rodrigues escapou da mira dos órgãos investigadores, mas o mesmo não se pode dizer sobre o seu sobrinho, Leonardo Rodrigues Moreira. Segundo inquérito, uma das investigadas deu depoimento à Polícia Federal afirmando que Leonardo, que foi vereador de Boa Vista entre 2016 e 2020, era dono de garimpo na terra indígena. Ele não chegou a ser denunciado pelo MPF.

O senador Chico Rodrigues afirmou à Repórter Brasil, em março, que “à época dos fatos narrados, já havia transferido a posse [do avião]”, porém não enviou documentos que comprovassem a informação. Disse ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que no período em que de fato tinha a posse da aeronave, “não realizou qualquer voo em região de garimpo ilegal”.  

Contratos com o governo

Além da proximidade com políticos, pelo menos dois dos proprietários das aeronaves que sobrevoaram os garimpos têm contratos com órgãos do governo. Na prática, o dinheiro do contribuinte brasileiro termina remunerando quem atua e dá suporte logístico a garimpos ilegais.

Cappelle, denunciado pelo MPF de Roraima em 2020 por organização criminosa, é um desses casos. Documento obtido pela Repórter Brasil mostra que ele foi nomeado, em 2015, para cargo comissionado como piloto para a Casa Militar de Roraima. Procurados, Cappelle e a Secretaria de Segurança de Roraima não responderam aos e-mails da reportagem.

Indígenas e autoridades acreditam que é preciso ‘estrangular’ a logística do transporte aéreo ilegal na Terra Indígena Yanomami para, assim, enfraquecer o garimpo (Foto: Instituto Socioambiental/Divulgação)

Outro proprietário de uma aeronave flagrada pelos indígenas sobrevoando áreas de garimpo é Rodrigo Martins de Mello, dono das empresas Voare e Icaraí Turismo Taxi Aéreo. Um levantamento dos indígenas aponta que um helicóptero de Mello realizava voos diários para a região de garimpo. 

A Icaraí Turismo Táxi Aéreo tem contratos firmados com o Ministério da Saúde para o atendimento em terras Yanomami durante a pandemia. A companhia recebeu R$ 24,3 milhões dos cofres públicos, sendo que R$ 17 milhões foram no governo Jair Bolsonaro, segundo o jornal O Globo. 

No ano passado, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) abriu um processo para apurar possíveis irregularidades cometidas pela Icaraí Turismo Táxi Aéreo. Desde 17 de junho de 2020, a empresa está proibida de operar, por decisão da Anac, e mesmo assim a companhia seguiu transportando indígenas e equipes dos DSEIs, segundo denúncia de O Globo. 

O Ministério da Saúde afirmou que “todos os contratos seguem rigorosamente a legislação e eventuais irregularidades devem ser investigadas pelas autoridades policiais.” Já a Icaraí Turismo Taxi Aéreo não respondeu à reportagem.

A suspeita da Polícia Federal e do MPF é a de que as aeronaves de Mello sejam fornecedoras do esquema de Pedro Emiliano Garcia, o Pedro Prancheta, condenado por genocídio de Yanomami na década de 1990 e que, segundo acusação do MPF, continua operando nos garimpos ilegais. Prancheta foi acusado pelo MPF em três denúncias sobre o garimpo ilegal na TI, por organização criminosa, dano ambiental, usurpação de recursos da união e comunicação clandestina. 

Leia também: Zé Altino, memória-viva do garimpo

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Amazônia Real: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor de especiais); Alberto César Araújo (editor de fotografia), Elaíze Farias (editora de conteúdo); Maria Fernanda Ribeiro, Clara Britto e Alicia Lobato (repórteres); Bruno Kelly (fotografia do sobrevoo) e Paulo Dessana (fotógrafo); Lívia Lemos (mídias sociais); Maria Cecília Costa (assistente executiva); Giovanny Vera (mapa); César Nogueira (montagem); e Nelson Mota (desenvolvedor).

Repórter Brasil: Ana Magalhães (coordenadora de jornalismo); Mariana Della Barba (editora); Mayra Sartorato (editora de redes sociais); Piero Locatelli e Guilherme Henrique (repórteres); Joyce Cardoso (estagiária).



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