Produtores de café certificados com flagrantes de trabalho escravo fazem parte da cadeia de negócios que abastece gigantes do varejo na Europa. É o que revela a décima edição do Monitor, boletim da Repórter Brasil que analisa problemas sociais e ambientais de cadeias produtivas, lançado nesta quarta-feira (23).
“Café certificado, trabalhador sem direitos 2” é a continuação de uma pesquisa realizada em 2016, que mapeou casos de violações trabalhistas em propriedades certificadas e apontou as falhas e desafios dos sistemas de certificação do setor no país, maior exportador de café e responsável por 34,7% da produção mundial do grão em 2019, segundo levantamento da Organização Internacional do Café.
Nesta segunda edição, a investigação avança sobre o escoamento do produto e apresenta casos concretos de crimes e irregularidades que fazem parte, direta ou indiretamente, da cadeia de negócios de compradores locais, exportadoras, torrefadoras e líderes do varejo mundial, como as multinacionais alemãs Neumann Kaffee Gruppe (NKG) e Melitta, as subsidiárias na Suíça e Alemanha da UCC Coffee, grupo multinacional com sede no Japão, além de redes varejistas como Carrefour, Coop, Jumbo, Lidl, Metro e Tesco, com milhares de lojas espalhadas pelo continente.
Resultado de meses de apuração, que incluíram entrevistas com trabalhadores, sindicalistas, auditores-fiscais, procuradores e pesquisadores, o relatório descreve as violações trabalhistas e de direitos humanos que afetam a mão de obra do setor no Brasil e mostra que há ainda um longo caminho a percorrer para garantir uma cadeia produtiva que assegure condições de trabalho e de pagamento dignas.
Cadeia de negócios contaminada
Das cinco fazendas com irregularidades trabalhistas analisadas pela Repórter Brasil na publicação, três tiveram flagrantes de trabalho escravo entre 2018 e 2019. Fazendeiros fornecedores de empresas e cooperativas que fazem parte da cadeia de negócios de grandes redes varejistas globais estão entre os casos mapeados.
É o caso da cafeicultora Maria Júlia Pereira, dona da Fazenda Córrego da Prata, em Muzambinho (MG). Em julho de 2018, uma operação de fiscalização flagrou 15 trabalhadores, entre eles um adolescente de 17 anos, em condições análogas à escravidão que atuavam na colheita do café da fazenda.
A propriedade era arrendada para Elias Rodrigo de Almeida, que ficava com 80% do café produzido, sendo que os 20% restantes eram repassados à proprietária da fazenda, de acordo com o relatório de fiscalização.
Trabalhadores ouvidos pela Repórter Brasil afirmam que era Maria Júlia quem realizava os pagamentos e que a Fazenda Córrego da Prata era fornecedora de mudas de café replantadas na outra propriedade da cafeicultora, a Fazenda Boa Vista/Coutinho, localizada no município de Nova Resende (MG), a 37 km.
Certificada pela C.A.F.E. Practices, sistema de certificação da rede de cafeterias Starbucks, a propriedade integra um grupo de fornecedores certificados da Exportadora de Café Guaxupé. Maria Júlia Pereira nega a relação entre as duas fazendas e afirma que desconhecia as práticas da propriedade arrendada.
Já a Fazenda Santa Rita das Paineiras – novo nome da Fazenda Córrego da Prata – possui certificação UTZ desde 2019. A Exportadora de Café Guaxupé confirmou ter adquirido o café da produtora, oriundo das fazendas Boa Vista/Coutinho e Santa Rita das Paineiras entre 2019 e 2020, mas afirmou que nunca adquiriu café da fazenda fiscalizada com trabalho escravo.
Das propriedades de Maria Julia Pereira, o café alcança multinacionais de compra e venda do grão, torrefadoras e redes varejistas. Dados de 2019 e 2020 acessados pela Repórter Brasil mostram que a Exportadora de Café Guaxupé abasteceu os grupos NKG, Melitta e UCC Coffee.
O café negociado pelos três importadores mencionados acima chega aos clientes finais através de diversos canais de comercialização. Eles incluem alguns dos maiores expoentes do varejo global de alimentos, como as redes britânicas Tesco, Waitrose e Asda, a rede Coop, da Suíça, a holandesa Jumbo, a cadeia francesa de hipermercados E.Leclerc, além das alemãs Aldi, Metro e Lidl.
Consultadas pela Repórter Brasil, as empresas citadas não informaram as fazendas de origem do produto utilizado em seus cafés de marca própria. Em alguns casos, afirmaram que nunca adquiriram, reconhecidamente, café com origem em fazendas flagradas com trabalho escravo.
Entretanto, lacunas de rastreabilidade geram dúvidas sobre a real origem do café. Os casos detalhados no Monitor mostram que as fazendas palco dos problemas, bem como os empregadores envolvidos, estão conectados a uma complexa rede de escoamento do produto.
São diversas as etapas de processamento do grão, que envolvem diferentes modelos de negociação e uma série de intermediários entre os cafezais e o consumidor final. Não raro, lotes de diversos cafeicultores são misturados em vendas realizadas por cooperativas, tradings e exportadores. E a informação sobre a fazenda de origem, nesse contexto, muitas vezes se perde ao longo do caminho. Essa complexidade ajuda a “mascarar” as más práticas trabalhistas eventualmente ligadas ao café que chega às prateleiras dos supermercados.
Falhas e desafios da certificação
Novamente registrada neste relatório, outra posição comum de varejistas e torrefadores, frente a denúncias que afetem as suas redes de fornecimento, é afirmar que suas políticas de compras são focadas, total ou parcialmente, na aquisição de cafés certificados.
Diversos exemplos publicados pela Repórter Brasil ao longo dos últimos anos – alguns deles detalhados no relatório – mostram as falhas nos sistemas de certificação. Fazendas detentoras dos mais importantes selos de sustentabilidade para o café incluem até mesmo locais onde ocorreu o resgate de trabalhadores escravizados. Ano após ano, flagrantes trabalhistas graves em fazendas portadoras de selos acende uma enorme luz amarela.
Monitor nº 10 – “Café certificado, trabalhador sem direitos 2”
Em português:
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Em inglês:
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