‘Compro tudo’: ouro Yanomami é vendido livremente na rua do Ouro, em Boa Vista

Flagramos aquisição ilegal do metal nas pequenas lojas da Rua do Ouro, que se espalham por outras áreas da cidade. Entre os clientes, tem até uma funcionária da saúde indígena
Por Maria Fernanda Ribeiro e Clara Britto
 24/06/2021

Na capital de Roraima, Boa Vista, parte do ouro extraído ilegalmente na TI Yanomami circula livremente por entre dezenas de joalherias. Um tradicional centro desses pequenos comércios é a chamada Rua do Ouro, onde muitos garimpeiros vão vender o que extraíram. O clima é de poucos amigos e escassos clientes. Mas bastaram três dias para a reportagem da Amazônia Real flagrar a compra e a venda de ouro ilegal proveniente do garimpo. 

Já era quase o fim do horário comercial, numa tarde de abril, quando a reportagem foi convidada pela atendente a entrar na loja Opalo, na avenida Benjamin Constant. A vendedora, que não sabia que estava diante de uma jornalista, fez o convite após confirmar que ali são vendidos brincos de ouro. Assim que pisamos na loja, a porta foi trancada e um dos sócios, identificado como Willians Suarez, trouxe dos fundos um mostruário preto com joias. Ele as expôs em cima do balcão e afirmou terem garantia e certificado. Sem vitrine ou joias expostas, o interior do estabelecimento remete  a um modesto escritório, distante de qualquer ostentação.

Enquanto a reportagem se informava sobre o preço e as formas de pagamento, um homem entrou no local e perguntou se o estabelecimento comprava “ouro do garimpo”. O proprietário respondeu de maneira afirmativa. Não dava para identificar se se tratava de garimpeiro, dono de garimpo ou um atravessador. Ele chegou de moto, vestia bermuda jeans e sandália.

Antes de chegar a grandes joalherias do país ou até o exterior, o ouro extraído ilegalmente do território Yanomami passa por lojinhas da Rua do Ouro, em Boa Vista (Foto: Pixabay)

Poucos minutos depois, ainda dentro da loja Opalo, uma mulher, vestindo uma máscara de proteção com o logotipo da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), entrou e fez a mesma pergunta. O lojista Suarez voltou a confirmar que “comprava tudo.” A porta continuava trancada. Deixamos o estabelecimento, mas continuamos a acompanhar a movimentação pelo lado de fora.

A mulher, identificada como sendo a fisioterapeuta Thatyana Almeida, deixou o carro ligado, com os faróis acesos e sem estacionar – distante da guia – enquanto permanecia na loja Opalo. Instantes depois, ela saiu da joalheria, pegou um pacote no porta-luvas e entrou novamente. A reportagem identificou a funcionária da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, por meio da placa do carro em que ela chegou dirigindo, uma Corolla preto placa NOY-1G90 registrado no nome de um familiar dela. O mesmo veículo aparece em uma postagem na rede social de Thatyana em 23 de dezembro de 2020.

Numa rede social, a fisioterapeuta informa que trabalha como enfermeira na Sesai desde 2016. Em postagem de 12 de abril, ela aparece em fotos com os Yanomami aplicando vacinas, com a legenda “15 dias de missão, só tenho a agradecer a Deus pelo meu trabalho realizado com êxito e sempre cuidando e fazendo o meu melhor para aqueles que mas (sic) necessitam o povo indígena. Povo Yanomami”.

A troca de vacina por ouro por funcionários da Sesai já foi alvo de denúncia pela Hutukara Associação Yanomami ao Ministério Público Federal. Em abril, lideranças no território informaram que doses de vacina estariam sendo vendidas a garimpeiros em troca de ouro. A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas também denunciou o caso para a CPI da Covid.

O verdadeiro negócio, a compra e venda de ouro ilegal, ocorre nos fundos dos estabelecimentos da chamada Rua do Ouro; na Joalheria Opalo, a reportagem flagrou uma agente de saúde indígena da Sesai vendendo ouro de garimpo (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Thatyana Almeida foi procurada pela reportagem por telefone e pela rede social. O telefone dela caiu na caixa postal durante os três dias em que a reportagem tentou contato. Após envio de mensagem pela rede social por mensagem particular, ela apagou o perfil. A reportagem também enviou mensagem pelo Whatsapp, mas não obteve resposta.

O Ministério da Saúde informou, via assessoria de imprensa, que vai apurar o caso e está à disposição das autoridades para prestar todas as informações necessárias.

Sobre as investigações de troca de vacina por ouro denunciada pela Associação Hutukara, o Ministério Público Federal informou que o órgão “oficiou os Dseis (Distrito Sanitário Especial Indígena), fizemos reunião com os órgãos envolvidos e marcamos outra reunião para o dia 28 de junho para tratar destas questões na TI”.

Willians Suarez, da joalheria Opalo, foi procurado por telefone, mas não foi encontrado. Ele também não respondeu à mensagem enviada para o seu perfil na rede social. 

fisioterapeuta Thatyana Almeida
Funcionária da Sesai, a fisioterapeuta Thatyana Almeida trabalha na área de saúde na Terra Indígena Yanomami (Foto: Reprodução/Facebook)

As empresas da Rua do Ouro

A Rua do Ouro foi estabelecida no auge do garimpo, entre os anos de 1980 e 1990, quando se chegou a ter mais de 40 mil garimpeiros ilegais na terra indígena. O negócio prosperou e a rua se expandiu para outras três vias: a avenida Benjamin Constant e as ruas Cecília Brasil e Araújo Filho, localizadas no centro de Boa Vista. A reportagem contou 39 lojas de venda de joias e compra de ouro abertas nesses endereços, mas algumas não têm fachadas, o que não permite a identificação dos proprietários no cadastro da Receita Federal. Apenas 19 lojas têm CNPJs ativos junto ao órgão. Dessas, ao menos oito joalherias e 14 empresários ou funcionários foram investigados pela Polícia Federal por envolvimento direto na compra de ouro dos garimpos ilegais de Roraima.

Da rua do ouro, muitos atravessadores seguem para Manaus (AM) ou Itaituba (PA) para legalizarem o metal, que termina na vitrine de grandes joalherias, como a HStern.

Em 1989, a Rua do Ouro saiu nas páginas do jornal The New York Times como um centro de circulação do minério vindo da área indígena Yanomami. Hoje, a via ainda reúne as mesmas fileiras de lojinhas coladas umas às outras, ainda que muitos empresários estejam migrando seus negócios para outras áreas menos visadas da cidade, como as Avenidas Ataíde Teive e Solón Rodrigues Pessoa, a alguns quilômetros dali.

As empresas da Rua do Ouro estão há anos na mira da Polícia Federal (PF), conforme mostram relatórios das três principais operações realizadas contra o garimpo na Terra Yanomami desde 2012. Nesse período foram investigadas e denunciadas à Justiça as joalherias: Du Ouro, Naza Jóias, Gold Joias, Safira, Aliança, Guimarães Ouro, Ouro Mil e Princesse Jóias Os nomes não deixam dúvidas, mas pelas fachadas com letreiros simplórios dessas e de outras empresas que funcionam lá –  muitos pintados à mão – um visitante desavisado poderia nem perceber que ali também há um forte comércio de compra e venda de ouro e joias. Hoje praticamente não há vitrines com peças à mostra e a maioria das lojas parece estar fechada. Em horário comercial, quase sempre há homens, sozinhos ou em grupo, fazendo a vigilância na entrada dos estabelecimentos.

A ode ao garimpo

A Rua do Ouro surgiu em local privilegiado de Boa Vista, a poucos metros da Praça do Centro Cívico, onde fica o Palácio Senador Hélio Campos, sede oficial do poder executivo estadual, atualmente governado por Antonio Denarium (sem partido), aliado do presidente da República Jair Bolsonaro.

Manifestação de garimpeiros e defensores da mineração em terras indígenas no Centro Cívico de Boa Vista (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

É bem no centro da Praça do Centro Cívico que foi construído na década de 1960 o Monumento ao Garimpeiro, uma estátua de argamassa de borracha e alumínio com mais de sete metros de altura cravada sobre um espelho d’água. A escultura de um homem garimpando com sua bateia, um recipiente de fundo côncavo usado na lavagem da areia que contém ouro ou diamante, foi um pedido de Hélio da Costa Campos, governador do Território Federal de Roraima entre 1967 e 1969 e 1970 a 1974. 

O objetivo era estabelecer um símbolo do que o poder central planejava para o adensamento populacional da região, já proclamada como muito rica em minério, mas à espera de mão de obra para explorá-la. Antes do ouro, Roraima explorava o diamante, na divisa com a Guiana, ainda no governo de Getúlio Vargas. 

Foi na frente do Monumento ao Garimpeiro que, em 27 de abril de 2021, dias antes de os garimpeiros iniciarem uma série de ataques a tiros contra indígenas e agentes públicos de segurança na comunidade Yanomami de Palimiu, “empreendedores dos garimpos” saíram às ruas para reivindicar a legalização da atividade. 

Do alto de um carro de som, os manifestantes garantem não temer os órgãos fiscalizadores ou as autoridades e convocaram os presentes para protestar na sede do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) contra as apreensões de maquinários. “Queremos o mesmo respeito de um traficante de drogas do Rio de Janeiro”, bravou um dos presentes no carro de som. Eles sabem que parte da população de Roraima apoia a atividade criminosa de extração do ouro em terras indígenas.

Lojas de fachada

Alguns estabelecimentos ligados ao comércio de ouro permanecem ativos na Receita Federal, mas “inexistentes” na vida real; portanto, sem uma loja aberta ao público. Elas foram citadas nas operações da PF por comercializarem o ouro de sangue dos Yanomami. Faz parte dessa leva a joalheria Gold Joias, acusada na operação Warari Koxi de integrar um esquema de envio de ouro ilegal para a Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM) Ourominas, em São Paulo.

Um ourives que por mais de uma década atuou em joalherias na Rua do Ouro e redondezas, e cuja identidade será preservada, disse à reportagem da Amazônia Real que na maior parte das lojas as poucas joias à mostra nas raras vitrines são apenas um disfarce. O verdadeiro negócio, a compra e venda de ouro ilegal, ocorre nos fundos dos estabelecimentos. Ali, o minério costuma chegar na forma bruta, em pó ou em pedra, e cabe aos ourives transformá-lo em barras. 

‘Na joalheria, é só fachada, aquela pessoa é só laranja, porque o dono da grana mesmo é um grande investidor de fora’, diz ourives sobre a Rua do Ouro

“Mas é 1% do ouro que fica no comércio daqui. O ouro já sai de lá, do garimpo, com destino próprio. O que os garimpeiros e compradores fazem? Eles pegam o saldo da semana ou do mês, embrulham e entregam para um piloto trazer para a cidade. Eu já vi muito disso, o piloto chegar com 10 pacotinhos de ouro, colocar na minha mesa e falar ‘Isso aqui é de Fulano, de Sicrano. Tá aqui a lista, os contatos, para quem tem de vender e para quem tem de depositar’ ”, disse. 

Intermediários e atravessadores

Segundo essa fonte, boa parte dos proprietários das joalherias envolvidas no esquema do ouro ilegal é apenas um nome no papel, um preposto ou um laranja. Os verdadeiros donos são investidores baseados nas regiões Sul e Sudeste do País. Ele disse ainda que há compradores de fora que vão de avião ou helicóptero e descem direto nos garimpos, alguns com seguranças armados, para comprar ouro direto dos garimpeiros – e assim pagar menos. Outros viajam só até Boa Vista, onde contam com a rede de intermediários e joalheiros. 

“Quando um empresário vai para a pista ou manda alguém lá no garimpo, ele já compra o ouro e dá o destino dele. Mas quando são os garimpeiros que vêm para a cidade, primeiro eles vendem para os empresários locais, que depois vendem para fora. E às vezes acontece de o empresário não querer ir para a pista, lá dentro do garimpo, porque acha muito perigoso, então ele vem em Boa Vista”, esclarece o ourives. Nessas situações, o detentor do metal precioso começa a fazer contatos, alicia ourives, outros empresários, monta uma compra de ouro e injeta o dinheiro dele. “Então, é assim, ali, na joalheria, é só fachada, aquela pessoa é só laranja, porque o dono da grana mesmo é um grande investidor de fora.”

Joalheria Princess já foi alvo de uma operação da Polícia Federal; a proprietária foi investigada por estar de posse de diamantes sem comprovação de origem (Google Street View)

Na mira da PF

Em outra loja da Rua do Ouro, a Princesse, a proprietária do local, Soraya Naim Sajim, contou que era muito comum pessoas aparecerem tentando vender ouro do garimpo. Trata-se de uma movimentação quase diária, mas ela negou que ali a transação fosse realizada. A Princess já caiu na mira da PF e foi investigada por estar de posse de diamantes sem comprovação de origem. No estabelecimento, foram encontradas 18 pedras brutas de diamantes em 7 de maio de 2015, durante cumprimento de mandado de busca e apreensão. 

Por telefone, Soraya disse ainda à reportagem que a joalheria trabalha somente com joias já fabricadas em São Paulo e Minas Gerais. Também afirmou que o diamante encontrado pela polícia “estava jogado dentro do cofre, há muitos anos. Não tinha valor comercial. A gente conseguiu mostrar isso pra eles (PF). Era a chamada (pedra) industrial, não se lapida”. “A gente nunca trabalhou com coisas ilegais”.

Já na Joalheria Aliança, de propriedade de Jackson Gomes Lima, também alvo da PF em 2015 por comprar ouro ilegal da TI Yanomami, no ano de 2015, a informação fornecida por uma das atendentes foi de que toda a joia vendida vem de ouro de sucata. Ou seja, viria daquele pingente, corrente e brinco antigo que já não se quer mais.

Por telefone, Jackson Lima, também negou comprar ouro de garimpo.  “Aqui ninguém compra de garimpo Yanomami. A gente trabalha com sucata. Com produtos comprados de leilão da Caixa. Não sei por que a nossa loja foi mencionada pela PF”, disse à reportagem.

Algumas lojas da Rua do Ouro formam uma rede composta por sete joalherias localizadas nas redondezas e são ligadas a uma única família: os Venâncio, vindos do município de Pauini, no Amazonas.

Um dos empresários é José Raimundo de Castro Venâncio, proprietário da  joalheria Ouro Mil. Ele foi alvo da PF ainda em 2015 na operação Warari Koxi, que mirou em joalherias e DTVMs envolvidas na compra e venda de ouro ilegal da TI Yanomami. As DTVMs são empresas do sistema financeiro autorizadas pelo Banco Central a comercializarem o metal localizadas na Avenida Paulista, na capital de São Paulo. No curso da investigação, ele prestou depoimento e confirmou já ter comprado ouro de garimpo, e ter feito negociações com a DTVM Ourominas de 1988 a 1990. Por dois dias, a reportagem tentou contato com a joalheria Ouro Mil por meio do telefone registrado na Receita Federal, mas as ligações não foram atendidas.

Leia sobre o papel das DTVMs na venda do ouro ilegal

Em maio de 2015, a PF esteve na Ouro Mil e apreendeu 22 gramas de ouro bruto oriundo da terra indígena. A empresa é a mais antiga da família e foi registrada na Receita Federal ainda em 1990. Em 2004, Venâncio fracassou na sua tentativa de se eleger vereador de Boa Vista pelo PPS. Na prestação de contas ao TSE, curiosamente o comerciante de ouro não declarou bem algum.

Apenas 19 lojas da Rua do Ouro têm CNPJs ativos; dessas, ao menos oito foram investigados pela Polícia Federal por envolvimento direto na compra de ouro dos garimpos ilegais (Google Street View)

Outro ponto que chama a atenção são as constantes mudanças nas fachadas e endereços das lojas da região da Rua do Ouro. A Safira Joias, denunciada nas operações Xawara e Warari Koxi, ainda consta como ativa na Receita Federal, mas em sua fachada atualmente tem outro nome: “Caraúbas Joias”. A reportagem não localizou o CNPJ desse estabelecimento na Receita, e nem em mecanismos de buscas na internet. A Safira Jóias também é arrolada no inquérito da operação Tori, deflagrada em 2017. 

Naquele ano, um relatório da PF apontou a informação de que um dos sócios da joalheria à época, além de comprar ouro ilegal da TI Yanomami também emprestava dinheiro para pelo menos três donos de aeronaves comprarem mantimentos para garimpeiros que estivessem agindo em campo. A lista de pedidos feitos pelos garimpeiros era passada por radiofonia a uma central ilegal em Boa Vista, onde as compras eram feitas e depois enviadas. Nessas negociações, o dinheiro emprestado pelo empresário aos donos de aeronaves era descontado de futuros fretes para transporte de ouro, segundo a polícia. A reportagem tentou contato por telefone com a joalheria Safira através do número registrado junto à Receita Federal, mas as ligações não foram atendidas. 

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Amazônia Real: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor de especiais); Alberto César Araújo (editor de fotografia), Elaíze Farias (editora de conteúdo); Maria Fernanda Ribeiro, Clara Britto e Alicia Lobato (repórteres); Bruno Kelly (fotografia do sobrevoo) e Paulo Dessana (fotógrafo); Lívia Lemos (mídias sociais); Maria Cecília Costa (assistente executiva); Giovanny Vera (mapa); César Nogueira (montagem); e Nelson Mota (desenvolvedor).

Repórter Brasil: Ana Magalhães (coordenadora de jornalismo); Mariana Della Barba (editora); Mayra Sartorato (editora de redes sociais); Piero Locatelli e Guilherme Henrique (repórteres); Joyce Cardoso (estagiária).


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