Confira a íntegra do roteiro do episódio Trabalheira #10

Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil, cujo objetivo é discutir o futuro do trabalho
 23/06/2021

Roteiro referente ao programa Trabalheira #10: Você já fez um trabalho e foi pago em “esperança”?

Caju

Oh… Ana, hoje a gente vai abrir o programa falando de marshmallow. Cê curte?

Ana

Cara… EU AMO MARSHMALLOW! 

Caju

Eu não curto muito, não. Muito doce, pro meu gosto. Agora, cê sabe que o marshmallow é a matéria-prima de um dos experimentos mais famosos da história da psicologia, né? Se você colocar no Youtube “teste do marshmallow”, aparece um monte de vídeo…

Ana

Sim, tô ligada! É aquele teste que parece mais uma tortura, né? Você coloca um marshmallow na frente de uma criança e diz pra ela: “se você resistir e não comer esse marshmallow em, sei lá, quinze minutos… você vai poder comer dois marshmallows em vez de um só…” 

Caju

É isso mesmo, Ana! Então, esse experimento foi desenvolvido entre as décadas de 60 e 70 por uns psicólogos da Universidade de Stanford, na Califórnia. O objetivo era medir o autocontrole – principalmente das crianças. Esse experimento consagrou o autocontrole como uma virtude, uma coisa positiva – essa ideia amplamente aceita de que quem tem mais autocontrole tende a ter mais sucesso na escola, no trabalho… enfim, na vida.

Ana

Caju… Esse papo tá me lembrando uma passagem de um baita clássico da literatura brasileira. Eu acho lindo demais – é o “Lavoura Arcaica”, do Raduan Nassar. Eu não vou dar spoiler aqui… mas, pra quem nunca leu, o livro fala de um tema universal: o conflito entre um pai autoritário e um filho rebelde. Esse pai – que no cinema foi vivido pelo ótimo Raul Cortez – sempre fazia uns sermões pros filhos antes do jantar. Imagina aí, Caju, aquela cena do chefe de família, sentado na cabeceira de uma mesa bem grande…

Caju

Sim! Eu lembro do filme… Mas vagamente…

Ana

Então, tem que assistir de novo! Mas voltando aos sermões do pai… Certa vez, ele contou a história de um homem muito pobre, que estava sentindo muita fome. Num belo dia, esse homem pediu esmola na porta do palácio de um rei… um rei meio maluco, meio sádico – acho que essa é a definição correta. 

Caju

Meio maluco, meio sádico – como assim?

Ana

É que esse rei, percebendo que o cara tava realmente morrendo de fome, resolveu fazer um “joguinho”. Ele pediu aos súditos pra montar uma mesa bem bonita na sala do palácio onde ele morava e começou a brincar de faz de conta com o homem: “olha… experimente aqui esse pão maravilhoso”. Só que era um teatro,  não tinha pão nenhum. E o rei não parava: “agora prova esse peixe incrível, beba esse vinho saboroso”, e passava uma taça vazia. Tudo de mentirinha… O homem, apesar de completamente faminto, entrou na brincadeira do rei sádico. E esse faz-de-conta durou um tempão. Até que em um determinado momento o próprio rei falou pro homem faminto: “Nunca conheci uma pessoa tão paciente! E, como recompensa pelo seu autocontrole, você nunca mais vai passar fome”. 

Caju

Caramba! É basicamente o experimento do marshmallow, né? Aliás, será que tinha marshmallow nesse banquete?

Ana

Acho difícil… Até porque essa história se passa em algum reino do Oriente – não combina muito com marshmallow, né? Mas o curioso é que o protagonista do livro, o filho rebelde, imagina um outro final pro sermão do pai: o homem pobre e faminto fica possesso com tanto sadismo e resolve dar uma porrada na cara do rei. Dizendo: “A impaciência também tem seus direitos”.

Caju

Sensacional, Ana! E olha… essa parábola quase bíblica é perfeita pro tema do nosso episódio de hoje: HOPE LABOR! 

Ana

E lá vamo nóis com os termos em inglês!

Caju

Pois é… “Hope” em inglês quer dizer “esperança”. Já “labor” significa “trabalho”. Ou seja, a tradução literal de hope labor é: trabalho por esperança. E a gente tá falando em inglês porque esse conceito foi criado por uns pesquisadores americanos. Daqui a pouco, a gente explica melhor… Mas só pra deixar um aperitivo: hope labor é aquele trabalho que as pessoas fazem de graça – ou praticamente de graça – na esperança de quem sabe, um dia talvez, abrirem portas no futuro. E, pra aguentar essa bucha, tem que ser perseverante e também tem que ter bastante autocontrole e paciência, né?

Ana

Sim! Quem é profissional da área de comunicação – jornalista, publicitário, designer – tá muito acostumado a ver esse tipo de situação, né, Caju? Muito acostumado mesmo! É aquele lance de trabalhar pra fazer portfólio ou de ser pago em exposição – “ah… pelo menos, meu nome tá em evidência”. 

Caju

A gente vai falar de tudo isso! Então, seja bem-vindo, seja bem-vinda, a mais um episódio do Trabalheira – um programa da Rádio Batente, a central de podcast da Repórter Brasil. Eu sou o Carlos Juliano Barros, o Caju.

Ana

E eu sou a Ana Aranha. A Rádio Batente está disponível nas principais plataformas de áudio. E também no nosso site: reporterbrasil.org.br/radiobatente. Além de ouvir o programa, lá dá pra ler o roteiro e buscar as referências

Vinheta

Chico Felitti

Tem muita exploração fantasiada de colaboração. O que as pessoas chamam de colaboração na maior parte das vezes é exploração. E era exatamente o caso. Eu demorei muito tempo pra me dar conta disso.

Ana

Esse que tá falando é o jornalista e escritor Chico Felitti.

Chico Felitti

E eu escrevi esse texto meio que abrindo essa discussão e convidando pra discussão da falsa cultura colaborativa que, na verdade, são só empresas que exploram o trabalho das pessoas criativas em nome de um bem maior. No caso das empresas, elas lucram e a gente não ganha. Ou é a falácia da exposição… ah, não… você vai ganhar em exposição, as pessoas vão ver seu trabalho. Ou é a falácia do currículo, você vai ter portfólio, se você trabalhar aqui você vai conseguir outros trabalhos. É sempre um ouro de tolo. Alguns ouros de tolo diferentes, mas é sempre um ouro de tolo pra conseguir explorar o trabalho de alguém oferecendo uma quimera em troca, oferecendo uma ilusão. Que foi exatamente o que aconteceu comigo.

Ana

A esmagadora maioria das pessoas deixaria quieto, mas o Chico teve uma atitude muito corajosa mesmo: denunciar um caso exemplar do que a gente tá chamando no programa de hoje de hope labor. E, olha, a história bombou…

Caju

Mas o que rolou exatamente, Ana?

Ana

Então, o Chico foi convidado por uma editora grande – a Globo Condé Nast, responsável pela Glamour, uma publicação importante do mundo da moda – pra escrever um conto, um texto literário, que seria publicado em uma edição especial da revista. Mas aí a editora veio com aquele papo: “olha… sabe como é, nós adoramos o seu trabalho, mas infelizmente não temos verba pra te pagar”. Na época, o Chico tava começando ainda na carreira de escritor e achou que pudesse ser uma boa ideia.   

Chico Felitti

Eu pensei: faz parte do jogo. É uma música que todo mundo dança, é o tal “vamos fazer pela divulgação. Não vamos pagar em dinheiro, mas vamos pagar em divulgação”. Daí eu me dispus a fazer.

Entreguei o texto, ninguém falou nada, segui com a minha vida, segui o baile. E aí meses depois sai a revista e essa edição especial da revista Glamour – eles tinham se referido nos emails como edição especial – na verdade era uma edição inteira patrocinada por uma marca de xampu. E era um publieditorial. Era uma publicidade, em que eles faziam um conteúdo editorial, reportagens, ensaios de moda e esses contos, e eles não tinham me avisado disso. A editora não tinha me avisado disso. Daí eu fiquei bem aviltado, quando eu vi foi um baque muito grande, mas teve um alívio, que era um revés, na verdade, eles não usaram meu texto. Nunca me disseram por quê, mas não usaram meu texto.

Ana

Mas a história ainda não terminou. Um tempo depois, o Chico descobriu que ele não tinha sido o único a entrar nesse barco furado. E aí ele resolveu meter a boca no trombone e fez textão no Facebook.

Chico Felitti

Depois que eu publiquei esse texto, ele deu uma repercutida, e eu comecei a receber muito comentário e muita mensagem. Comecei a receber relatos de pessoas que trabalhavam pra essa editora, pra Condé Nast Brasil, funcionários e ex-funcionários falando de exploração e de más condições de trabalho. Isso foi o germe de uma reportagem sobre a cultura de assédio da CEO da empresa e ela foi afastada do cargo depois. Saiu simultaneamente no Brasil e nos EUA.

Havia uma cultura de assédio lá dentro, não era só exploração. A exploração era só uma das facetas. Eu não estou dizendo que foi a reportagem que causou o afastamento, mas dois meses depois ela foi afastada.

Caju

Nossa… Que história! Enfim, esse caso do Chico se encaixa perfeitamente na ideia de hope labor. Como a gente comentou na abertura do programa, esse conceito de trabalho por esperança foi criado por dois pesquisadores americanos – a Kathleen Kuehn e o Thomas F. Corrigan – em um artigo publicado já faz um tempinho, em 2013.

Ana

Só lembrando que, se alguém tiver curiosidade de ler, o link pro artigo tá lá no site da Rádio Batente. 

Caju

Boa, Ana! Antes de entrar no conceito propriamente dito de hope labor que eles criaram, eu queria falar sobre como a pesquisa deles foi feita. Basicamente, eles entrevistaram dezenas de pessoas que escreviam pra dois sites americanos. O primeiro deles é o SB Nation, uma plataforma que reúne diversos blogs e publica textos variados sobre esportes. Não precisa ser jornalista profissional pra escrever pro SB Nation, qualquer pessoa pode fazer isso. O segundo é o Yelp – um guia conhecido na internet que faz avaliações, principalmente, de bares e restaurantes. Boa parte das pessoas que eles entrevistaram escrevia com uma certa regularidade pra esses sites. E elas tinham um trabalho considerável pra pesquisar e redigir o texto, mesmo não ganhando nada ou ganhando muito pouco. E aí vem a pergunta: por que as pessoas topam entrar nesse esquema? 

Ana

Caju, eu acho que as pessoas fazem isso, em primeiro lugar, porque elas gostam, né?  Ninguém entra num esquema desse se não tiver muita vontade de se expressar. Acho que tem a ver com realização pessoal. 

Caju

Perfeito, Ana! Os entrevistados na pesquisa falam exatamente isso: eles gostam de escrever, se sentem bem fazendo isso, e se acham recompensados pelo simples fato de serem lidos e comentados. Essa é a primeira motivação. Mas tem um segundo fator importante – e é aí que entra a ideia de “esperança”. Ao escrever uma matéria pro site do SB Nation ou ao fazer um review sobre um restaurante pro Yelp, algumas dessas pessoas têm a expectativa de que, como diria o Silvio Santos, “vão se abrir as portas da esperança”. E aí, quem sabe, elas vão passar a trabalhar “de verdade”, ganhando o suficiente pra viver só daquilo. No fundo, é aquele lance de encarar como se fosse um pedágio que todo mundo tem que pagar pra chegar a algum lugar bacana.

Ana

Enquanto você fazia a definição de hope labor, me veio à cabeça um personagem muito importante desse nosso mundo digital contemporâneo: o youtuber. A gente nem precisa entrar em detalhes sobre o número e a variedade de canais de Youtube que existem, né? Até porque essas coisas mudam numa velocidade impressionante… Mas, como essa figura não poderia ficar de fora, a gente também conversou com um youtuber – o Randal Bergamasco. O Randal mora no interior de São Paulo e ele é o criador do Mundano, um canal com mais de 50 mil seguidores e que fala sobre curiosidades. Tem vídeos sobre geografia, línguas e bastante coisa de vexilologia. 

Caju

Nossa… repete aí, Ana! E explica também.

Ana

Vexilologia. Mas vamos deixar o próprio Randal se apresentar e explicar o que é essa parada. Ele é uma figuraça!

Randal Bergamasco

Eu trabalho aqui na prefeitura de Pederneiras faz um certo tempo já, desde 2016. Antes eu já tive um podcast, o Naporteiracast, a gente gravou entre 2011 até 2016. Tive a ideia de fazer o canal, comecei o canal com o podcast, aí eu achei que ia tomar muito tempo e abandonei o podcast e comecei a mexer só com o canal, a me dedicar só ao canal. Mas sempre fazendo, digamos assim, o trabalho oficial, que vai dar o meu sustento, e fazendo o outro trabalho por hobby – vamos usar a palavra hobby. 

Se você me perguntar por que eu quis fazer, eu escolhi um tema que eu gostava… é até uma dica pra qualquer pessoa que vai fazer um canal no youtube: sempre faça aquilo que você gosta. Como gosto de geografia, de vexilologia, que é o estudo de bandeiras, línguas… no sentido de curiosidades, né? Então eu quis fazer sobre isso, isso daí me força a estudar pra ter pauta. O Mundano também é um canal que exige estudo. Eu não sou formado em geografia, infelizmente. Isso é até um arrependimento meu, mas deixa pra lá… Mas exige que eu estude. A gente acabou até aliando um gosto que a gente tem, uma paixão, com um conteúdo no Youtube.

Caju

Ana, só pra não passar batido: o Randal disse que trabalha na prefeitura, certo? O que ele faz lá?

Ana

Ele é técnico em edificações, Caju. O pai dele também trabalhava nessa área. O Randal chegou a se formar em jornalismo, até escreveu umas matérias prum jornal local da cidade dele, Pederneiras, mas nunca teve um emprego de fato na área de comunicação. Até porque ele já tinha uma segurança e uma renda interessante como técnico de edificações. E a gente sabe que o mercado pra jornalista… bom, deixa pra lá!

Caju

Melhor deixar pra lá mesmo…

Ana

Vamo ouvir mais um pouco do Randal. 

Randal Bergamasco

Se uma pessoa fala que cria um canal no Youtube porque ela quer mostrar pro amigo dela, quer mostrar, sei lá, pro namorado, pros parentes, eu acho que isso aí é uma mentira. A não ser que seja algo pessoal mesmo, só pra mostrar pras pessoas mesmo. Quem faz conteúdo na internet, vamos falar do Youtube que é o meu caso, eu acredito que quer ser visto. Pro canal… é um sonho meu, até 100 mil inscritos dá pra chegar. Não sei se vai conseguir chegar porque o crescimento é pequeno, é baixo, a gente tá com um pouco mais de quatro anos no ar, e como eu falei está com 51 mil inscritos. Pra mim, se chegar nos 100 mil, os objetivos estão alcançados.

O canal hoje, final de fevereiro de 2021, funciona como um complemento de renda. É impossível viver com o que a gente tira do Youtube, entendeu?

Se passar disso, passar o quanto eu ganho, o meu ganho no Youtube for maior que a minha renda, isso aí com certeza eu desisto do que eu faço e vou fazer isso. Isso daí, com certeza.

A gente mudou o cenário agora de 2020 pra 2021, eu comprei mais equipamento. Meu, não penso em parar, não. Eu quero crescer. Eu quero crescer. Minha meta principal é os 100 mil. Eu acho que dá pra chegar… 100, 110. Eu não sei quanto tempo vai demorar pra isso, mas vamos trabalhando. Vamos trabalhando… e ver o que a gente consegue. 

Ana

A gente também perguntou pro Randal o que ele acha do relacionamento com a plataforma. Se ele entende que o contrato, vamos chamar assim, entre os youtubers e o youtube é claro e, acima de tudo, justo.    

Randal Bergamasco

O que eu percebo é assim: eu não sei como funciona o algoritmo do Youtube. Mas há momentos em que ele recomenda mais os nossos vídeos. Quando o youtube recomenda, vem uma onda de novos inscritos. Na casa dos milhares. De uma hora pra outra. Agora já entendi que funciona desse jeito. E de repente ele para de recomendar. Eu não sei como funciona o algoritmo, não sei. Aí o crescimento é… no mês você ganha 6 mil inscritos e no outro mês você ganha 50. Isso aí deveria ser revisto, sei lá.

Agora como você monetizar tudo isso? É complicado, cara. É complicado. O Youtube vai dar preferência, logicamente, pra quem vai dar mais visualização, não se preocupando com o número de pessoas que tá produzindo. É meio complicado… é meio complicado isso aí, sim.

Mas é uma empresa privada, cara, não sei qual é a política deles, o que eles pensam. Logicamente, ele visam o lucro. Então, é meio complicado opinar sobre isso daí.  

Caju

O Randal também se enquadra no que a gente tem chamado de hope labor. Primeiro, ele faz porque gosta – ele até usou a palavra “hobby” pra definir. E ele também diz que gostaria de crescer e, quem sabe, viver disso um dia, se a renda do Youtube fosse superior à que ele tira no trabalho oficial. E ele tá investindo nisso…

Ana

Mas mesmo que o Randal ainda não consiga viver só do Youtube, pra ele, a situação tá claramente confortável. O canal dele tem um número razoável de inscritos. Ele tem um emprego estável que paga as contas. E ele se diverte, parece feliz…   

Caju

Exato. Agora, mudando um pouco de assunto, alguém poderia dizer que essa história de “hope labor” não é novidade nenhuma, que sempre foi assim. Todo mundo já ouviu: “O começo em qualquer trabalho é difícil pra todo mundo, mas com o tempo, se você se dedicar, as coisas vão acontecer”. Mas também é inegável que a internet, com esse lance de redes sociais e plataformas digitais, mudou consideravelmente o jogo e deu uma “nova roupagem” ao hope labor. Na verdade, ao longo dos últimos dez ou quinze anos, o hope labor ganhou uma escala e uma importância social sem precedentes.  

Ana

Era isso que eu ia falar, Caju, até pegando o gancho da última fala do Randal. Essa discussão tem tudo a ver com o que alguns estudiosos chamam de “capitalismo de plataforma”. Já faz algum tempo que as tais empresas de tecnologia vêm ganhando importância na economia mundial. E aí a gente tá falando de Facebook, Amazon, Uber… Falar de hope labor só faz sentido, na verdade, se a gente levar em conta essa nova configuração da economia. 

Por sinal… tem um caso muito conhecido na área do jornalismo que mostra como a relação entre as pessoas que estão trabalhando de graça – ou quase de graça – e as plataformas que estão se alimentando desse trabalho gratuito tá longe de ser equilibrada. Quer dizer, nem sempre é bom pra ambas as partes.

Caju

Já até imagino do que você tá falando. É o caso do Huffington Post?

Ana

Exato! Então, o Huffington Post é um jornal digital criado nos Estados Unidos em 2005. Em muito pouco tempo, ele passou a rivalizar em audiência com o New York Times, o Washington Post… foi um fenômeno! O Huffington Post nasceu com essa pegada de internet “supostamente colaborativa”, como o Chico Felitti definiu lá no começo do programa. 

A fundadora é a Arianna Huffington – olha que curioso: ela foi candidata a governadora da Califórnia naquela eleição em que o Arnold Schwarzenegger, aquele ator do Exterminador do Futuro, ganhou em 2003. 

A Ariana dizia enxergar a produção de informação jornalística como uma espécie de entretenimento. E aí ela investiu nesse esquema: pessoas comuns escrevendo porque queriam estar na internet. E o Huffington Post dava a elas a oportunidade de se expressarem, a possibilidade de serem lidas, ouvidas e, no limite, de ficarem famosas. 

Caju

Até que ela vendeu o jornal por uma bala, não foi isso?

Ana

Exatamente. Em 2011, a Ariana vendeu o Huffington Post pra um dos maiores grupos de mídia dos Estados Unidos, o AOL, por 315 milhões de dólares. Na época, ela foi muito criticada – e chegou a ser processada – por não ter repartido a grana com um monte de gente que colaborava pro site. Rolou até um movimento forte nas redes sociais cobrando a Arianna. O lema era: “Hey Arianna, Can You Spare a Dime?”. Acho que a melhor tradução pro português seria aquela nossa marchinha de carnaval

Caju

Risos. Sensacional, Ana! “Ei, Arianna aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!”

Ana

E só pra finalizar a história da Arianna: ela acabou saindo da direção do Huffington Post em 2016 pra fundar a Thrive Global – uma empresa especializada em bem-estar de funcionários que, olha, renderia outro episódio do Trabalheira… 

Caju

Boa! Tá anotada a pauta, Ana. Agora, você lembra que a gente falou do teste do marshmallow na abertura do programa, né? Então, essa referência apareceu por causa de um outro convidado do programa de hoje – o Douglas Kawaguchi, doutorando em psicologia pela USP e professor da Universidade Cruzeiro do Sul. A ideia de ouvir o Douglas veio da seguinte inquietação: por que as pessoas topam o hope labor? Que mecanismo mental ajuda a explicar esse fenômeno? O Douglas trouxe alguns conceitos bem interessantes. O primeiro deles é o da “crença no mundo justo”, desenvolvido por um psicólogo americano chamado David Myers. 

Douglas Kawaguchi

Se o mundo é justo, eu faço meu trabalho hoje e lá no futuro, como eu mereço, eu vou ser recompensado, sim. Vou receber meu reconhecimento, vou começar a ter ganhos financeiros porque as coisas funcionam de forma justa. A gente sabe que as coisas não são necessariamente assim. Não é a justiça em si, uma justiça essencializada, que está por de trás das nossas relações sociais, sobretudo nas sociedades complexas.

Isso traz a gente pra esse aspecto irracional, pra esse aspecto da crença, que explica muito porque as pessoas vão acabar exercendo esse tipo de comportamento. A gente está falando em última instância de uma troca do presente pelo futuro. Estou dando agora no presente o meu trabalho para lá no futuro ganhar uma recompensa. É uma promessa.

E por que as pessoas entram nessa? Primeiro porque o prêmio pode ser muito atrativo.

Mas um segundo aspecto que é psicologicamente mais interessante é… por que a gente entra nessa? Porque nós somos animais que se deslocam no tempo com mais intensidade que os outros animais. A gente projeta o futuro e é nisso que a gente consegue entrar nesse tipo de armadilha. O que há de perverso nisso é que quem tem o poder econômico vai jogar com isso, vai manipular seus sonhos.

Ana

É… De um lado, tem essa “crença no mundo justo” como diz o Douglas. “Vamos jogar o jogo porque essas são as regras e, com fé em Deus ou no Destino, as coisas vão de alguma forma dar certo no final”. Mas também pode acontecer o contrário, né?

Caju

Como assim, Ana? 

Ana

Em vez de ser um combustível, essa ideia de que você precisa matar um leão por dia ou de que é preciso engolir sapos pra chegar a algum lugar pode virar um vetor de profunda insegurança e até de tristeza.

Caju

Verdade… e essa sensação de insegurança e tristeza também pode ser paralisadora, né? Principalmente, pra aquelas pessoas que já estavam na profissão e que hoje vêm sendo cada vez mais constrangidas a fazer alguma coisa de graça – ou quase de graça – só pra se manterem ao menos visíveis na prateleira. 

Ana

É bem por aí. O Chico Felitti fez uma reflexão sobre isso também.

Chico Felitti

Se toda lógica é “o seu trabalho não tem valor nenhum, nós vamos usá-lo de graça”, você acreditar que o seu trabalho tem valor fica cada vez mais difícil. Começa a ficar cada vez mais distante essa realidade.
[

Acho que tá todo mundo tão com a corda no pescoço, tá todo mundo tão cansado, combalido e com medo, que não resta nem tempo e nem energia pra discutir. É o que eu sinto da maior parte dos meus amigos que trabalham com comunicação ou em áreas mais artísticas que tem uma lógica um pouco similar. As poucas pessoas que ainda têm um trabalho, carteira assinada, ou que conseguem tirar um sustento, tá todo mundo tão exausto e com tanto medo, a perspectiva é tão sombria que, se você sobreviver mais um dia, se você não for demitido daqui a seis meses e ter um emprego, você tem que se considerar no lucro. Acho que essa é a lógica reinante. E eu concordo contigo: deveria haver muito mais espaço pra discussão, muito mais espaço pra contemplação. 

Caju

Hoje nosso espaço pra discussão acabou, Ana. Mas olha… eu fiquei com uma sensação de que a gente terminou o programa meio pra baixo. 

Ana

Pô, faz parte. O pessimismo também tem seus direitos, né?

Caju

Tá certo! O Trabalheira fica por aqui. 

Ana

O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo pra Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.

O roteiro original é do Carlos Juliano Barros, o Caju. O tratamento de roteiro é do Renan Sukevicius.

A edição e a montagem são da Julia Matos. A nossa música tema é composta pela Mari Romano e também pelo João Jabace. O Jabace é da Pipoca Sound e também faz a finalização e a mixagem do programa.

A coordenação digital é da Juliana IÉGUER.

Caju

Até a próxima, Ana.

Ana

Até!




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