Quase um terço do salário de 19 colhedores de café, migrantes do Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres de Minas Gerais, foi descontado ilegalmente de seus contracheques pela família do presidente da maior cooperativa de café do mundo, a Cooxupé. O valor cobrado dos trabalhadores era referente à aquisição de máquinas e combustível para a colheita do grão — prática proibida pela legislação trabalhista.
A fiscalização trabalhista flagrou a irregularidade em 14 de julho durante uma inspeção no local onde eles faziam a colheita: a Fazenda Pedreira, em Cabo Verde (sul de Minas), que pertence à família de Carlos Augusto Rodrigues de Melo, presidente da cooperativa desde 2019. Após a autuação, os fazendeiros assinaram um acordo com o Ministério Público do Trabalho e com a Defensoria Pública da União para devolver o dinheiro descontado indevidamente e indenizar cada trabalhador em R$ 2 mil por danos morais.
Em plena pandemia do coronavírus, os cooperados da Cooxupé dobraram o seu lucro, que passou de R$ 160 milhões em 2019 para R$ 306 milhões no ano passado. O faturamento da cooperativa foi recorde em 2020, chegando a R$ 5 bilhões, um crescimento de quase 20% em relação aos R$ 4,2 bilhões de 2019. Mesmo assim, os trabalhadores da fazenda do presidente da Cooxupé tiveram descontos de cerca de R$ 500 por quinzena em seus pagamentos, que variam entre R$ 3.400 e R$ 4 mil mensais.
A fiscalização foi realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, composto por auditores fiscais do trabalho, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública e Polícia Rodoviária Federal. Os agentes descobriram que os descontos foram aplicados a todos os salários dos trabalhadores durante a safra, que começou em maio.
A Cooxupé tem hoje 14,5 mil associados e vende café para grandes marcas internacionais, como Nespresso e Starbucks.
Além disso, ostenta diversas certificações, entre elas a da Rainforest Alliance. Procurada, a certificadora afirmou que suspendeu de seu programa a Fazenda Pedreira, propriedade da família de Melo, até que seja realizada uma auditoria. A suspensão vale também para a certificação UTZ, que desde 2018 se fundiu à Rainforest (leia a nota completa da certificadora).
A Nespresso informou à Repórter Brasil que está em contato com a cooperativa para “entender o andamento do caso”. A empresa afirmou também que a fazenda Pedreira não está entre suas fornecedoras. (Leia aqui a nota completa enviada pela Nespresso). No entanto, cerca de 720 fazendas ligadas à cooperativa são certificadas pela Nestlé para venderem grãos à Nespresso — apenas no primeiro trimestre deste ano, a Cooxupé vendeu 65.983 sacas para a marca suíça.
A cooperativa também é certificada pelo programa de outra gigante multinacional, a Starbucks. “Levamos alegações como essas extremamente a sério e exigimos que todos os nossos fornecedores se comprometam a cumprir nosso Código de Conduta do Fornecedor”, disse a empresa em nota (leia a íntegra). Mais de 2 mil fazendas cooperadas da Cooxupé fornecem para Starbucks que, ao ser questionada pela reportagem não respondeu se tomará alguma medida diante da infração cometida na fazenda do presidente da cooperativa.
Os programas de certificação de Starbucks e Nespresso já se mostraram falhos em outras oportunidades, pois fazendas fornecedoras de ambas já foram flagradas com trabalho escravo e as empresas só se posicionaram após serem procuradas pela reportagem. Certificações de boas práticas servem como referência para grandes compradores e, em tese, deveriam atestar que o café respeita a legislação trabalhista e ambiental. Porém,o relatório Café Certificado, trabalhador sem direitos, elaborado pela Repórter Brasil, já apontou diversas falhas nesses selos de qualidade.
Procurada pela Repórter Brasil, a assessoria de imprensa da Cooxupé, disse que Melo não se pronunciará sobre as violações trabalhistas encontradas na propriedade de sua família. Em nota, afirmou que a família de Melo assinou um termo de ajustamento de conduta para “implementação de melhorias”. Disse também que cooperativa “preza pelo cumprimento da legislação trabalhista” e que as “propriedades rurais certificadas atendem aos requisitos previstos no regulamento das certificadoras”.
Melo não quis conceder entrevista, mas em abril, ao comentar o faturamento recorde da Cooxupé disse à Folha de São Paulo: “É um paradoxo, a pandemia trazendo tanto transtorno, preocupação demais, mas conseguimos [esse bom resultado] por conta de um ano com bastante quantidade e também qualidade. Isso fez com que alavancasse a cooperativa”.
Enquanto a produção e exportação de café bateu recordes, somente em 2020 foram 140 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão nas lavouras de café no Brasil — todos aconteceram em Minas Gerais, segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).
Manobra irregular
A fiscalização trabalhista descobriu que os fazendeiros fizeram uma manobra para não arcarem com equipamentos fundamentais na colheita do café — e oferecê-las para uso gratuito dos trabalhadores, como determina a legislação.
Assim, os descontos no salário dos safristas eram para a aquisição de uma derriçadeira, que puxa os galhos dos pés de café para arrancar os grãos, usada individualmente por cada empregado. A fazenda, então, descontava R$ 500 por mês dos trabalhadores para a aquisição da máquina, além de outros cerca de R$ 500 para o combustível (usado pela ferramenta).
A compra da derriçadeira, no entanto, só seria efetivada depois que os trabalhadores custeassem o seu valor total, de cerca de R$ 2.700 — o que não aconteceria nesta safra. Isso porque a colheita do café costuma durar entre quatro e cinco meses. Com o pagamento de R$ 500 mensais, os trabalhadores chegariam ao final da colheita tendo arcado com cerca de R$ 2.500 da derriçadeira — valor insuficiente para levarem a ferramenta para a casa.
Segundo a proposta feita pelos donos da fazenda, se o valor total não fosse pago até o fim da safra, a derriçadeira ficaria na fazenda. Se o trabalhador retornasse na próxima colheita, poderia usá-la novamente, na mesma propriedade.
Uma norma que rege o trabalho no campo (a NR-31), determina que o empregador deve disponibilizar, gratuitamente, as ferramentas de trabalho aos funcionários — o que inclui os gastos com combustível usados pelas máquinas, segundo interpretação de um auditor fiscal ouvido pela reportagem.
“A obrigação de garantir os equipamentos de trabalho é do empregador. Quando o empregador faz esse desconto abusivo no salário ele reduz o ganho do trabalhador”, explica o coordenador da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais (Adere), Jorge Ferreira dos Santos, que também integra a direção estadual da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
“A lógica dos fazendeiros é lucrar o máximo possível com a maior precarização possível”, afirma o sindicalista. Ferreira explica que mesmo sendo ilegal, essa prática de cobrar pelo uso da máquina de colheita dos trabalhadores está se tornando comum no sul de Minas.
O desconto tem impacto imenso para os safristas, diz Ferreira. Isso porque o rendimento que eles conseguem nos meses da colheita do café, muitas vezes, é o dinheiro que recebem durante todo o ano. “Levam para casa e sustentam a família até a próxima safra”, explica.
A maioria dos trabalhadores do café são migrantes do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas Gerais, além de alguns estados do Nordeste, principalmente da Bahia. Na Fazenda Pedreira, dos 32 trabalhadores, 23 eram de Santa Maria do Salto, no Vale do Jequitinhonha (MG).
A responsável pela fazenda Pedreira é Kátia Cristina de Paula Melo, filha do presidente da Cooxupé. Os auditores fiscais do trabalho constataram que a exploração do café na propriedade beneficia o núcleo familiar, que inclui os pais. Além disso, os pais constam nos documentos como tendo direito ao “usufruto vitalício” da propriedade, apesar da fazenda estar no nome de Kátia e de um irmão.
A mãe de Kátia, Maria de Fátima Fonseca de Paula e Melo, foi até a gerência regional do Trabalho, em Poços de Caldas (MG), uma semana depois da fiscalização e se comprometeu a cumprir 14 determinações, além da devolução dos descontos e do pagamento de danos morais: melhorar as condições de transporte dos trabalhadores; não efetuar descontos nos salários que sejam fora da lei ou de acordo coletivo de trabalho; disponibilizar abrigos para os trabalhadores fazerem as refeições nas frentes de trabalho e também instalações sanitárias; fornecer as ferramentas de trabalho gratuitamente e providenciar armários nos alojamentos.
Se descumprir as obrigações, a família do presidente da Cooxupé pagará multa de R$ 10 mil por item e um acréscimo de R$ 1 mil para cada trabalhador atingido.
*Colaborou André Campos
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil