Procurador aposentado e ex-prefeito estão entre os 13 novos nomes da ‘lista suja’ do trabalho escravo

Cadastro divulgado nesta terça-feira pelo governo federal também inclui empresa que prestou serviço em hospital da Unimed; no total, 167 trabalhadores foram submetidos a condições análogas à escravidão contemporânea
Por Guilherme Henrique
 05/10/2021

Um procurador da Justiça aposentado no Pará, o ex-prefeito da cidade mineira de Camacho e uma empresa subcontratada para prestar serviços na construção do hospital da rede Unimed em Betim (MG) estão entre os 13 empregadores incluídos na atualização “lista suja” do trabalho escravo, divulgada nesta terça-feira (5) pelo Ministério do Trabalho. Os novos integrantes foram responsáveis por terem submetido 167 trabalhadores à escravidão contemporânea. 

O cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, conhecido como “lista suja”, existe desde novembro de 2003 e é atualizado a cada seis meses pelo governo federal. Com a recriação do Ministério do Trabalho, a tarefa voltou a ser realizada pela instituição. Atualmente, a lista conta com 66 empregadores. Veja aqui a lista completa.

Entre os novos nomes da relação, há também donos de carvoarias, plantações de café, de feijão, fazendas produtoras de açaí e propriedades dedicadas à pecuária e à exploração de eucalipto, em estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pará, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul.

Uma das fiscalizações ocorreu na fazenda Santa Quitéria, em Ponta de Pedras, na Ilha de Marajó (PA). Espalhados pelos seus 6 mil hectares da fazenda, há criação de gado – são quase 3 mil cabeças, entre bois e búfalos – e extração de açaí. Foi na plantação da fruta que, em outubro de 2018, os auditores resgataram 18 trabalhadores em condições análogas à escravidão.

Barracos construídos sobre o chão de terra batida e sem condições mínimas de moradia serviam de alojamento na Fazenda Afonsos (MG), onde dois trabalhadores foram resgatados em condições de escravidão contemporânea (Foto: Inspeção do Trabalho/SIT/MTP)

O grupo, que trabalhava na colheita, estava alojado em condições degradantes, sem acesso a banheiros nem à água potável. “Os barracos não ofereciam boas condições de vedação e segurança, expondo os trabalhadores a intempéries, animais peçonhentos, insetos e animais das mais variadas espécies”, diz o relatório dos auditores fiscais do trabalho.

Dulce Boulhosa Maroja e seu irmão, Rui Boulhosa Maroja, um procurador de Justiça aposentado, são os proprietários da fazenda. Ele, que recebe uma pensão de R$ 16,5 mil mensais do Ministério Público do Estado do Pará, não providenciou instalações sanitárias a seus empregados. Com isso, eles tinham de fazer suas necessidades no mato e tomar banho no rio – de onde também eram obrigados a retirar água para lavar utensílios dos alojamentos, cozinhar e beber.

Além disso, não havia local adequado para preparo de alimentos e nem camas – todos dormiam em redes, que precisavam ser adquiridas pelos próprios empregados. Nenhum deles tinha registro em carteira profissional ou contrato de trabalho, e dois eram menores de idade, ambos com 15 anos.

Após a visita, os auditores constataram que o procurador “não se preocupou em garantir aos trabalhadores contratados como apanhadores do açaí o mínimo necessário para um trabalho seguro e digno, visto que não foram respeitados os direitos trabalhistas e obrigações referentes à disponibilização de meio ambiente de trabalho seguro e saudável”.

Maroja trabalhou no MP-PA por 20 anos e se aposentou em 2013. Três anos depois, chegou a ter seu nome incluído no livro de homenageados pelos serviços prestados à instituição.

Alojados ao lado de fornos de carvão 

A fiscalização dos auditores fiscais na fazenda Afonsos, que contava com 15 fornos de carvoaria de madeira de eucalipto, ocorreu em agosto de 2019 e resgatou dois trabalhadores em condições de escravidão contemporânea. Ela pertence a Nilton Pedro Friaça, ex-prefeito da cidade de Camacho (MG) em duas oportunidades e também vereador do município que fica a 200 km da capital Belo Horizonte.

Os dois empregados relataram aos auditores que foram contratados para trabalhar na carvoaria em maio de 2018, sem regularidade no pagamento de remuneração.  Esse não é uma caso isolado – no ano passado, houve um outro resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão contemporânea em uma carvoaria em Minas Gerais.

Local onde os trabalhadores se abrigavam, na fazenda Afonsos (MG), ficava a apenas 20 metros dos fornos de carvão (Foto: Inspeção do Trabalho/SIT/MTP)

O alojamento dos trabalhadores ficava a apenas 20 metros dos fornos de carvão. Os barracos, que não tinham banheiros, estavam em condição rudimentares, com paredes feitas de troncos de eucalipto e coberto por lonas pretas de plástico. O chão de terra batida e a poeira dos dias quentes se transformavam em lama nos dias de chuva. Além disso, a fuligem da madeira queimada ajudava a deixar o ambiente ainda mais insalubre.

Nilton Pedro Friaça foi eleito vereador pela última vez nas eleições de 2016, pelo PT do B, atual Avante. Ele não disputou as eleições de 2020. 

Obra em hospital da Unimed

Auditores fiscais do trabalho encontraram nove pessoas em condições análogas à de escravidão em um alojamento mantido pela empresa Montall Instalações e Comércio de Materiais Hidráulicos, que foi subcontratada para fazer a instalação de aparelhos de ar condicionado no hospital da rede Unimed, inaugurado em abril de 2019 na cidade de Betim.

A obra foi motivo de comemoração entre executivos da rede de hospitais, que celebraram a conclusão do projeto, com investimentos de R$ 250 milhões. A Montall havia sido subcontratada pela empresa Servtec Instalações e Manutenção. No dia da inspeção, em abril de 2018, os trabalhadores encontrados no local informaram que ainda não tinham recebido os R$ 2.500 prometidos como salário. 

O alojamento tinha colchões no chão. A comida, assim como os produtos de higiene pessoal, eram bancados pelos próprios trabalhadores. 

A Unimed afirmou que “teve conhecimento da informação pela reportagem” e que “não aceita relacionamento com empresas que empreguem mão de obra infantil ou análoga à escravidão”. A nota da operadora de saúde dizia ainda que “a construção do hospital foi realizada pelo consórcio formado por duas empresas, Engeform Construções e Comércio Ltda. e Athié Wohnrath Empreendimentos e Construções de Fábricas e Logística Ltda, e que [a Unimed] está solicitando esclarecimento aos responsáveis para tomar as medidas cabíveis”. Por fim, a empresa afirma desconhecer qualquer relação direta com a Montall (Leia nota na íntegra).

São frequentes os resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão contemporânea em carvoarias (Foto: MPT- PARÁ)

A maioria das autuações que entrou na recém-divulgada “lista suja” do trabalho escravo ocorreu entre 2018 e 2020, mas há uma exceção: o caso da produtora de erva-mate Anzolin, em Monte Castelo (SC). A operação, realizada em 2011, encontrou 11 empregados alojados em barracos de madeira sujos. 

Desde então, o processo para inclusão da empresa na ‘lista suja’ estava paralisado pela Justiça. A companhia já figurou na relação de empresas que utilizaram mão de obra escrava entre julho de 2008 e julho de 2010. 

A Repórter Brasil entrou em contato com os advogados, representantes ou assessorias de Rui Boulhosa Maroja, Nilton Friaça, Montall, Unimed e Ervateria Anzolini. Assim que eles se posicionarem, atualizaremos a reportagem.

A ‘lista suja’ do trabalho escravo

Prevista em portaria interministerial, a “lista suja” inclui nomes flagrados em fiscalização após os empregadores se defender administrativamente em primeira e segunda instâncias.

Os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos do cadastro. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.

Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.

Fuligem da queima de madeira e pó ajudam a deixar o barraco dos trabalhadores em condições ainda mais insalubres (Foto: SRTE/MG)

Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da lista suja, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).

A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. O ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso, afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade e que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.

O relator destacou que um nome vai para a relação apenas após um processo administrativo com direito à ampla defesa.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de se desligar do patrão); servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas); condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida); ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Nota da redação: Este texto foi atualizado no dia 6 de outubro de 2021 às 12h14 para incluir posicionamento da Unimed-BH.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil


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