A criação de gado é um dos principais vetores das queimadas e do desmatamento ilegal no Brasil, além de liderar o ranking de trabalhadores submetidos à escravidão. São crimes mais comuns em áreas de fronteira agrícola, onde a floresta dá lugar a novas pastagens. Eles podem, no entanto, contaminar a rede de abastecimento de indústrias localizadas há milhares de quilômetros, próximas aos maiores centros urbanos e onde é fabricado um item de popularidade crescente na dieta dos brasileiros: o hambúrguer.
Para dissociar os seus sanduíches dessa realidade, as maiores redes de fast food anunciam práticas como o monitoramento de fazendas via satélite, a certificação de fornecedores e a adoção de contratos de compra de carne com cláusulas socioambientais. Mas a eficácia dessas medidas é limitada por falhas de rastreabilidade e por mecanismos de checagem dos pecuaristas fornecedores sujeitos a diversos tipos de fraude. Salvo raras exceções, inexistem no Brasil meios eficientes para identificar a origem dos animais desde o nascimento até o abate.
“Os produtores de carne não oferecem os procedimentos fundamentais para garantir a transparência e a rastreabilidade até a origem. À medida que fazendeiros fornecem, direta ou indiretamente, a um matadouro ou instalação de processamento, toda a cadeia de suprimentos em diante é contaminada”, argumenta Daniela Montalto, porta-voz da campanha de Florestas do Greenpeace no Reino Unido. “O que será necessário para que McDonald’s, Burger King e outros acabarem com sua cumplicidade nesta catástrofe que se desenrola?”, questiona Montalto.
Crimes no Pantanal
Os problemas atingem em cheio, por exemplo, a JBS, que mantém um longo histórico de fornecimento para o McDonald’s, o Burger King e o Bob’s – empresas líderes do setor. Em 2020, a maior indústria de carnes do país inaugurou novas linhas de produção em sua fábrica de hambúrgueres localizada em Campo Grande (MS), o que dobrou a capacidade produtiva local. Além disso, a empresa possui outras duas plantas para fabricar o produto, em Lins (SP) e Osasco (SP).
A JBS de Campo Grande já foi mencionada em publicações sobre fazendas que utilizaram mão de obra escrava ou investigadas pelo uso ilegal de fogo no Pantanal. Um relatório da Repórter Brasil revelou que, em 2019, o frigorífico comprou animais da Fazenda Copacabana, onde foram resgatados nove indígenas que trabalhavam em condições degradantes, instalados em barracos precários e sem acesso a água potável.
Segundo outro relatório, publicado pelo Greenpeace Internacional, as operações da JBS no município também abateram gado de um fornecedor direto que anteriormente havia adquirido animais da Fazenda Bonsucesso, onde mais de 17,2 mil hectares foram incendiados em 2020.
Mas os problemas que atingem as unidades processadoras de hambúrgueres não se limitam, necessariamente, ao gado abatido localmente. Isso porque essas indústrias também podem utilizar matéria-prima trazida, em caminhões, de outros frigoríficos distantes. A JBS, por exemplo, possui mais de trinta abatedouros espalhados pelo país. Boa parte deles está na Amazônia.
Outra investigação da Repórter Brasil revelou que, entre 2018 e 2019, unidades da JBS em Juína e Juara, na Amazônia mato-grossense, compraram gado de um pecuarista dono de áreas embargadas pelo Ibama. A venda dos animais era realizada por uma fazenda “ficha limpa”, para onde foram enviados, antes do abate, milhares de animais criados na fazenda desmatada ilegalmente.
Não é um caso isolado. Estratégias semelhantes de transferência de animais foram empregadas por outros dois pecuaristas que enviaram gado para a JBS em Confresa (MT), entre 2017 e 2020.
Lavagem de gado e invasão de Terras Indígenas
Principal concorrente da JBS, a Marfrig também investe pesado na produção de hambúrgueres. Em 2019, a empresa adquiriu uma fábrica do produto em Várzea Grande (MT), e tem planos para inaugurar, em 2022, uma nova unidade de processamento em Bataguassu (MS). A empresa tem unidades certificadas para abastecer o Burger King e o McDonald’s.
Em 2019, a planta de Várzea Grande adquiriu centenas de animais de um pecuarista que já foi multado duas vezes por desmatamento ilegal. Ele transferiu gado da Fazenda Amor do Aripuanã, em Aripuanã (MT), onde ocorreu o ilícito, para a Fazenda Rio Azul, sem pendências ambientais. Esta última, por sua vez, enviou gado para o frigorífico. Os animais da Fazenda Rio Azul também foram comprados pelo abatedouro do frigorífico Minerva em Mirassol D’Oeste (MT).
Já em Tucumã, no Pará, um frigorífico da Marfrig abateu animais de fazendeiros com propriedades localizadas ilegalmente dentro da Terra Indígena Apyterewa, a segunda mais desmatada na Amazônia em 2020. Um deles, além da fazenda dentro do território indígena, possuía uma área de pastagem menor nas proximidades. Ele registrou a venda de centenas de animais para o abate a partir dessa fazenda “ficha limpa”, apesar de o seu tamanho ser incompatível com a manutenção de uma quantidade tão grande de animais. A situação levanta suspeitas sobre eventuais fraudes documentais para “lavar” o gado e mascarar sua real origem.
Filé bovino sob encomenda
A Subway, com aproximadamente duas mil lojas no Brasil, não vende hambúrgueres, mas seu cardápio também contém produtos derivados de carne bovina. O frigorífico Minerva, sediado em Barretos (SP), já desenvolveu inclusive um filé bovino especificamente criado para abastecer os restaurantes da rede.
Em 2019 e 2020 a unidade da Minerva em Araguaína (TO) abateu gado de uma propriedade que comprava animais para engorda da Fazenda 4 de Outubro, onde foi flagrado um caso de trabalho escravo em 2017. O mesmo frigorífico recebeu bois de um outro pecuarista que teve áreas embargadas por desmatamento ilegal. Em registros fundiários, ele “dividiu” as suas pastagens na região como se fossem fazendas distintas que fazem fronteira entre si. A prática ajuda a “driblar” as políticas de compra de frigoríficos comprometidos em não adquirir gado de fazendas com áreas embargadas.
O que dizem as redes de fast food
Em seus relatórios corporativos, as empresas frigoríficas mencionam relações comerciais com as redes fast food tanto em nível nacional quanto global. Em 2019, a JBS afirmou, em seu Relatório Anual e de Sustentabilidade, que mantém parcerias com o McDonald’s, Bob’s, Burger King e Subway. No ano seguinte, a Friboi, empresa produtora de carne bovina da JBS, e a Seara – divisão de carnes avícolas e suínas do grupo – foram inclusive agraciadas com prêmios de melhores fornecedores do Burger King.
Além do Burger King, o frigorífico Minerva também citou, em um relatório de 2019, o McDonald’s como cliente. No ano seguinte, o McDonald’s foi novamente mencionado devido à aprovação de três novas unidades da empresa como fornecedoras mundiais. A Marfrig, por sua vez, acumula nove unidades certificadas para abastecer o Burger King, e dez para suprir o McDonald’s – entre elas uma específica para a produção de hambúrgueres.
Procurados pela Repórter Brasil, McDonald’s, Burger King e Subway não forneceram detalhes sobre quem são, no presente momento, as indústrias habilitadas para o fornecimento de carne bovina aos seus restaurantes. Apenas o Bob’s respondeu, citando três plantas da JBS – em Campo Grande, Lins e Osasco – como fornecedoras diretas de hambúrgueres.
A rede frisou que a matéria-prima também pode vir de qualquer uma das 37 plantas de abate do frigorífico, distribuídas nos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Minas Gerais, Acre, Bahia, Tocantins, Maranhão e Pará.
Todas as redes de fast food afirmaram manter rigorosas políticas de responsabilidade social e ambiental para lidar com seus fornecedores de carne. Mas, entre elas, apenas o McDonald’s afirma possuir ferramentas próprias para rastrear a cadeia produtiva de forma independente aos mecanismos adotados pelas indústrias fornecedoras.
O Bob’s frisou que participa da Colaboração para Florestas e Agricultura (CFA), iniciativa lançada em 2016 para garantir a sustentabilidade em cadeias produtivas e que tem, entre seus objetivos, o desenvolvimento de ferramentas de rastreabilidade.
A rede reiterou a existência de auditorias nas plantas industriais. O Burger King também faz parte da CFA, mas à Repórter Brasil disse que “o mapeamento dessas práticas ocorre por parte das empresas parceiras e nós acompanhamos o cumprimento de tais iniciativas”.
A Subway afirmou que segue padrões mundiais de sustentabilidade e responsabilidade social, mas também não mencionou qualquer mecanismo de rastreabilidade próprio.
O McDonald’s tem como compromisso público acabar com o desmatamento em sua cadeia global até 2030. Segundo a Arcos Dorados, maior franqueada independente do McDonald’s, 100% das fazendas de fornecedores diretos foram monitoradas em 2020. Não há, porém, informações sobre a verificação de fornecedores indiretos – ou seja, as fazendas que fornecem animais para as propriedades que realizam a venda final aos frigoríficos.
A resposta na íntegra das redes de fast food pode ser lida aqui. O posicionamento dos frigoríficos sobre cada um dos casos mencionados, bem como dos pecuaristas envolvidos, estão acessíveis nos links a eles relacionados.
Rastreabilidade: promessas a perder de vista
Há mais de dez anos, os principais frigoríficos brasileiros assumiram o compromisso de bloquear compras de fazendas que desmataram a floresta amazônica após outubro de 2009. Além disso, prometeram excluir, de sua lista de fornecedores, fazendas em áreas protegidas e empregadores inseridos na “lista suja” do trabalho escravo – cadastro do governo federal que divulga o nome de pessoas e empresas responsabilizadas pelo crime.
Na época, JBS, Marfrig e Minerva também se comprometeram em implementar, até o final de 2011, mecanismos de controle dos fornecedores indiretos. Mas a promessa nunca saiu do papel. Este é, até hoje, considerado o principal gargalo da indústria da carne.
“A solução definitiva para o setor garantir que a produção está livre de desmatamento ilegal, trabalho escravo e outros crimes é a adoção da rastreabilidade completa e individual. Tal processo deve ser gradual e focado nos municípios que mais desmatam na atualidade”, defende o procurador Daniel Avelino, do Ministério Público Federal (MPF).
Daniel é um dos idealizadores dos TACs da Carne, acordos que, desde 2009, vêm sendo firmados entre o MPF e centenas de empresas frigoríficas para exigir o monitoramento de fornecedores
Em resposta às críticas, os três maiores frigoríficos do país renovaram recentemente suas promessas para garantir o pleno monitoramento dos fornecedores indiretos. Apresentaram planos de longo prazo que, no entanto, ainda carecem de detalhamento. Persistem muitas dúvidas sobre os mecanismos concretos a serem desenvolvidos para garantir a plena rastreabilidade e o enfrentamento da “lavagem” de gado.
A JBS anunciou, em 2020, investimentos milionários em rastreabilidade e a meta de atingir, até 2025, a plena capacidade de monitorar a origem dos animais. Em abril, a empresa anunciou a entrada em operação de uma plataforma digital destinada a seus fornecedores diretos, para que eles próprios avaliem a situação socioambiental das fazendas das quais pretendem adquirir gado.
Semanas antes da JBS, a Marfrig já havia anunciado meta semelhante para o ano de 2030. O grupo comunicou que investirá R$ 500 milhões em sustentabilidade nesse contexto. A Minerva, por sua vez, afirma já ter integrado aos seus sistemas internos a plataforma Visipec, desenvolvida pela National Wildlife Federation (NWF) em parceria com uma série de outras organizações, e que permite indentificar e avaliar fornecedores indiretos. Segundo o frigorífico, testes iniciais indicaram 99,9% de conformidade dos seus fornecedores indiretos, no Mato Grosso e em Rondônia, com os critérios de sustentabilidade adotados pela empresa.