Do alto, a pequena aldeia quase se perde em meio à floresta Amazônica. Mas é ali, em uma cabana na Terra Indígena Sawré Muybu, no sudoeste do Pará, que três mulheres Munduruku revisam as imagens que gravaram das ações de seu povo para defender o território de invasores, sobretudo de madeireiros e garimpeiros. Expulsar os invasores sempre foi arriscado, mas em tempos de governo Bolsonaro é ainda mais.
Câmera, drone, celular e redes sociais são as “armas” usadas por Aldira Akai, de 30 anos, Beka Saw Munduruku, de 19, e Rilcelia Akai, de 23, para lidar com essas crescentes ameaças. Elas integram o Coletivo Audiovisual Munduruku Daje Kapap Eypi, que divulga as denúncias dos indígenas para além das margens do rio Tapajós. “[O vídeo] é uma ferramenta muito importante, que fortalece a luta do povo Munduruku. Muitas pessoas não acreditam mais só na fala da gente, eles acreditam vendo”, conta Aldira.
A Repórter Brasil acompanhou as jovens durante uma semana na TI Sawré Muybu, em novembro de 2021, quando elas produziram vídeos – divulgados via Facebook, Instagram – que chegaram até ativistas e autoridades mundiais que participavam da COP26. São imagens que tornam concreto o que já indicam dados como os da ferramenta da Global Forest Watch (GFW). Um dos mais assustadores mostra os pedidos de exploração minerária na TI: as áreas onde não incidem esses requerimentos são quase imperceptíveis de tão poucas. A plataforma também mostra como o impacto do garimpo e de outras ameaças ao território se traduz em desmatamento.
Ameaças na mira da câmera
Garimpeiros agindo nessa área tão cobiçada por grandes mineradoras ou ladrões de madeiras nobres – um dos motores do coletivo é justamente gravar esses invasores em ação. Foi o que aconteceu em julho de 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, quando Aldira se encontrou pela primeira vez frente a frente com um grupo de madeireiros.
“Será que eles vão reagir?”, ela lembra que se perguntava enquanto caminhava mata adentro. “Era a primeira vez que enfrentava uma situação dessas com a câmera. Fiquei muito ansiosa, com medo. Mas criei coragem.”
Com a ascensão da extrema direita a partir de 2018 e o discurso anti-indígena do atual governo, a insegurança de enfrentar os invasores aumentou. “A gente vai e não sabe se volta”, explica Rilcelia. “É muito arriscado para nós. Eles se sentem muito seguros porque falam que o Bolsonaro está do lado deles e que a gente não é nada.”
Imagens gravadas pelo coletivo mostram o fogo consumindo a balsa que os madeireiros utilizavam para carregar as toras roubadas. Foi o único equipamento destruído pelos indígenas naquela fiscalização de 2019. “Foi um medo que eu senti, mas a gente conseguiu. A gente não brigou com ninguém, soubemos dialogar, porque ali a gente estava no nosso direito”, relata Aldira. Os indígenas deram aos invasores três dias para retirarem os equipamentos e caminhões da área.
Nas cenas registradas, uma roda de guerreiros e guerreiras Munduruku celebra a vitória. No entanto, dois anos depois, enquanto assiste às imagens que gravaram, Beka afirma que madeireiros invadiram novamente a mesma área. “Todo mundo ficou alegre, mas passou um tempo e eles já estão lá de novo, são outras pessoas, mas estão lá”.
O desmatamento na TI em 2020 chegou a 146 hectares – o maior índice desde 2004 – frente a 105 hectares no ano anterior e 24 em 2018. Imagens detalhadas de satélite compiladas pela GFW mostram as estradas cortando a floresta, que podem ter sido abertas por madeireiros para transportar as toras roubadas ou mesmo por grileiros, para abrir espaço para pastos. “O que vemos no município vizinho, Trairão, é uma drástica perda da floresta, causada pela expansão da pecuária – e está avançando para as fronteiras da Sawré Muybu”, detalha a análise da GFW.
Garimpo contaminando rios e pessoas
Além de enfrentar os roubos de madeira, a TI Sawré Muybu vive sob outra ameaça constante: os garimpeiros. A TI fica entre Itaituba e Jacareacanga, duas cidades-polo do garimpo de ouro ilegal e palco de um forte lobby, como apurou a Repórter Brasil. O impacto desta atividade ilegal ainda não é tão grave quanto em outros territórios da etnia, como na TI Munduruku, onde um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) mostrou que entre 2019 e 2020 houve um aumento de 363% de área degradada pelo garimpo.
Mas os pedidos de lavras garimpeira na TI Sawré Muybu deixam evidente o risco da mineração. A análise feita pela GFW para a Repórter Brasil mostra que “a atividade mineradora é uma imensa ameaça para a região” e indica que o garimpo já causou desmatamento, inclusive com a possível abertura de uma pista de pouso. Entre 2011 e 2020, a TI foi o território indígena sobre o qual incidiu o maior número de processos minerários em todo o país: foram 97 pedidos, segundo a Agência Pública.
A luta de resistência, também registrada pelo coletivo, rendeu vitórias como a ocorrida no ano passado. Após campanha do povo Munduruku com apoio de organizações indigenistas brasileiras e internacionais, a mineradora multinacional Anglo American se comprometeu a retirar 27 pedidos de lavra aprovados pela ANM que se sobrepunham a terras indígenas no Brasil, sendo 13 na TI Sawré Muybu.
Um obstáculo para que os Munduruku enfrentem esse assédio é que os garimpeiros ilegais têm apoio de diversos setores do governo federal, que muitas vezes são acusados de “vazar” informações sobre operações de fiscalização contra o garimpo na região.
Para além do desmatamento provocado pelo garimpo, outro efeito colateral é a poluição dos rios da região, como ocorreu nas praias fluviais de Alter do Chão, no Baixo Tapajós, quando as águas tornaram-se turvas. A Polícia Federal anunciou uma investigação para confirmar se a alteração está associada ao garimpo ilegal. Para os Munduruku da Sawré Muybu, contudo, não há dúvida. Há vários anos eles alertam para os efeitos nocivos do garimpo sobre o rio. Segundo o Greenpeace, o garimpo ilegal já destrui mais de 600km de rios dentro das terras Munduruku nos últimos 5 anos.
“No tempo em que eu era jovem a água era diferente, era verde. Eu pegava peixe de flecha”, conta o líder Juarez Saw Munduruku. “Hoje você não tem mais como enxergar o peixe no fundo da água para poder flechar. E cada ano que vem se passando, a água está ficando mais suja por essas atividades de garimpo”, conclui, com tristeza, o cacique em entrevista às jovens do coletivo.
O garimpo também traz com ele a contaminação por mercúrio. O produto usado para extração de ouro é despejado nos rios e está envenenando a população Munduruku. “As pesquisas mostram que nosso sangue está cheio de mercúrio. E o peixe que é nossa alimentação está doente”, afirma Juarez em referência à pesquisa que a Fiocruz realizou no Médio Tapajós. Segundo o estudo, todos os indígenas das três aldeias da TI Sawré Muybu analisadas estão contaminados e ingerindo uma quantidade de mercúrio até 18 vezes maior que o limite seguro – todos os 88 peixes coletados também tinham presença de mercúrio.
Defensores ameaçados
Todas essas agressões socioambientais intensificam a tensão nas terras Munduruku e ampliam as ameaças contra as lideranças. Em março, a Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn, em Jacareacanga (PA), foi invadida e queimada por um grupo de garimpeiros. Em maio, a casa de Maria Leusa Kaba também foi queimada. Em junho, um ônibus que levaria lideranças Munduruku para manifestação em Brasília foi atacado. Em novembro, poucos após a COP 26, a casa de outra liderança Munduruku, Alessandra Korap, foi invadida.
Nesse contexto, as integrantes do Coletivo Audiovisual Munduruku têm ainda mais firmeza sobre a importância do seu trabalho. “Que venham mais jovens para levar esse trabalho adiante depois de nós, é um trabalho muito importante, uma ferramenta que hoje em dia a gente precisa muito”, resume Aldira.
Incentivador das jovens, o cacique Juarez lembra que os povos da Amazônia como os Munduruku ainda precisam de muita ajuda para enfrentar as diversas ameaças que assolam a região. ”É muito difícil a gente parar essas atividades, sabemos que por conta disso todos nós estamos sofrendo, por causa dessa destruição grande aqui na Amazônia”.
Como o processo de demarcação oficial da TI está parado há anos, os próprios indígenas fizeram a chamada autodemarcação do território, em 2015. Foi ali que Beka fez suas primeiras gravações em vídeo – com apenas 12 anos de idade. “Esse governo fala que não vai demarcar nem um centímetro de terra”, lembra, indignado, Juarez Saw Munduruku, cacique de Sawré Muybu. “Com isso, as invasões estão entrando, com a fala do Bolsonaro. Se esses projetos grandes avançarem [como hidrelétricas], nós vamos perder a nossa terra”.
Entre 2019 e 2021, três primeiros anos de governo Bolsonaro, o desmatamento em terras indígenas cresceu 138% em relação aos três anos anteriores. Segundo o Cimi, as invasões em TIs para explorar ilegalmente recursos naturais mais do que dobraram entre 2018 e 2019, após o início desta gestão. Em 2020, esse número alto se manteve, com 263 episódios. Procurada, a Funai não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil sobre as invasões à TI e a lentidão do processo de demarcação.
Enquanto assiste a um dos vídeos produzidos pelas jovens em seu celular, Juarez reforça a importância do Coletivo Audiovisual Munduruku: “Através desse grupo que a gente vai levando essas denúncias para fora. Está nas mãos delas, da juventude, das jovens proteger mais tarde o território”.
Edição: Mariana Della Barba
Nota: Essa reportagem foi realizada com financiamento concedido pela Global Forest Watch, que tem o apoio do Ministério Norueguês do Clima e do Meio Ambiente (KDL). O especial também teve o apoio da International Women’s Media Foundation’s Howard G. BuffettFund for Women Journalists. A Repórter Brasil mantém total independência editorial.