Cassiterita, o mineral que é a nova ameaça aos Yanomami

Depois do ouro, garimpeiros ilegais agora miram outros produtos valiosos no subsolo indígena, como a cassiterita, de onde se extrai o estanho, metal cujo valor passa por forte valorização no mercado internacional e é usado até na tela de celulares
Por Emily Costa e Sam Cowie
 14/04/2022

Cicatrizes na floresta, lama, rios destruídos e indígenas sob ataque. Essas são imagens conhecidas para quem acompanha a saga do ouro ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima. Apesar dos riscos de contrair malária, ser preso ou se envolver em acidentes aéreos ou fluviais, o fluxo de garimpeiros clandestinos até a maior terra indígena do país parece aumentar a cada dia. Especialmente agora, quando a máfia do garimpo encontrou uma motivação extra no subsolo do território: a cassiterita. Essa nova caça ao tesouro Yanomami é impulsionada pela crescente demanda global por esse mineral. 

É da cassiterita que é extraído o estanho, metal usado para produzir ligas como as folhas de flandres, famosas e úteis por sua maleabilidade e pela capacidade de evitar corrosão e ferrugem. Por conta dessas propriedades, o metal está em todo lado: nas latas de alimentos, no acabamento de carros, na fabricação de vidros e até na tela dos celulares.

Cassiterita ilegal é apreendida pela Polícia Federal em Boa Vista (RR) em fevereiro; só neste ano, operações no Estado encontraram 110 toneladas do minério (Foto: Polícia Federal/Divulgação)

“A cassiterita está comandando Roraima”, diz à Repórter Brasil José Altino Machado, conhecido como Zé Altino, que há mais de 50 anos atua como garimpeiro na Amazônia e se denomina “pioneiro na busca pela cassiterita”. Fundador da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal (Usagal), ele chefiou a primeira invasão de mineradores às jazidas na região da Serra de Surucucus, no norte de Roraima, hoje dentro dos limites da terra Yanomami. “Nos anos 80, eu era sozinho na cassiterita. Todo mundo queria ouro. Agora mudou, todo mundo quer a cassiterita”. 

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Relatos dos indígenas e recentes apreensões de cassiterita ilegal feitas no Estado indicam que Zé Altino tem razão: a exploração do mineral está crescendo em ritmo acelerado na terra indígena. 

Em fevereiro, a Polícia Federal apreendeu 100 toneladas do mineral na capital Boa Vista, que provavelmente foram extraídas da terra indígena. Na operação, os policiais prenderam seis pessoas – entre elas um Policial Militar – que também tinham 1 quilo de ouro e armas. A carga foi avaliada em mais de R$ 15 milhões. Um mês depois, outras 10 toneladas do produto também foram apreendidas, somando 110 toneladas nos três primeiros meses do ano. Já em 2021, foram recolhidas 80 toneladas pelos policiais; não há registros de apreensões de cassiterita em anos anteriores. 

Os pedidos de pesquisa mineral ou de lavra garimpeira para cassiterita, estanho e minério de estanho em terras indígenas da Amazônia Legal também revelam o aumento da cobiça. Em 2019, foram 6 requerimentos, passando para 10 em 2020. Em 2021, o número quase triplicou, alcançando 27 pedidos, e não há sinal de trégua. Neste ano, já foram registrados 14 novos pedidos até meados de abril – quase a metade do total de novos requerimentos minerários (29). Os dados são da plataforma Amazônia Minada, desenvolvido pelo InfoAmazonia, que usa informações atualizadas da Agência Nacional de Mineração (ANM).

‘A cassiterita está comandando Roraima’, afirma o garimpeiro José Altino Machado

O padrão se repete na TIY: dos quatro pedidos de pesquisa feitos sobre o território desde o ano passado, dois são de cassiterita, um de minério de estanho e apenas um de ouro – alvo exclusivo de todos os 32 requerimentos minerários feitos entre 2014 e 2020.

“Em Homoxi [uma das áreas mais destruídas pelo garimpo], quando acabou o ouro, foram para a cassiterita”, afirma Júnior Hekurari, chefe do Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Yekuana (Condisi-YY). Segundo o indígena, as regiões de Xitei e Parafuri, próximas à fronteira com a Venezuela, também estão entre as mais danificadas pela exploração ilegal de minerais. 

Garimpo ilegal ao lado da aldeia Homoxi, flagrado em janeiro deste ano; além do ouro, agora também a cassiterita ameaça o território Yanomami em Roraima (Foto:
© Bruno Kelly/HAY/Instituto Socioambiental

Procurado, o governo de Roraima disse que a gestão das terras indígenas é de responsabilidade do governo federal, mas ressaltou que participa de ações de fiscalização e operações organizadas pela União quando solicitado. Já a Funai informou que suas bases continuam fazendo ações “de proteção, fiscalização e vigilância territorial, além de coibição de ilícitos, controle de acesso, entre outras atividades” na TIY. A ANM, por sua vez, disse que “nenhum requerimento para execução de atividade mineral prospera em áreas com bloqueio legal”, como as terras indígenas (veja a íntegra das respostas).

Mercado em alta

O alto valor de mercado do estanho, metal extraído da cassiterita, também incentiva o garimpo ilegal em terras indígenas. Enquanto o quilo de ouro vale cerca de US$ 69 mil, segundo a cotação desta semana, o de estanho é de aproximadamente de US$ 45 – um valor que vem disparando nos últimos meses. Em março de 2021, o preço de uma tonelada de estanho oscilou entre US$ 25 mil e US$ 30 mil. Já em 8 de março deste ano, chegou a ultrapassar US$ 50 mil

“O estanho se beneficiou do isolamento social relacionado à pandemia, já que muitas pessoas estavam trabalhando em casa e compravam itens de tecnologia, bem como enlatados”, diz Daniel Briesemann, analista de commodities do Commerzbank AG, o segundo maior banco comercial da Alemanha.

O conflito na Ucrânia também deve provocar uma alta nos preços dos minerais. “Com a guerra, vem crescendo a busca por enlatados, cujas embalagens contêm estanho. Os preços também continuarão altos devido a problemas de transporte”, afirma Briesemann. 

“Antigamente, as pessoas deixavam a cassiterita para trás, não davam bola”, diz Vladimir de Souza, professor de geologia na Universidade Federal do Roraima (UFRR). “Com o tempo os garimpeiros viram que ela podia render alguma coisa. Então o pessoal começou o contrabando de cassiterita também.”    

A extração do mineral em Roraima é atraente porque o teor de minério nos aluviões (leitos e barrancos de rios) é mais alto do que em outros Estados, continua o pesquisador. Além disso, no processo de extração da cassiterita podem vir também outros minerais até mais valiosos, como ouro, prata e índio (usado em ligas metálicas na produção de semicondutores).  Zé Altino confirma: a extração de uma  tonelada de cassiterita em Roraima pode render “até 35 gramas de ouro”.

Garimpo ilegal no rio Uraricoera, em território Yanomami; destruição de leitos e contaminação por mercúrio são consequências irreversíveis da mineração Amazônia (Foto:
© Bruno Kelly/HAY/Instituto Socioambiental)

Para extrair esses metais mais valiosos, porém, é preciso uma boa estrutura de fundição, que o Estado não possui. “Se você tiver uma fundição já bem desenvolvida, que consiga separar esses materiais, vai ganhar muito dinheiro”, diz Souza. 

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Segundo fontes ouvidas pela reportagem, os destinos mais comuns da cassiterita ilegal roraimense são Amazonas e Rondônia. Este último Estado é o detentor das maiores reservas do mineral no Brasil e possui uma fundição no município de Ariquemes. “Eles pegam nota fria [falsa] e levam para Rondônia”, diz um ex-servidor federal que trabalha em Roraima, sob a condição de anonimato.

Essa alta na exploração da cassiterita pode também estar acarretando aumento no número de acidentes aéreos na região, devido à alta densidade do mineral – pequenos volumes são muito pesados. Entre junho e dezembro do ano passado, cinco desses incidentes no território Yanomami foram noticiados pela imprensa. “Uma tonelada e meia que ia aí, era?”, questiona o narrador de um vídeo que mostra um helicóptero caído na mata. “26 sacos de cassiterita”, afirma em seguida. As imagens, confirmadas pela reportagem, circularam em agosto de 2021.

Aviões da FAB

Altino disse que o primeiro boom da busca por cassiterita em Roraima ocorreu em 1970, após o fechamento de garimpos do minério em Rondônia. Com isso, garimpeiros partiram em massa, alguns em aviões da FAB, para outras regiões da Amazônia, incluindo o sul da Venezuela.

Nos anos seguintes, o garimpo prosperou, até a retirada de milhares de garimpeiros da Terra Yanomami com a demarcação da área em 1992 – foi quando a busca pela cassiterita recuou. Mas agora, com o alto consumo global de estanho, a região volta a ficar sob pressão. 

“O consumo no mundo aumentou muito, e isso força a saída de mais minério”, afirma Altino. “Em volta de Roraima devem ter uns 15 compradores de cassiterita, pagando bem. Na minha época, 1 kg de cassiterita valia cerca de R$ 5, hoje está em R$ 100, R$ 120, R$ 160”.

Mas, segundo o professor Souza, pelo fato de o mineral ser extraído ilegalmente, ele é vendido por valores abaixo dos de mercado. “Para o sujeito que está no garimpo, tanto faz. Ele vende a R$ 40 e o atravessador revende a R$ 80”, diz.

Garimpeiros ‘autorizam’ pouso da equipe de saúde

O saldo da corrida desenfreada por minérios como ouro e cassiterita em territórios Yanomami tem impacto direto nas comunidades indígenas. Segundo Júnior Hekurari, há em Homoxi uma Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) que deveria prestar atendimento a seis comunidades, com 615 moradores. Mas o local está sem profissionais há sete meses. O motivo é a falta de segurança, já que nesta região até a pista de pouso é controlada pelos garimpeiros. Desativada, a UBSI também virou um depósito para os mineradores clandestinos.

Aeronaves em pistas clandestinas na aldeia Yanomami de Homoxi; equipes de saúde precisam de autorização dos garimpeiros para atender aos indígenas (Foto:
© Bruno Kelly/HAY/Instituto Socioambiental)

“Na pista, eles não deixam [a gente] pousar, tem que ‘rodar’ uns 30 minutos. Pedir, insistir e convencer que é da Saúde. Eu fui duas vezes lá e passei por isso. Fiquei de 30 a 40 minutos e, quando já íamos retornar, eles autorizaram o pouso”, afirma Hekurari. Ele conta ainda que nessas regiões há relatos recentes de indígenas que são cooptados pelos garimpeiros em troca de alimentos, munição, cartuchos e espingardas.

“Os garimpeiros dão cinco, seis espingardas, e a comunidade sai do local que eles querem [para minerar]”, disse. “Mas as mulheres Yanomami, principalmente, são totalmente contra os garimpeiros”.

Segundo relatório feito pela Hutukara Associação Yanomami, publicado na última segunda (11), a violência e a degradação nas aldeias chegou a tal ponto que mulheres, adolescentes e crianças têm sido vítimas inclusive de violência sexual practicada pelos garimpeiros. 

Acampamentos com igreja e dentista 

O modus operandi para extrair cassiterita da TI Yanomami é bem parecido com o ouro, segundo um agente de fiscalização que participou em operações de repressão ao garimpo ilegal no território, que pediu pra não ser identificado. Dragas e jatos de água nos aluviões dos rios reviram as margens e os leitos, desmontando o cascalho e separando os minérios.  

“A extração de minérios por garimpeiros na Amazônia é um desastre ecológico, porque destrói os rios, contamina peixes e indígenas com mercúrio e tem impactos irreversíveis, não há recuperação possível”, afirma o geólogo Eurípedes Palazzo.

A partir de portos, pistas de pouso e heliportos clandestinos, os garimpeiros acessam o território. Na floresta, instalam-se em acampamentos improvisados, barracões de madeira e lonas plásticas, onde funcionam os mais diversos negócios – fiscalizações já encontraram salões de beleza, prostíbulos, igrejas e até consultório odontológico para os mineradores.

Uma cozinheira que chegou recentemente aos garimpos da região do Uraricoera afirma à Repórter Brasil que muitos desembarcam com expectativas, principalmente de enriquecimento rápido – esperando ‘bamburrar’ (enriquecer inesperadamente). Na prática, porém, a realidade é outra.

“Aí fora se tem a impressão que aqui tem muito ouro, mas não é nada disso. É tudo engano, aqui é muito sofrimento”, lamenta ela que, por proteção, não terá o nome divulgado. “A gente vê homens indo embora chorando depois de oito meses trabalhando sem conseguir nada”.


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